sábado, 31 de outubro de 2009
"O homem venceu o mundo para tombar de joelhos perante as armas que outrora forjou"
- Alfred Kubin, Die Dame auf dem Pferd [A Senhora sobre o cavalo], 1900-1901.
"Pergunta - À fatalidade dos primeiros tempos substitui-se uma nova fatalidade?
Resposta - A obra do homem é a sua fatalidade, o homem venceu o mundo para tombar de joelhos perante as armas que outrora forjou. Admirai a sua cegueira e deplorai a sua constância. Ah, como ele é ingrato, ligeiro, pérfido e razoável! Obriga-se a servir, as suas penas e vigílias aliviam-no e quanto mais é infeliz mais se estima.
Pergunta - O Estado, obra do homem, não pende sobre o seu autor? Não suplicia o autor e não o obriga a uma servidão sem exemplo?
Resposta - O homem tem demasiada necessidade do Estado para que o Estado não abuse da sua vantagem e de instrumento não se erija em dominador. Sem o Estado, o homem cessa de ser um homem, o homem criado entre os animais deles em nada se distingue, mas o homem que o Estado deprava é mais atroz que as próprias feras, toca o fundo do horror e perguntamo-nos então se não será necessário conferir a preferência aos brutos"
- Albert Caraco, Huit Essais sur le Mal, Lausanne, L'Âge d'Homme, 1963, pp.25-26.
Incomunicação
sexta-feira, 30 de outubro de 2009
"O Mercador de Quimeras”
Foto: "Derradeira condição", de José d'Almeida e Maria Flores
O Velho residia num antro penhascoso, entre paredes caóticas de gruta e pilares com aparência de tubos sonoros, que parecia repercutirem como num órgão ciclópico os rumores confusos das entranhas da Terra. Havia lá dentro uma tonalidade etérea de firmamento e pedras preciosas engastadas na rocha, que cintilavam ao redor da cabeça do Velho em sistemas de constelações.
Tinha esta a face sulcada pela charrua dos milénios, animada por uns olhos singrados de órbitas de astros que reflectiam mundos longínquos e crepitavam no tracejar implacável e constante de eternas cosmogonias. Estranho ao tempo, jazia impassível e solitário no seu antro, assente sobre um trípode, agitando os dedos com o movimento permanente de quem torce os fios de uma roca invisível, a gerar e a diluir existências, tendo os pés apoiados sobre as armilas de uma esfera. Ao alto, um morcego enorme abria o sobrecéu das asas, suspenso das estalactites do tecto.
À beira do antro, passava o caminho das peregrinações que o Homem vinha percorrendo desde o limiar da História, longa e penosa via-sacra intervalada de montanhas abruptas e de fundas torrentes, de áridos desertos e de cidades tentaculares. Era ali a estação distribuidora das sinas fiadas pelo Velho na sua roca invisível, princípio e termo de encruzilhadas onde se marcava a cada qual na fronte o selo de luz ou sombra que havia de acompanhá-lo na sua rota.
Todos paravam ao chegar ali, atraídos inexoravelmente pelo interior da gruta em cujo chão se viam estranhas figuras de múltiplas matérias, barro ou marfim, bronze ou oiro, dispostas em socalcos à semelhança de uma tenda de mercador. Semelhantes no aspecto e várias no semblante, olhavam, com seus olhos vítreos, obstinadamente, fitando cada uma delas um ponto no espaço, cada uma orientada pela força intrínseca do seu magnetismo polar.
Eram as Quimeras, semelhantes, sim, no aspecto, mas diversas no olhar que em umas era fluido e azulado como a ondulação silenciosa dos espaços planetários, em outras tinha a profundidade glauca e densa da imobilidade submarina, em outras era penetrante e metálico como lâminas arremessadas, em outras envolvente e veludoso como uma carícia de luar, em outras ainda recolhido e triste como uma meditação dolorosa pendida sobre uma urna cinerária. E o que havia de singular é que o olhar do Velho, na sua alheada e altiva magnificência, era o espelho facetado que reflectia todos os outros olhares resumindo-lhes as aspirações e brilho como se eles fossem as emanações gémeas da sempiterna claridade em regresso à sua fonte originária.
João Barreira, do conto “O Mercador de Quimeras”, in “A Rota do Bergantim e Outras Alegorias”, Edições Ática, Lisboa, 1947, págs 99-101.
"Não mais queremos sonho apenas sonhado, mas a vida em sonho transformada [,] à própria morte vencendo pela vida em que a mudarmos " - Agostinho da Silva
[…] outro tempo
Ao nosso vai seguir-se, o em que ao Povo
Redimiremos todos, à miséria
Expulsando dos corpos e das almas,
À terra libertando e aos donos dela
Mais livres os fazendo, por não terem
A posse que os possui, e o mundo inteiro
Revelando a quem tem passado a vida
No não mais que viver a repetida
Morte que dia a dia lhe é o dia.
…………………………………………………..
A todos os do mundo um canto novo,
Que música será bem mais celeste
Que a de esferas fingidas, pois das almas.
Triunfante virá: não mais queremos
Sonho apenas sonhado, mas a vida
Em sonho transformada, nós aos deuses
Unidos para sempre, à própria Morte
Vencendo pela Vida em que a mudarmos.
Agostinho da Silva, ”Exortação à Portuguesa Língua”,
in revista “Nova Renascença”, Porto, 1982, nº 7, pág. 222 e seg.
quinta-feira, 29 de outubro de 2009
A Janela
Na parede do mundo abre-se a janela:
Somos paisagem.
O olhar cruzou fronteiras de vidro:
Somos estrangeiros.
A alma navega em barcos de luz:
Somos naufrágio.
Pássaros flutuam na manhã cobalto:
Somos cantiga.
Surge a lua nova em nossa lucidez:
Somos transparência.
Na parede do mundo fecha-se a janela:
Somos viagem.
Paulo Bomfim, Revista diálogo Nr. 2, São Paulo, Dezembro 1955, p.33
Somos paisagem.
O olhar cruzou fronteiras de vidro:
Somos estrangeiros.
A alma navega em barcos de luz:
Somos naufrágio.
Pássaros flutuam na manhã cobalto:
Somos cantiga.
Surge a lua nova em nossa lucidez:
Somos transparência.
Na parede do mundo fecha-se a janela:
Somos viagem.
Paulo Bomfim, Revista diálogo Nr. 2, São Paulo, Dezembro 1955, p.33
The King of Gaps
There lived, I know not when, never perhaps -
But the fact is he lived - an unknown king
Whose kingdom was the strange Kingdom of Gaps.
He was lord of what is twist thing and thing,
Of interbeings, of that part of us
That lies between our waking and our sleep,
Between our silence and our speech, between
Us and the consciousness of us; and thus
A strange mute kingdom did that weird king keep
Sequestered from our thought of time and scene.
Those supreme purposes that never reach
The deed - between them and the deed undone
He rules, uncrowned. He is the mistery which
Is between eyes and sight, nor blind nor seeing.
Himself is never ended nor begun,
Above his own void presence empty shelf
All He is but a chasm in his own being,
The lidless box holding not-being's no-pelf.
All think that he is God, except himself.
- Fernando Pessoa, Poesia Inglesa, I, edição e tradução de Luísa Freire, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000, p.280.
serpenteemplumada.blogspot.com
But the fact is he lived - an unknown king
Whose kingdom was the strange Kingdom of Gaps.
He was lord of what is twist thing and thing,
Of interbeings, of that part of us
That lies between our waking and our sleep,
Between our silence and our speech, between
Us and the consciousness of us; and thus
A strange mute kingdom did that weird king keep
Sequestered from our thought of time and scene.
Those supreme purposes that never reach
The deed - between them and the deed undone
He rules, uncrowned. He is the mistery which
Is between eyes and sight, nor blind nor seeing.
Himself is never ended nor begun,
Above his own void presence empty shelf
All He is but a chasm in his own being,
The lidless box holding not-being's no-pelf.
All think that he is God, except himself.
- Fernando Pessoa, Poesia Inglesa, I, edição e tradução de Luísa Freire, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000, p.280.
serpenteemplumada.blogspot.com
"A Realidade, desde a mecânica à moral, é uma unidade concreta; quer dizer, a comunicação de muitos" - Leonardo Coimbra
Duplo aspecto da Realidade: ela é contável e descritível, ela é infinita e inominada.
A Realidade é um Irracional criando a razão e a ordem; Irracional porque nenhuma quantidade a pode medir, nenhuma qualidade a pode esgotar. Não quer dizer que a Realidade seja estranha à Razão, mas sim que a Razão cósmica é infinita e activa, isto é, uma sociedade, um conjunto unificado, um sistema de eficazes actividades.
Desde a força mais abstracta, a simples força sem qualificativos, até à força moral, é sempre em cada um a presença dos outros a solicitar a acção.
A primeira, a última, a constante realidade é a acção.
Leonardo Coimbra, “A Alegria, a Dor e a Graça”, Livraria Tavares Martins, Porto, 1956, pág. 196.
A Realidade é um Irracional criando a razão e a ordem; Irracional porque nenhuma quantidade a pode medir, nenhuma qualidade a pode esgotar. Não quer dizer que a Realidade seja estranha à Razão, mas sim que a Razão cósmica é infinita e activa, isto é, uma sociedade, um conjunto unificado, um sistema de eficazes actividades.
Desde a força mais abstracta, a simples força sem qualificativos, até à força moral, é sempre em cada um a presença dos outros a solicitar a acção.
A primeira, a última, a constante realidade é a acção.
Leonardo Coimbra, “A Alegria, a Dor e a Graça”, Livraria Tavares Martins, Porto, 1956, pág. 196.
quarta-feira, 28 de outubro de 2009
"Uma das mais gratas e comoventes recordações que guardo de Vergílio Ferreira é a seriedade do seu desejo de encontrar um Real mais profundo"
"Diálogo Inacabado", de Maria Beatriz Serpa Branco
Recordar um amigo é como contemplar uma paisagem que guardamos viva, para lá do ilusório tempo da memória.
Nessa paisagem, Vergílio Ferreira aparece como um companheiro de viagem: a viagem de Édipo que como todo o ser humano repetimos, quando aceitamos enfrentar o desafio da Esfinge, relativamente à nossa condição.
Tal como Édipo, escutávamos a questão posta pela Esfinge. Mas, diferentemente dele, não tínhamos a resposta, segregada por certo pelos deuses, para que se cumprisse um destino já traçado. Restava-nos tactear no escuro, onde o diálogo por vezes iluminava as sombras...
Uma das mais gratas e comoventes recordações que guardo de Vergílio Ferreira é a seriedade do seu desejo de encontrar um Real mais profundo, que pressentia para além da superficialidade em que geralmente gastamos e destruímos as nossas vidas. E igualmente comovente para mim era a sua angústia velada perante um «espelho» que lhe não mostrava o Real que procurava, e em que parecia não ser capaz de penetrar."
[...]
O Vergílio gostava de repensar connosco algumas das modernas correntes do pensamento Ocidental. As minhas propostas de reflexão eram menos abstractas e mais vivenciais. Estavam sobretudo ligadas a uma Filosofia a que Aldous Huxley deu o nome, hoje consagrado de Filosofia Perene - uma sageza intemporal perpetuada quase sempre anonimamente por homens e mulheres em vários lugares da Terra e representada, por exemplo, por notáveis filósofos gregos (Pitágoras, Sócrates, Platão e outros), pela antiquíssima sageza conhecida como Theo-Sophia, por sages e místicos, ditos budistas, tauistas, hinduístas, judeus, cristãos, muçulmanos, etc, mas todos libertos de fronteiras, de dogmas e credos separando os homens.
Uma sageza - ensinamento nascido do autoconhecimento e da afeição - procurando libertar os seres humanos da ignorância de si mesmos que os acorrenta ao sofrimento.
Nos nossos dias, essa sageza adquire uma expressão particular com o filósofo-educador J. Krishnamurti, a cujo ensinamento Aldous Huxley se refere como «o que de mais impressionante já ouvi». E Henry Miller convida-nos também a «escutar» Krishnamurti, considerando-o como «um mestre da realidade».
Não só escritores e intelectuais de renome, mas também cientistas eminentes chamam a atenção para esta nova expressão, completamente independente e original, da Filosofia Perene, interessando-se vivamente pela investigação na consciência, realizada por Krishnamurti. Uma investigação que vai à raiz dos problemas humanos - a mente do homem. Uma mente com potencialidades imensas mas que está aprisionada numa rede de condicionamentos socioculturais que a tornam mecânica, insensibilizada, deformada - pelo hábito, o egoísmo, os preconceitos raciais, nacionalistas, etc. - o que causa enormes sofrimentos, miséria extrema, conflitos cada vez mais destruidores.
Daí a necessidade de uma revolução psicológica radical pelo autoconhecimento que, libertando a mente, a pode levar a funcionar numa dimensão totalmente diferente.
O físico Fritjof Capra, um dos cientistas interessados nesta pesquisa, diz: «Não posso deixar de reconhecer a influência decisiva que o ensinamento de Krishnamurti exerceu sobre mim». E outro desses cientistas, David Bohm, um dos grandes inovadores da Física moderna, salienta: «A obra de Krishnamurti está permeada por aquilo a que se pode chamar a essência da abordagem científica, quando esta é considerada na sua forma mais elevada e pura (...) A Proposta fundamental que ele apresenta é que todo o sofrimento e a enorme infelicidade que vemos existir por toda a parte têm a sua raiz num facto: a ignorância que temos de nós mesmos, da natureza dos nossos próprios processos de pensar».
A minha própria constatação desta realidade era a base da reflexão que gostava sempre de intriduzir no diálogo com o Vergílio, em face das sombras que frequentemente lhe habitavam o olhar. Sombras a que por vezes chamava de «dissonâncias» [...]
Devido à presença dessas sombras e para aprofundar a nossa reflexão no sentido de um percurso que poderia ser libertador, já alguns anos antes dos nossos últimos diálogos, lhe tinha dado para ler um livro de Krishnamurti - talvez A Primeira e Última Liberdade ou Libertar-se do Conhecido (no original, respectivamente, The First and Last Freedom e Freedom from the Known).
Era um proposta de uma surpreendente viagem interior, fora dos habituais padrões de pensamento em relação a nós mesmos. Uma viagem desafiando-nos à descoberta de uma nova dimensão da consciência, abandonando o fardo do passado, a «segurança» do conhecimento acumulado.
Mas o Vergílio, nesse tempo, estava ainda muito reticente à viagem. Ainda muito preso ao «conhecido», achou o livro tão fora dos trajectos de pensamento a que estava habituado e por isso tão «incómodo», que mo devolveu pouco depois, sem lhe ter dado verdadeira atenção. Sentia-se mais seguro preso às sombras, que lhe eram bem mais familiares...
Mas o desafio à viagem , pela qual, no fundo de si mesmo ansiava, estava apenas adiado... E abriu caminho por onde menos se poderá esperar...
Num dos nossos últimos encontros de Verão, fui encontrar o Vergílio e a Regina muito interessados em leituras sobre a Física moderna. Cientistas bem conhecidos como Jean Charon, Olivier Beauregard, além de Fritjof Capra, David Bohm e outros tinham considerado importante conceder entrevistas e escrever livros para o público interessado, informando sobre os novos horizontes da Física contemporânea.
Tratava-se de um assunto que também me era muito grato. Nesse Verão, eu tinha acabado de regressar de umas visitas que costumava fazer a uma das Escolas experimentais fundadas por Krishnamurti e também de conhecer o físico David Bohm (nessa altura Professor na Universidade de Londres).
Vários cientistas conhecidos participavam com Krishnamurti em seminários nessa Escola, altamente interessados na inovadora investigação na consciência que ele realizava. Além de físicos como David Bohm e Fritjof Capra, estavam presentes nesses seminários cientistas de renome como Rupert Sheldrake, Karl Pribam, Maurice Willkins, Jonas Salk (o criador da vacina contra a poliomielite) e outros.
Como eu regressara havia pouco tempo dessa Escola, o Vergílio mostrou muito interesse em saber algo sobre os seminários.
Os cientistas que procuravam Krishnamurti apreciavam muito o seu desafio à investigação e à descoberta.
Quer falasse para cientistas e intelectuais quer para o «homem comum», Krishnamurti abordava sempre com a mesma profunda simplicidade, a necessidade e também a dinâmica da transformação da mente - uma transformação que poderá trazer a urgente transformação da sociedade: porque a sociedade somos nós.
Dado que esse problema e a sua solução estão em nós, ele suscitava a autodescoberta, pondo-nos em face de nós mesmos, observando connosco a nossa realidade quotidiana: o sofrimento e o prazer, o conflito, o ciúme, o medo, a ambição, etc... E convidava-nos a olharmo-nos no espelho do nosso relacionamento (com as pessoas, com a Natureza, as coisas e as ideias) para que encontremos, por nós mesmos, uma compreensão do que realmente somos. Os cientistas estavam também particularmente interessados na pesquisa que ele fazia sobre a natureza do pensamento e seus limites - o que introduz o problema de descobrir se haverá algo para além dos limitados perímetros do pensamento e da linguagem. E aqui era particularmente relevante a investigação sobre a acção da inteligência e do insight (a percepção imediata e holística) na mutação da mente humana.
A intensidade desta pesquisa propiciava um percebimento do sentido da vida e da morte, da profundidade do silêncio, da meditação, da beleza, do Amor.
O Vergílio mostrou-se verdadeiramente tocado pela profundidade desta abordagem e também pelo interesse que os cientistas tinham por ela. Apercebia-se da grande convergência desta investigação com as suas leituras sobre a Física moderna.
Os cientistas que participavam nestes seminários com Krishnamurti caracterizavam-se, tal como ele, por uma visão holística. Assim, para eles, a compreensão do funcionamento da mente do homem é considerada indispensável para o estudo e a compreensão do Universo, dado que a mente é o «instrumento» fundamental para esse estudo e essa compreensão.
O físico Fritjof Capra diz-nos: «O físico, penetrando em estratos cada vez mais fundos da matéria, toma consciência da unidade essencial de todos os fenómenos e acontecimentos (...) aprende que ele próprio e a sua consciência são uma parte integrante desta Unidade».
Outros físicos, como Olivier Beauregard e Jean Charon mostram também que a Física mais avançada está em nítida convergência com as propostas da antiga Sageza, ao considerar o Universo, nas palavras de um deles, «uma totalidade orgânica, formando uma espécie de corpo cósmico que não é senão o nosso corpo, cuja realidade mais profunda, essencial, é de natureza espiritual». E talvez essa Realidade essencial, além de tudo, seja «o Intemporal», «o Imenso», a que alguns chamam Deus...
Apronfundámos assim a nossa reflexão sobre a Filosofia Perene que aponta para a Unidade de toda a Vida, considerando cada ser humano uma parte inseparável dessa Totalidade. Daí a percepção do carácter ilusório de um «eu» separado do resto do Universo. E, desta ilusão, desta ignorância da nossa verdadeira natureza, nasce a sensação e a angústia do isolamento, o egoísmo, o conflito, o medo, o sofrimento do homem.
Urgente se mostra portanto uma libertação da consciência, pela compreensão do que realmente somos e da nossa relação com o mundo.
Da necessidade dessa libertação se ia apercebendo o Vergílio. A sua sensibilidade acolhia agora menos hesitantemente o desafio proposto pela Filosofia Perene. Compreendia que não se tratava de um sistema de pensamento ou de crença, mas de um verdadeiro aprofundamento da consciência. Via também que a nossa pesquisa, com os dados científicos de que tínhamos conhecimento, poderia ser libertadora, dando-lhe pistas em relação às suas dúvidas e inquietações. E acima de tudo respondia à sua sede de transcendência, desbloqueando finalmente uma vivência nova, uma inocência reencontrada muito depois da infância... Aproximava-o da desejada passagem para lá do «espelho», que lhe mostrava apenas o lado de fora desta realidade - um conhecimento dos olhos que precisa de fundir-se com a sageza do coração...
E assim, naquela tarde, a última em que nos encontrámos, vimos no nosso amigo, num sorriso breve, quase feliz, uma aceitação de um outro norte, um abandonar das velhas conclusões que não traziam afinal qualquer resposta aos seus fundos problemas.
E não pude deixar de lhe dizer, saudando essa clareira na sua floresta de sombras, mas lamentando também o retardar da tranquilidade possível:
- Oh Vergílio, tudo afinal tão próximo da compreensão procurada... Se tivesse aceitado mais cedo o desafio da viagem, teria podido evitar tanta amargura, tanta inquietação...
E ele respondeu, com um sorriso entre humilde e afectuoso:
- Então eu não me posso enganar?...
Todos ficámos em silêncio.
O aroma dos pinheiros permeava a casa. Lá fora o Sol esmorecia...
Senti como que um halo de quietude a envolver-nos a todos.
Naquele reconhecimento do «engano» havia já uma viragem, uma promessa de aprofundamento do diálogo, numa abertura a novas «descobertas».
Mas o diálogo iria para sempre ficar inacabado... E não haveria mais necessidade de interrogações e de respostas...
Uma leve brisa, entrando pela janela entreaberta, trazia o som dos longes, afinal tão perto... Tão perto como a vida, tão perto como a morte, tão perto como o Amor.
E o pensamento, naturalmente aquietado, abria espaço a uma profundidade que desconhecíamos...
Nesse estado meditativo, desperto, nesse silêncio do pensamento e das palavras, todos nos sentíamos mais próximos...
Quando nos levantámos para nos despedir, podíamos sentir no amigo uma paz nova sublinhando o olhar...
Já com sérios problemas de saúde, a ideia da morte parecia não o atormentar. A ponto de, como diz a nossa amiga Regina, «ele se ter deixado morrer com um sorriso de verdadeira beatitude»...
Depois... só o Silêncio - que em nós fica habitando, além da onda regressada ao Mar...
-Maria Beatriz Serpa Branco, "Diálogo Inacabado", in In Memoriam de Vergílio Ferreira, Maria Joaquina Nobre Júlio (org.), Lisboa, Bertrand, 2003.
Recordar um amigo é como contemplar uma paisagem que guardamos viva, para lá do ilusório tempo da memória.
Nessa paisagem, Vergílio Ferreira aparece como um companheiro de viagem: a viagem de Édipo que como todo o ser humano repetimos, quando aceitamos enfrentar o desafio da Esfinge, relativamente à nossa condição.
Tal como Édipo, escutávamos a questão posta pela Esfinge. Mas, diferentemente dele, não tínhamos a resposta, segregada por certo pelos deuses, para que se cumprisse um destino já traçado. Restava-nos tactear no escuro, onde o diálogo por vezes iluminava as sombras...
Uma das mais gratas e comoventes recordações que guardo de Vergílio Ferreira é a seriedade do seu desejo de encontrar um Real mais profundo, que pressentia para além da superficialidade em que geralmente gastamos e destruímos as nossas vidas. E igualmente comovente para mim era a sua angústia velada perante um «espelho» que lhe não mostrava o Real que procurava, e em que parecia não ser capaz de penetrar."
[...]
O Vergílio gostava de repensar connosco algumas das modernas correntes do pensamento Ocidental. As minhas propostas de reflexão eram menos abstractas e mais vivenciais. Estavam sobretudo ligadas a uma Filosofia a que Aldous Huxley deu o nome, hoje consagrado de Filosofia Perene - uma sageza intemporal perpetuada quase sempre anonimamente por homens e mulheres em vários lugares da Terra e representada, por exemplo, por notáveis filósofos gregos (Pitágoras, Sócrates, Platão e outros), pela antiquíssima sageza conhecida como Theo-Sophia, por sages e místicos, ditos budistas, tauistas, hinduístas, judeus, cristãos, muçulmanos, etc, mas todos libertos de fronteiras, de dogmas e credos separando os homens.
Uma sageza - ensinamento nascido do autoconhecimento e da afeição - procurando libertar os seres humanos da ignorância de si mesmos que os acorrenta ao sofrimento.
Nos nossos dias, essa sageza adquire uma expressão particular com o filósofo-educador J. Krishnamurti, a cujo ensinamento Aldous Huxley se refere como «o que de mais impressionante já ouvi». E Henry Miller convida-nos também a «escutar» Krishnamurti, considerando-o como «um mestre da realidade».
Não só escritores e intelectuais de renome, mas também cientistas eminentes chamam a atenção para esta nova expressão, completamente independente e original, da Filosofia Perene, interessando-se vivamente pela investigação na consciência, realizada por Krishnamurti. Uma investigação que vai à raiz dos problemas humanos - a mente do homem. Uma mente com potencialidades imensas mas que está aprisionada numa rede de condicionamentos socioculturais que a tornam mecânica, insensibilizada, deformada - pelo hábito, o egoísmo, os preconceitos raciais, nacionalistas, etc. - o que causa enormes sofrimentos, miséria extrema, conflitos cada vez mais destruidores.
Daí a necessidade de uma revolução psicológica radical pelo autoconhecimento que, libertando a mente, a pode levar a funcionar numa dimensão totalmente diferente.
O físico Fritjof Capra, um dos cientistas interessados nesta pesquisa, diz: «Não posso deixar de reconhecer a influência decisiva que o ensinamento de Krishnamurti exerceu sobre mim». E outro desses cientistas, David Bohm, um dos grandes inovadores da Física moderna, salienta: «A obra de Krishnamurti está permeada por aquilo a que se pode chamar a essência da abordagem científica, quando esta é considerada na sua forma mais elevada e pura (...) A Proposta fundamental que ele apresenta é que todo o sofrimento e a enorme infelicidade que vemos existir por toda a parte têm a sua raiz num facto: a ignorância que temos de nós mesmos, da natureza dos nossos próprios processos de pensar».
A minha própria constatação desta realidade era a base da reflexão que gostava sempre de intriduzir no diálogo com o Vergílio, em face das sombras que frequentemente lhe habitavam o olhar. Sombras a que por vezes chamava de «dissonâncias» [...]
Devido à presença dessas sombras e para aprofundar a nossa reflexão no sentido de um percurso que poderia ser libertador, já alguns anos antes dos nossos últimos diálogos, lhe tinha dado para ler um livro de Krishnamurti - talvez A Primeira e Última Liberdade ou Libertar-se do Conhecido (no original, respectivamente, The First and Last Freedom e Freedom from the Known).
Era um proposta de uma surpreendente viagem interior, fora dos habituais padrões de pensamento em relação a nós mesmos. Uma viagem desafiando-nos à descoberta de uma nova dimensão da consciência, abandonando o fardo do passado, a «segurança» do conhecimento acumulado.
Mas o Vergílio, nesse tempo, estava ainda muito reticente à viagem. Ainda muito preso ao «conhecido», achou o livro tão fora dos trajectos de pensamento a que estava habituado e por isso tão «incómodo», que mo devolveu pouco depois, sem lhe ter dado verdadeira atenção. Sentia-se mais seguro preso às sombras, que lhe eram bem mais familiares...
Mas o desafio à viagem , pela qual, no fundo de si mesmo ansiava, estava apenas adiado... E abriu caminho por onde menos se poderá esperar...
Num dos nossos últimos encontros de Verão, fui encontrar o Vergílio e a Regina muito interessados em leituras sobre a Física moderna. Cientistas bem conhecidos como Jean Charon, Olivier Beauregard, além de Fritjof Capra, David Bohm e outros tinham considerado importante conceder entrevistas e escrever livros para o público interessado, informando sobre os novos horizontes da Física contemporânea.
Tratava-se de um assunto que também me era muito grato. Nesse Verão, eu tinha acabado de regressar de umas visitas que costumava fazer a uma das Escolas experimentais fundadas por Krishnamurti e também de conhecer o físico David Bohm (nessa altura Professor na Universidade de Londres).
Vários cientistas conhecidos participavam com Krishnamurti em seminários nessa Escola, altamente interessados na inovadora investigação na consciência que ele realizava. Além de físicos como David Bohm e Fritjof Capra, estavam presentes nesses seminários cientistas de renome como Rupert Sheldrake, Karl Pribam, Maurice Willkins, Jonas Salk (o criador da vacina contra a poliomielite) e outros.
Como eu regressara havia pouco tempo dessa Escola, o Vergílio mostrou muito interesse em saber algo sobre os seminários.
Os cientistas que procuravam Krishnamurti apreciavam muito o seu desafio à investigação e à descoberta.
Quer falasse para cientistas e intelectuais quer para o «homem comum», Krishnamurti abordava sempre com a mesma profunda simplicidade, a necessidade e também a dinâmica da transformação da mente - uma transformação que poderá trazer a urgente transformação da sociedade: porque a sociedade somos nós.
Dado que esse problema e a sua solução estão em nós, ele suscitava a autodescoberta, pondo-nos em face de nós mesmos, observando connosco a nossa realidade quotidiana: o sofrimento e o prazer, o conflito, o ciúme, o medo, a ambição, etc... E convidava-nos a olharmo-nos no espelho do nosso relacionamento (com as pessoas, com a Natureza, as coisas e as ideias) para que encontremos, por nós mesmos, uma compreensão do que realmente somos. Os cientistas estavam também particularmente interessados na pesquisa que ele fazia sobre a natureza do pensamento e seus limites - o que introduz o problema de descobrir se haverá algo para além dos limitados perímetros do pensamento e da linguagem. E aqui era particularmente relevante a investigação sobre a acção da inteligência e do insight (a percepção imediata e holística) na mutação da mente humana.
A intensidade desta pesquisa propiciava um percebimento do sentido da vida e da morte, da profundidade do silêncio, da meditação, da beleza, do Amor.
O Vergílio mostrou-se verdadeiramente tocado pela profundidade desta abordagem e também pelo interesse que os cientistas tinham por ela. Apercebia-se da grande convergência desta investigação com as suas leituras sobre a Física moderna.
Os cientistas que participavam nestes seminários com Krishnamurti caracterizavam-se, tal como ele, por uma visão holística. Assim, para eles, a compreensão do funcionamento da mente do homem é considerada indispensável para o estudo e a compreensão do Universo, dado que a mente é o «instrumento» fundamental para esse estudo e essa compreensão.
O físico Fritjof Capra diz-nos: «O físico, penetrando em estratos cada vez mais fundos da matéria, toma consciência da unidade essencial de todos os fenómenos e acontecimentos (...) aprende que ele próprio e a sua consciência são uma parte integrante desta Unidade».
Outros físicos, como Olivier Beauregard e Jean Charon mostram também que a Física mais avançada está em nítida convergência com as propostas da antiga Sageza, ao considerar o Universo, nas palavras de um deles, «uma totalidade orgânica, formando uma espécie de corpo cósmico que não é senão o nosso corpo, cuja realidade mais profunda, essencial, é de natureza espiritual». E talvez essa Realidade essencial, além de tudo, seja «o Intemporal», «o Imenso», a que alguns chamam Deus...
Apronfundámos assim a nossa reflexão sobre a Filosofia Perene que aponta para a Unidade de toda a Vida, considerando cada ser humano uma parte inseparável dessa Totalidade. Daí a percepção do carácter ilusório de um «eu» separado do resto do Universo. E, desta ilusão, desta ignorância da nossa verdadeira natureza, nasce a sensação e a angústia do isolamento, o egoísmo, o conflito, o medo, o sofrimento do homem.
Urgente se mostra portanto uma libertação da consciência, pela compreensão do que realmente somos e da nossa relação com o mundo.
Da necessidade dessa libertação se ia apercebendo o Vergílio. A sua sensibilidade acolhia agora menos hesitantemente o desafio proposto pela Filosofia Perene. Compreendia que não se tratava de um sistema de pensamento ou de crença, mas de um verdadeiro aprofundamento da consciência. Via também que a nossa pesquisa, com os dados científicos de que tínhamos conhecimento, poderia ser libertadora, dando-lhe pistas em relação às suas dúvidas e inquietações. E acima de tudo respondia à sua sede de transcendência, desbloqueando finalmente uma vivência nova, uma inocência reencontrada muito depois da infância... Aproximava-o da desejada passagem para lá do «espelho», que lhe mostrava apenas o lado de fora desta realidade - um conhecimento dos olhos que precisa de fundir-se com a sageza do coração...
E assim, naquela tarde, a última em que nos encontrámos, vimos no nosso amigo, num sorriso breve, quase feliz, uma aceitação de um outro norte, um abandonar das velhas conclusões que não traziam afinal qualquer resposta aos seus fundos problemas.
E não pude deixar de lhe dizer, saudando essa clareira na sua floresta de sombras, mas lamentando também o retardar da tranquilidade possível:
- Oh Vergílio, tudo afinal tão próximo da compreensão procurada... Se tivesse aceitado mais cedo o desafio da viagem, teria podido evitar tanta amargura, tanta inquietação...
E ele respondeu, com um sorriso entre humilde e afectuoso:
- Então eu não me posso enganar?...
Todos ficámos em silêncio.
O aroma dos pinheiros permeava a casa. Lá fora o Sol esmorecia...
Senti como que um halo de quietude a envolver-nos a todos.
Naquele reconhecimento do «engano» havia já uma viragem, uma promessa de aprofundamento do diálogo, numa abertura a novas «descobertas».
Mas o diálogo iria para sempre ficar inacabado... E não haveria mais necessidade de interrogações e de respostas...
Uma leve brisa, entrando pela janela entreaberta, trazia o som dos longes, afinal tão perto... Tão perto como a vida, tão perto como a morte, tão perto como o Amor.
E o pensamento, naturalmente aquietado, abria espaço a uma profundidade que desconhecíamos...
Nesse estado meditativo, desperto, nesse silêncio do pensamento e das palavras, todos nos sentíamos mais próximos...
Quando nos levantámos para nos despedir, podíamos sentir no amigo uma paz nova sublinhando o olhar...
Já com sérios problemas de saúde, a ideia da morte parecia não o atormentar. A ponto de, como diz a nossa amiga Regina, «ele se ter deixado morrer com um sorriso de verdadeira beatitude»...
Depois... só o Silêncio - que em nós fica habitando, além da onda regressada ao Mar...
-Maria Beatriz Serpa Branco, "Diálogo Inacabado", in In Memoriam de Vergílio Ferreira, Maria Joaquina Nobre Júlio (org.), Lisboa, Bertrand, 2003.
"Mas o que eu trago em mim é o anúncio do fim do mundo, ou mais longe, e decerto, o da sua recriação"
"Um homem novo recria-se-me na transparência do seu ser. Sinto-o leve e lúcido, instantâneo e incandescente, por entre as cinzas que o fogo deixou. Frente à noite que submergiu os homens e as coisas, frente à anulação da vida transaccionável e plausível, na recuperação deste início do mundo, o homem primordial que em mim sobe tem a face atónita de uma primeira interrogação.
[...]
A invenção de um novo mundo não é uma invenção de ninguém. Não está na nossa mão criá-lo; está só, quando muito, ajudar ao seu parto. E todavia - sabemo-lo bem - é em nós que ele se gera; mas tão longe donde estamos, que só já quando irrevogável o sabemos. Um mundo acontece na escolha indeterminável de nós. Assim pois, testemunhas apenas à superfície desse acto de criação, instrumentos que se ignoram para a grande obra invisível, anterior à obra visível, nós cumprimos sempre as ordens que ninguém deu e não as pudemos pois discutir. [...]
[...] Frente ao grande sono dos homens que o esqueceram, na atenção inexorável ao sem limite de mim, a minha vigília arde como um fogo assassino. É um fogo alto e poderoso. Lume breve na minha intimidade, na brevidade de um pequeno ser, eu, anónimo e avulso, ocasional e frágil - eu. E todavia, esse lume vibra de vigor, brilha único e intenso contra o assalto da noite. Trago em mim a força monstruosa de interrogar, mais força que a força de uma pergunta. Porque a pergunta é uma interrogação segunda ou acidental e a resposta a espera para que a vida continue. Mas o que eu trago em mim é o anúncio do fim do mundo, ou mais longe, e decerto, o da sua recriação"
- Vergílio Ferreira, Invocação ao Meu Corpo, Lisboa, Bertrand, 1994, 3ª edição, pp.13-15.
[...]
A invenção de um novo mundo não é uma invenção de ninguém. Não está na nossa mão criá-lo; está só, quando muito, ajudar ao seu parto. E todavia - sabemo-lo bem - é em nós que ele se gera; mas tão longe donde estamos, que só já quando irrevogável o sabemos. Um mundo acontece na escolha indeterminável de nós. Assim pois, testemunhas apenas à superfície desse acto de criação, instrumentos que se ignoram para a grande obra invisível, anterior à obra visível, nós cumprimos sempre as ordens que ninguém deu e não as pudemos pois discutir. [...]
[...] Frente ao grande sono dos homens que o esqueceram, na atenção inexorável ao sem limite de mim, a minha vigília arde como um fogo assassino. É um fogo alto e poderoso. Lume breve na minha intimidade, na brevidade de um pequeno ser, eu, anónimo e avulso, ocasional e frágil - eu. E todavia, esse lume vibra de vigor, brilha único e intenso contra o assalto da noite. Trago em mim a força monstruosa de interrogar, mais força que a força de uma pergunta. Porque a pergunta é uma interrogação segunda ou acidental e a resposta a espera para que a vida continue. Mas o que eu trago em mim é o anúncio do fim do mundo, ou mais longe, e decerto, o da sua recriação"
- Vergílio Ferreira, Invocação ao Meu Corpo, Lisboa, Bertrand, 1994, 3ª edição, pp.13-15.
Entre
Entretanto, Zaratustra olhava a multidão, e assombrava-se. Depois falava assim:
“O homem é corda estendida entre o animal e o Super-homem: uma corda sobre um abismo; perigosa travessia, perigoso caminhar, perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar.
[...]
Sucedeu, porém, qualquer coisa que fez emudecer todas as bocas e atraiu todos os olhares.
Entrementes pusera-se a trabalhar o volteador; saíra de uma pequena porta e andava pela maroma presa a duas torres sobre a praça pública e a multidão.
Quando estava justamente na metade do caminho abriu-se outra vez a portinhola, donde saltou o segundo acrobata que parecia um palhaço com as suas mil cores, o qual seguiu rapidamente o primeiro. “Depressa, bailarino! — gritou a sua horrível voz. — “Depressa, mandrião, manhoso, cara deslavada! Olha que te piso os calcanhares!
Que fazes aqui entre estas torres? Na torre devias tu estar metido; obstrues o caminho a outro mais ágil do que tu!” E a cada palavra se aproximava mais, mas, quando se encontrou a um passo, sucedeu essa coisa terrível que fez calar todas as bocas e atraiu todos os Olhares; lançou um grito diabólico e saltou por cima do que lhe interceptava o caminho.
Este, ao ver o rival vitorioso, perdeu a cabeça e a maroma, largou o balancim e precipitou-se no abismo como um remoinho de braços e pernas. A praça pública e a multidão pareciam o mar quando se desencadeia a tormenta. Todos fugiram atropeladamente, em especial do sítio onde deveria cair o corpo.
Zaratustra permaneceu imóvel, e junto dele caiu justamente o corpo, destroçado, mas vivo ainda. Passado um momento o ferido recuperou os sentidos e viu Zaratustra ajoelhado junto de si. “Que fazes aqui? — lhe disse. Já há tempo que eu sabia que o diabo me havia de derrubar. Agora arrasta-me para o inferno. Queres impedi-lo?”
“Amigo — respondeu Zaratustra — palavra de honra que tudo isso de que falas não existe, não há diabo nem inferno. A tua alma ainda há de morrer mais depressa do que o teu corpo; nada temas”.
O homem olhou receioso. “Se dizes a verdade — respondeu — nada perco ao perder a vida. Não passo de uma besta que foi ensinada a dançar a poder de pancadas e de fome”.
“Não — disse Zaratustra — fizeste do perigo o teu ofício, coisa que não é para desprezar.
Agora por causa do teu ofício sucumbes e atendendo a isso vou enterrar-te por minha própria mão”.
O moribundo já não respondeu, mas moveu a mão como se procurasse a de Zaratustra para lhe agradecer.
“O homem é corda estendida entre o animal e o Super-homem: uma corda sobre um abismo; perigosa travessia, perigoso caminhar, perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar.
[...]
Sucedeu, porém, qualquer coisa que fez emudecer todas as bocas e atraiu todos os olhares.
Entrementes pusera-se a trabalhar o volteador; saíra de uma pequena porta e andava pela maroma presa a duas torres sobre a praça pública e a multidão.
Quando estava justamente na metade do caminho abriu-se outra vez a portinhola, donde saltou o segundo acrobata que parecia um palhaço com as suas mil cores, o qual seguiu rapidamente o primeiro. “Depressa, bailarino! — gritou a sua horrível voz. — “Depressa, mandrião, manhoso, cara deslavada! Olha que te piso os calcanhares!
Que fazes aqui entre estas torres? Na torre devias tu estar metido; obstrues o caminho a outro mais ágil do que tu!” E a cada palavra se aproximava mais, mas, quando se encontrou a um passo, sucedeu essa coisa terrível que fez calar todas as bocas e atraiu todos os Olhares; lançou um grito diabólico e saltou por cima do que lhe interceptava o caminho.
Este, ao ver o rival vitorioso, perdeu a cabeça e a maroma, largou o balancim e precipitou-se no abismo como um remoinho de braços e pernas. A praça pública e a multidão pareciam o mar quando se desencadeia a tormenta. Todos fugiram atropeladamente, em especial do sítio onde deveria cair o corpo.
Zaratustra permaneceu imóvel, e junto dele caiu justamente o corpo, destroçado, mas vivo ainda. Passado um momento o ferido recuperou os sentidos e viu Zaratustra ajoelhado junto de si. “Que fazes aqui? — lhe disse. Já há tempo que eu sabia que o diabo me havia de derrubar. Agora arrasta-me para o inferno. Queres impedi-lo?”
“Amigo — respondeu Zaratustra — palavra de honra que tudo isso de que falas não existe, não há diabo nem inferno. A tua alma ainda há de morrer mais depressa do que o teu corpo; nada temas”.
O homem olhou receioso. “Se dizes a verdade — respondeu — nada perco ao perder a vida. Não passo de uma besta que foi ensinada a dançar a poder de pancadas e de fome”.
“Não — disse Zaratustra — fizeste do perigo o teu ofício, coisa que não é para desprezar.
Agora por causa do teu ofício sucumbes e atendendo a isso vou enterrar-te por minha própria mão”.
O moribundo já não respondeu, mas moveu a mão como se procurasse a de Zaratustra para lhe agradecer.
vidamorte
A morte vive no corpo em modo de inspiração psíquica
e a vida morre na alma em modo de eco que o corpo continuamente propaga.
e a vida morre na alma em modo de eco que o corpo continuamente propaga.
Alentejo
(foto R)
Algures no Além do Rio
depois da areia
a meio do amarelo
abrem-se subitamente
uma porta e uma janela.
Não é verdade que apenas quando uma porta se fecha uma janela se abra,
não é verdade o contrário
ambas as crenças são tijolos inconsistentes da arquitectura da mentira.
Na realidade das coisas do mundo
desde antiga
mente
portas e janelas abem-se
simultaneamente
para o profundo.
terça-feira, 27 de outubro de 2009
Três médicos e um funeral
Summer Night de Liang Feng
O imperador da China encontrava-se à beira da morte. Os sábios e médicos da corte procuravam uma solução mas o homem piorava. A situação era políticamente instável e alguns ministros tomaram a decisão de procurar um médico fora dos muros da corte. Decisão muito arriscada mas que foi necessária dada a difícil situação que atravessava a nação.
Pouco depois os espiões do reino chegavam com a informação de que um escuro médico de um bairro da cidade de Pekim podia ser o homem que precisavam.
- Que venha imediatamente- disse o primeiro ministro. Já tinha que estar aqui!
E aí podéis ver um homem de mediana idade, de cabelos grisalhos, aspeito singelo e modos naturais, sem afectação alguma. Era como se a presença na corte o intimidasse mas, ao meso tempo, não lhe causasse impressão. Estranho paradoxo que tem uma explicação: ao seu lado os homens pareciam vulgares e isso avergonhava-o. Era como se interiormente disesse:
- Desculpem, não foi ideia minha o de estar aqui. Não quero incomodar os seus assuntos.
Por outro lado podia sentir a inveja e a expectação malevolente dos cortesãos.
Bem, o caso é que o médico achegou-se ao imperador e deu-lhe a beber uma poção, que renovou durante três dias.
O imperador curou totalmente. E foi uma felicidade mesmo para os invejosos que viram que as suas cadeiras já não perigavam.
O imperador falou para o médico:
- Que notável que um homem do teu talento só seja conhecido num pequeno bairro de Pekim. Poderias explicar a que se deve a tua discreção?
- Veréis, majestade- disse o médico. Eu só sou o mais pequeno de três irmãos. E todos somos médicos.
- Quem são então os teus famosos irmãos?-disse o imperador.
- Majestade, desculpe, mas não está a compreender o que lhe estou tentando dizer. Os meus irmãos, dos que eu aprendi, são menos conhecidos do que eu. O do meio só é conhecido na nossa rua. E o mais velho, o verdadeiro sábio, só é conhecido na nossa casa. Fora da nossa casa ninguém pensa que saiba nada de medicina. Assim é a nossa vida.
O imperador deu ordem de que trouxessem a esse médico desconhecido e oculto para o seu palácio. Queria tê-lo ali ao seu serviço para sempre.
Mas não houve sorte, pois o imperador foi informado de que o médico oculto acabava de falecer.
Todos olharam para o irmão, ainda presente. Este falou:
- Agora compreendo as palavras do meu irmão quando dizia que na verdadeira medicina era o médico o que pagava.
Poesia do Olhar
Na densa névoa
Que está a ser gritado
Entre colina e barco?
Haiku (Yugen)
Os nossos olhos só vêem
o enfolar das ondas
e não a força que as eleva.
Raça infeliz
de memória perdida
no imenso cone do tempo.
(Maria Sarmento, Memória das Naus, Arion, 1999)
Que está a ser gritado
Entre colina e barco?
Haiku (Yugen)
Os nossos olhos só vêem
o enfolar das ondas
e não a força que as eleva.
Raça infeliz
de memória perdida
no imenso cone do tempo.
(Maria Sarmento, Memória das Naus, Arion, 1999)
"Cosmo a cosmo, nascemos em cada coisa" - Maria Bueno
na brisa o que a leva
silêncio que fica
tudo flore e fenece
segunda-feira, 26 de outubro de 2009
"Ter pai é ser-se abandonado" - Natália Correia
Salvador Dali, "The transparent simulacrum of the feigned image", 1938
No sítio em que os Transparentes dão o nome de Terra à estrela cadente dos répteis repartida em calafrios pedestres, a árvore genealógica dá frutos de crianças estranguladas. Descender é transportar um cobarde adiamento que em nós se faz o deserto de poros que não deixa passar a vida. Os pais pagam as lições aos filhos para eles aprenderem a não ser deuses. Mas quando o filho descobre que o professor é o pai a espreitá-lo atrás de um cacto de dentes canibais, bate com o pé e as batidas formam as sílabas do seu corpo sem peso. Porque a força da gravidade é a certeza antiga dos sáurios não poderem voar nos descendentes.[…]
Descender, descenda quem servir de escadote à autofixação dos cartazes que anunciam a sua vida. A minha vida não me foi anunciada. Comi-a até achar o seu sabor. Porque o sabor é a certeza daquilo que convém a cada um. Os que tudo envenenam com a sua vida amarga não têm paladar. São torres abandonadas pelos ascendentes que a elas pontualmente regressam para celebrar o baile anual dos morcegos. Acabo de vos descrever o historiador. Reproduzo-me, por isso, ao arrepio do tempo. Tudo começa no fim como o rio na foz que exige a nascente para que os passos sonâmbulos da água que se sonha um rio se despenhem nas passadas insones de um mar por sua vez modeladas por um outro fim que precisa desse andamento.
Natália Correia, “A mosca iluminada”, in “Poesia Completa”, Publ. Dom Quixote, Lisboa, 2000, pág. 311.
(In) Dilucidações do Real
Fonte: Imagen do Google
Tal como o real não é linguagem, nem tem linguagem, é, portanto, uma “existência de grau zero”; uma evidência pura e terrível, para o nosso olhar, assim a leitura do real é a criação mesma da linguagem, múltipla na sua aparente fisicidade e peso. O verbo revisitado, sempre disponível para novas e múltiplas leituras e para a construção de novos reais, aproxima-se e afasta-se do real, volteando sempre, como ave solta, sobre o firmamento do real. O Real está para além do espaço e do tempo, como a linguagem está para além e para lá dos nomes. Pode e deve a linguagem ser ponte suspensa sobre a compreensão do outro, como realidade simultânea e coexistente. Pode a compreensão do mundo passar sem o real? Ultrapassar a linguagem?
O real pode ser (e é) uma inifinidade de “inexistências” reais, uma rede fina e infinita de leituras para o olhar que o tenta, em vão, apreender, como um jogo de ilusórias e caóticas redes presentificadas e equilibradas em diferentes pontos que não vemos. O real é. Para lá da linguagem e do desejo da limitação e da apreensão. O real não é só relação, como a linguagem não é só possibilidade da poesia se manter desejo. A linguagem deixa de ser representação do mundo, quando, não o nomeando, nem o descrevendo, esse tal real é instante que fulgura ou desaparece quando não é olhado pelo olho, sempre “plástico” da linguagem; sempre que toca o infinito do não dito, do não-nome que brilha e fulgura em todo o real. Ou seja, só há real para a fuga da palavra, quando o poema é mudo. O real, então, fala, ou ausenta-se como a Saudade. O real é como o paraíso. Original fonte de ser que ultrapassa e dissemina tudo em todas as direcções, tornando-se o abissal Nada. O Real é o Nada?
O real é uma mudez gritada. Como uma existência que, sendo exterior, necessita de uma linguagem que a adentre, que a penetre, assim a linguagem tem o olhar cego que busca o lugar da compreensão do real e da sua absorção. Consubstanciando-se nele, ou dele se ausentando, como no caso dos loucos às voltas com a liguagem sem real, e o pensamento em delírio, sem referente, como em alguma Poesia lemos. A Realidade não precisa da linguagem para existir, mas pouco ou nada é sem o olhar que a encontre, ou desencontre, ou a ele se furte.
O olhar é talvez a forma da solidão mais devastadora, que a poetas e outros artistas se revela como abismo. O olhar é uma ausência que nos visita. A linguagem de pouco serve sem o "mar" mutável do Real. Seremos como os “fala-sós” quando olhamos o abismo da própria linguagem, essa ausência presente que se molda à nossa sensibilidade, à imaterialidade superior de uma religação profunda com o verbo que para sempre nos falta, e sempre se insinua como o mistério do Real. O seu instante irruptivo, ou o hialino não ser da linguagem. A brancura da neve que nos silencia e nos cala, por ausência de referente para essa presença pura, inapreensível. Por isso dizemos que a linguagem é canto e sopro, e nada mais dizemos que valha a pena ao olhar. A realidade é um multiplo espelho sem separação, onde nos vemos naturalmente de todos os ângulos e em tudo nos vemos semelhantes e diferentes, na relação, no desenho dos múltiplos reais impressos nos nossos sentidos, como relação e participação, como presentificação. Mas, sobretudo, como religação e saída do labirinto, deixando tombar as babélicas torres para abrir as pontes, sobrevoando-as. O real e a linguagem são, pois, como certos jogos em que, para cobrir um espaço deixamos outro sem ocupação, cego o olhar nesse jogo interminável onde multiformes, múltiplos e multifacetados peixes voadores que se são escapando pelas malhas, véus, de um labirintado abismo, imenso caleidoscópio que sempre nos interroga o olhar. Direi então como ouvi dizer da poesia: se um dia me perder do real, sigo o rasto da palavra: "Verbo escuro" sem altura nem fundo.
domingo, 25 de outubro de 2009
Shibumi
Li uma vez, há muitos anos, um livro com o título Shibumi. Era de um autor do qual nunca ouvira falar e que dava pelo estranho nome de Trevanian. O personagem principal, Nicholai Hel, órfão, é educado por um general japonês e costumavam jogar Go juntos (um jogo japonês de estratégia). Quando finalmente, passados anos, Nicholai ganha ao general, ele decide mandá-lo completar a sua instrução com um famoso professor de Go, chamado Otake-san. E informa Nicholai de que o futuro mestre possui a qualidade do shibumi. Nicholai, estranho ao conceito, pergunta ao general o que é o shibumi e então o general explica, e aqui cito o livro: “… o shibumi tem a ver com um grande requinte subjacente a aparências vulgares. É uma afirmação tão exacta, que não é ousada, tão vibrante que não precisa de ser bela, tão verdadeira que não tem de ser real. … Um silêncio eloquente. Na conduta, trata-se de humildade sem modéstia. Na arte, onde o shibumi assume a forma de sabi, quer dizer uma simplicidade elegante, uma parcimónia articulada. Na filosofia, onde o shibumi aparece como wabi, significa uma tranquilidade espiritual que não é passiva; trata-se de existir sem a ansiedade da vivência. E na personalidade de um indivíduo é… autoridade sem domínio.”
No final, o general oferece a Nicholai uma caixa de sândalo embrulhada num pano cru e Nicholai “fez uma vénia de agradecimento e pegou no embrulho com grande ternura; não expressou a sua gratidão com palavras inúteis. Era o seu primeiro acto consciente de shibumi.”
Apresento de seguida algumas imagens do Japão que, para mim, representam o shibumi. O shibumi é visível na natureza, à superfície do caos, e tem a qualidade de nos alegrar o coração quando o descobrimos. O shibumi existe também, por vezes, nas relações humanas, nas mais marcantes obras de arte, num rosto que dorme, nos arranjos florais do Ikebana, no sussurrar do vento nos bambús ou na preparação de uma refeição. Na realidade, podemos ir ao encontro do shibumi em todo o lado.
Fotografia de Sylvester Adams
Fotografia de Frank Carter
Fotografia de Frank Carter
"Olhar é desaparecer" - António Maria Lisboa *
"Tal como os querubins e os serafins, será o solitário apenas olhar"
Abba Bessarion **
* "Poesia de António Maria Lisboa", Assírio e Alvim, Lisboa, 1977, pág. 124.
* * "Paroles des Anciens - Apophtegmes des Pères du Désert", Éditions du Seuil, Paris,1976, pág.45
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Que significa a visão e enigma de Zaratustra?
Liberto do anão que lhe pesava sobre os ombros, o qual, proclama, não conhece e não pode suportar o seu “pensamento abissal (abgründlichen Gedanken)”, Zaratustra detém-se junto de um portal (Torweg, que também significa literalmente “portão louco”), em cujo frontão está inscrito o nome “instante”, onde “se reúnem dois caminhos” frontalmente opostos, que ninguém ainda seguiu “até ao fim”: um estende-se para trás, o outro para diante e ambos duram uma eternidade. Formula então perguntas que simultaneamente se respondem: “Se alguém, todavia, seguisse por um destes caminhos, sem parar e até ao fim, julgas […] que […] se oporiam sempre?”. Contemplando o caminho eterno que se estende para trás, não deverá tudo o que é capaz de correr já o haver percorrido pelo menos uma vez? E não deverá tudo o que pode suceder já haver assim sucedido? Se tudo já foi, não devem também aquele portal, a aranha que rasteja ao luar, o luar, Zaratustra e o anão já haver existido? E não estará tudo tão intimamente interligado que aquele instante não arraste atrás de si todas as coisas futuras, incluindo a si mesmo? Não deverá tudo o que pode correr ter de percorrer uma vez mais o longo caminho que se estende para diante? Não será assim necessário que Zaratustra, o anão e todos percorram esse “longo e temível” caminho futuro e do passado regressem àquele instante?
Ao dizer isto, Zaratustra falava “em voz cada vez mais baixa”, com medo dos seus “próprios pensamentos e da sua oculta intenção”, quando ouve uivar um cão. Tudo se desvanece e encontra-se só perante um jovem pastor que se contorce, com o rosto desfigurado pela repugnância e pelo terror, pois uma forte cobra negra se lhe introduziu na boca, mordendo-lhe a garganta. Começa a puxar pela serpente, sem sucesso, até que uma voz grita pela sua boca: “Morde! Morde! / Arranca-lhe a cabeça! Morde!”. Ao gritar, “espanto, ódio, nojo, piedade”, tudo o que em si “trazia de melhor e de pior”, de si jorrava “num único grito”. Aqui Zaratustra interrompe a narrativa para pedir a todos, “exploradores” e “aventureiros” ou não, que lhe decifrem o enigma daquela visão” que é simultaneamente “previsão”: “Que vi então em imagem? E qual é o que deve chegar um dia?”; “Quem é o homem em cuja garganta se introduzirá assim o que há de mais negro e de mais pesado no mundo?”
Retomando a narrativa, o pastor morde firmemente a cabeça da serpente e cospe-a para longe, levantando-se “com um salto”. Já não é então pastor nem homem: “transformado, transfigurado (iluminado?), ria”, ria como nenhum homem o fez na terra. E o capítulo termina com a confissão:
“Ó meus irmãos! Ouvi um riso que não era um riso humano, e agora devora-me uma sede, uma saudade (Sehnsucht) que nada aplacará.
A minha saudade (Sehnsucht) daquele riso devora-me; oh!, como posso tolerar ainda a vida! E como tolerar agora a morte!”
- Fragmento da comunicação "O Eterno Retorno em Friedrich Nietzsche e Raul Proença", a apresentar no dia 29 de Outubro, no Colóquio "Proença, Cortesão, Sérgio e o grupo "Seara Nova"", que decorre de 28-30 de Outubro no Anf. III da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Ao dizer isto, Zaratustra falava “em voz cada vez mais baixa”, com medo dos seus “próprios pensamentos e da sua oculta intenção”, quando ouve uivar um cão. Tudo se desvanece e encontra-se só perante um jovem pastor que se contorce, com o rosto desfigurado pela repugnância e pelo terror, pois uma forte cobra negra se lhe introduziu na boca, mordendo-lhe a garganta. Começa a puxar pela serpente, sem sucesso, até que uma voz grita pela sua boca: “Morde! Morde! / Arranca-lhe a cabeça! Morde!”. Ao gritar, “espanto, ódio, nojo, piedade”, tudo o que em si “trazia de melhor e de pior”, de si jorrava “num único grito”. Aqui Zaratustra interrompe a narrativa para pedir a todos, “exploradores” e “aventureiros” ou não, que lhe decifrem o enigma daquela visão” que é simultaneamente “previsão”: “Que vi então em imagem? E qual é o que deve chegar um dia?”; “Quem é o homem em cuja garganta se introduzirá assim o que há de mais negro e de mais pesado no mundo?”
Retomando a narrativa, o pastor morde firmemente a cabeça da serpente e cospe-a para longe, levantando-se “com um salto”. Já não é então pastor nem homem: “transformado, transfigurado (iluminado?), ria”, ria como nenhum homem o fez na terra. E o capítulo termina com a confissão:
“Ó meus irmãos! Ouvi um riso que não era um riso humano, e agora devora-me uma sede, uma saudade (Sehnsucht) que nada aplacará.
A minha saudade (Sehnsucht) daquele riso devora-me; oh!, como posso tolerar ainda a vida! E como tolerar agora a morte!”
- Fragmento da comunicação "O Eterno Retorno em Friedrich Nietzsche e Raul Proença", a apresentar no dia 29 de Outubro, no Colóquio "Proença, Cortesão, Sérgio e o grupo "Seara Nova"", que decorre de 28-30 de Outubro no Anf. III da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
A todas os navegantes e saudosos do oceano cósmico, que nos é ventre e firmamento
Atlante idade
Fica entre os continentes que jamais conhecerei, quais pulmões
de mim, faca líquida que delimita o aqui e o lá.
Aquém, onde espelha o que não sou, há uma aquátil película
que inunda a superfície de meu fôlego: sou o que não é ainda…
Além, na extensão sem lonjura que me é remo, sou o que em mim é
o que hei-de ser: hei-de ser o que sou já…
É peixe alado o que em mim nada, ou navegue. Ignoro náutico o voo
dos atlantes que não houve: tenho meu leme na lemúria.
Seres sem idade habitam a profundura que não hei. Sem nome e com silêncio,
o ponderar medito dos recifes em que a alma desencalho, a gaguejar.
A obra em 4 volumes “Le morte Darthur; the book of King Arthur and of his noble Knights of the Round table” (A Morte do Rei Artur; o livro do Rei Artur e dos Seus Nobres Cavaleiros da Mesa Redonda ), escrito por Sir Thomas Mallory e ilustrado com 48 estampas por William Russell Flint, numa edição de 1921, é um registo digno da nossa atenção. Sir William Russell Flint (1880 - 1969) foi um artista escocês que adquiriu renome pelas suas pinturas com aguarelas. Foi presidente da Real Sociedade da Gran Bretanha de Pintores de Aguarelas (actualmente a "Real Sociedade de Aguarela") de 1936 a 1956, e foi nomeado cavaleiro em 1947. Os seus primeiros trabalhos foram ilustrações para "el Illustrated London News", de 1903 a 1907 de acontecimientos da época. O primeiro livro que ilustrou foi “As minas do rei Salomão” em 1905, seguido da obra “A Imitação de Cristo” em 1908, posteriormente dois volumes de “As Operas de Saboia” e “Marco Aurelio” em 1909 e 1910, e entre 1910 e 1911 a obra mencionada acima em 4 tomos. Continuou com “Os Contos de Canterbury” em 1913 e “A Odisseia” em 1914, apesar deste ultimo devido à 1.ª Guerra Mundial ser editado em 1924.
presente perpétuo
Devemos considerar o estado presente do universo como um efeito do seu estado anterior e como causa daquele que se há-de seguir. Uma inteligência que pudesse compreender todas as forças que animam a natureza e a situação respectiva dos seres que a compõem — uma inteligência suficientemente vasta para submeter todos esses dados a uma análise — englobaria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e os do mais pequeno átomo; para ela, nada seria incerto e o futuro, tal como o passado, seriam presente aos seus olhos.
LAPLACE, Ensaio Filosófico sobre as Probabilidades
.
O Indício perpétuo, do último ponto indeterminável, que para ainda além do infindo, ultrapassa a origem, elevando-a a eterno presente.
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probabilidade,
reflexão,
universo
Edmond Jabès: Sobre o deserto
Não se pode falar do deserto como de uma paisagem, pois ele é, apesar da sua variedade, ausência de paisagem. Essa ausência concede-lhe a sua realidade. Não se pode falar do deserto como de um lugar; pois ele é, também, um não lugar; o não-lugar de um lugar ou o lugar de um não-lugar. Não se pode pretender que o deserto seja uma distância, porque ele é, ao mesmo tempo, real distância e não-distância absoluta por causa da sua ausência de marcas. Ele tem, como limites, os quatro horizontes, sendo o que os liga e os separa. Ele é a sua própria separação onde se torna lugar aberto; abertura do lugar. Não se pode pretender que o deserto seja o vazio, o nada. Não se pode, tampouco, pretender que ele seja o fim, uma vez que ele é, igualmente, o começo.
Edmond Jabès in Un étranger, avec, sous le bras, un livre de petit format, Paris, Editions Gallimard, 1989, p. 107-8
"Vamos para o silêncio do mar ou da montanha, porque o ruído altera todas as relações do homem com verdade" - Leonardo Coimbra
Herbert Draper, "A Water Baby"
Grande é o homem que conserva sempre em si a luz das primeiras horas; é água à boca da fonte, fogo interior aflorando em jeito de afeiçoar a Terra.
O Universo vai para o Uno da Graça, vindo do Uno do Caos.
É Caos, multiplicidade dispersa, multiplicidade amorosa. E é-o contemporaneamente. Não há uma evolução rectilínea que do caos leve à luz; há, agora e sempre, identidade da origem, pluralidade de seres, identificação final pela penetração amorosa.
As primeiras horas são de Alegria inocente, anterior ao pecado original.
Impropriamente se chama original ao pecado das criaturas. Este é a absolutização de cada criatura, esquecida a origem, tentando uma ilusória unidade pelo aniquilamento do Universo, pela absorção dos outros, pela omnipotência da palavra volvida em todo.
A criança é anterior ao pecado das criaturas.
Ela é a promessa infinita, o homem a exígua realização.
Leonardo Coimbra, “A Alegria, a Dor e a Graça”, Livraria Tavares Martins, Porto, 1956, pág. 26.
O Universo vai para o Uno da Graça, vindo do Uno do Caos.
É Caos, multiplicidade dispersa, multiplicidade amorosa. E é-o contemporaneamente. Não há uma evolução rectilínea que do caos leve à luz; há, agora e sempre, identidade da origem, pluralidade de seres, identificação final pela penetração amorosa.
As primeiras horas são de Alegria inocente, anterior ao pecado original.
Impropriamente se chama original ao pecado das criaturas. Este é a absolutização de cada criatura, esquecida a origem, tentando uma ilusória unidade pelo aniquilamento do Universo, pela absorção dos outros, pela omnipotência da palavra volvida em todo.
A criança é anterior ao pecado das criaturas.
Ela é a promessa infinita, o homem a exígua realização.
Leonardo Coimbra, “A Alegria, a Dor e a Graça”, Livraria Tavares Martins, Porto, 1956, pág. 26.
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