terça-feira, 20 de novembro de 2018

Só um novo xamanismo, não tribal, mas cósmico, nos pode salvar


O maior problema da sociedade ocidental e da sua civilização globalizada é resultar da perda da função xamânica das culturas indígenas, que também existiram no Ocidente, com o consequente fechamento da percepção profunda da imensa diversidade e alteridade do real. Deixou de haver mediadores e mediações entre o mundo humano e o infinitamente mais vasto mundo não-humano dos animais, energias e espíritos da natureza, deixou de haver quem sinta as presenças e entenda as linguagens da terra, do céu, dos ventos, dos rios e dos oceanos, dos astros, das árvores, das pedras, das montanhas e das múltiplas populações não-humanas do cosmos, quem faça a tradução mútua e ajude a estabelecer um regime harmonioso de trocas entre humanos e não-humanos e entre a natureza visível e invisível, equilibrando a predação humana do mundo mediante as oferendas rituais e a redistribuição energética das práticas espirituais. Os xamãs deram em geral lugar a sacerdotes voltados para um além-mundo e focados apenas na salvação dos humanos, a filósofos perdidos em vãs especulações intelectuais, a tecnocientistas ávidos de objectivar e manipular o mundo natural e a políticos ocupados com a gestão egotista das questões humanas e a expansão do domínio humano sobre a Terra mediante uma economia produtivista. A política nasceu mal e acaba hoje pior, como coisa das cidades (polis) e dos humanos desconectados da Natureza e cada vez mais desvairados nos seus apetites incontidos de consumo, verdadeiro motor da religião do crescimento económico ilimitado, o terrorismo e fundamentalismo que ninguém ousa chamar pelo nome. O resultado deste processo milenar é a destruição da biodiversidade, a devastação dos recursos naturais e a iminência de colapso ecológico, a par da perda de sentido para a vida humana, que é a patologia interior ainda mais destrutiva do que os cancros e demais doenças originadas pelo mesmo processo de afastamento da grande Natureza e do convívio original com os povos e energias não-humanos da sua dimensão oculta aos nossos sentidos cada vez mais embotados.

Numa civilização em auto-destruição acelerada é possível, como admite o antropólogo brasileiro Viveiros de Castro, que no fundo, e paradoxalmente, sejam os indígenas, tão dizimados pela civilização moderna, os únicos que se venham a salvar, por se manterem ainda em comunhão com as populações e recursos não-humanos do mundo. Mas indígenas somos nós todos, se recuperarmos o nosso imenso potencial sempre presente, o da percepção profunda da natureza invisível e da capacidade de restabelecermos trocas harmoniosas com a imensa comunidade cósmica dos viventes mediante a energia das oferendas, das práticas espirituais e de uma vida simples mas festiva, de abundância frugal. Só um novo xamanismo, não tribal, mas cósmico, nos pode salvar.