quinta-feira, 29 de julho de 2010

Rio, cidade ambígua



News BBC Co. UK Media Image.


O Rio tem um quê de inesperado. Aqui acontecem coisas difíceis de encontrar em outras cidades do mundo. Até mesmo coisas desabonadoras acontecem por aqui com certa naturalidade. São traços de personalidade que os cariocas e seus amigos de fora vão absorvendo, à medida que se acostumam às ruas, bairros urbanos ou da periferia. São cenas típicas, sentimentos que se instalam na gente que vive aqui; paisagens que incorporamos ao dia-a-dia; costumes que se adotam sem saber bem por quê. Nada mais característico do Rio do que essa sensação de gratuidade, esse contágio fácil que vai generalizando um jeito de viver e agir; que inventa hábitos, expressões, gírias que acabam incorporadas ao carioquês. O jeito de vestir irreverente, a informalidade. A vivacidade, uma espécie de astúcia malandra de procurar o que fica mais simples, mais à mão, o que soa mais despreocupado e casual. A alegria de viver que chega às raias da inconsequência. Um certo atrevimento. E mesmo no inverno, o descaramento de sair sem casaco num frio de dez graus. Ou de casaco e sandália havaiana. Só um carioca pode fazer questão de ignorar o guarda-chuva, faça o tempo que fizer. E as (poucas) cotias do Campo de Santana, ao que parece, são as únicas no mundo que não fogem das pessoas. Passa-se pela lagoa e lá está uma ave desafiadora na proa de um barco, e a gente para só para ver seu voo se desenhar no meio do céu. O carioca, do mais sofisticado ao mais simples, é um contemplativo.
De repente, um poodle miniatura chama para a briga os pés de quem passa e todos se encantam por ele, enquanto sua dona segue adiante e deixa na calçada os dejetos do bichinho como se não tivesse notado. Ninguém como um carioca sabe se fazer de desentendido, quando lhe interessa. Ninguém desconversa melhor. E ninguém liga pra isso; há uma ética do desinteresse que sustenta a infinita tolerância carioca para com a contravenção, o crime, a bandalha, o relaxamento. O carioca é um leniente que perdeu o freio. 
São cariocas os motoristas machões e marrentos e o poder desassombrado dos pivetes de qualquer idade. Carioca é cheio de saídas criativas. Improvisa, programa só pra não cumprir e não cumpre horários, a não ser que o emprego seja dos bons (aqui é preciso abrir uma exceção para os políticos de assembleias legislativas, que também não cumprem horários nem calendários, embora o emprego seja dos melhores de que sem tem notícia). Carioca pode conviver com o caos e a promiscuidade das ruas, dos bares, das boates sem perder uma ponta de compaixão e uma leveza que recria pessoas e ambientes, mas de repente se invoca (se irrita) por qualquer bobagem e parte para a briga.
É bem a nossa cara virar padrinho de um garoto de rua, ficar inteiramente eufórico por isso e depois perder o afilhado de vista. Acreditar cegamente em alguém só porque tem uma boa conversa. Apaixonar-se de repente por alguém que nunca viu. Fazer amizades instantâneas como se morasse no paraíso.
E no entanto o paraíso carioca é cada vez mais apenas uma linda paisagem. Parece que as virtudes desse povo criaram raízes tão enormes que, com o passar do tempo, viraram um cipoal em que se tropeça a toda hora. Porque uma virtude é o extremo oposto de um defeito, e acontece que os extremos sempre se tocam.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

“O que tu és, eu sou ! / E tu, tu és o que eu sou ! / Eu sou o Céu, tu és a Terra ! / Tu és a Estrofe, eu sou a Melodia !”

(fórmula ritual do casamento védico)



Qual o sentido espiritual da união sexual? Duas dicas da Índia:

“Neste mundo, o resultado do amor é não haver mais que um só pensamento. Quando o amor deixa diferentes os pensamentos (de cada um), é como se houvesse a união de dois cadáveres” - "Centúria da Paixão Amorosa" (tratado erótico indiano);

“Quando o pensamento não é reabsorvido no acto amoroso e na concentração yógica (samadhi), de que serve o recolhimento (dhyana) ? De que serve o acto amoroso ?” - "Sarngadharapaddhati".

domingo, 25 de julho de 2010

"A união da quietude e do movimento"

"Quaisquer tipos de pensamentos que surjam, sem os suprimir, reconheçam de onde emergem e onde se dissolvem; e permaneçam focados enquanto observam a sua natureza. Fazendo isto, por fim o movimento dos pensamentos cessa e há quietude... De cada vez que observarem a natureza de quaisquer pensamentos que surjam, eles desvanecer-se-ão por si mesmos e a seguir uma vacuidade aparece. Do mesmo modo, se também examinarem a mente quando ela permanece sem movimento, verão uma vacuidade não obscurecida, clara e vívida, sem qualquer diferença entre o primeiro e o último estado. Isso é bem conhecido entre os praticantes de meditação e chama-se "a união da quietude e do movimento"

- Panchen Lozang Chökyi Gyaltsen (1570-1662, Tibete).

Revólver (poema de Sylvia Beirute)


























REVÓLVER

                                  {ao josé ferreira}

por fim: entre desejos lindos, estrita-
-mente prováveis, e contra-impulsos no
dorso, dia sim dia não, como que
numa mistura clássica e fascinante,
substituo o corpo na competência
de parir o tempo que resta
no rebentar das águas de um
instante principal em forma de
edema e américas;
e entre desejar e não desejar, o vazio
de cordas deseja e consegue: a certeza
de não cabermos numa
única possibilidade, o saber que há
um inverno de grande razão
na carne fria do nosso cesariny,
o ter o coração em riste no diadema
solitário sob os olhos dos mi-
-nutos emperrados em direcção a meca,
o supor que a morte já
não admite exemplos
e um excesso de memória
adivinha o futuro.

Sylvia Beirute
inédito

sábado, 24 de julho de 2010

Quem somos quando nada fazemos mas estamos presentes?

"Em termos do sentimento individual de quem somos, a maioria de nós identifica-se fortemente com os papéis que desempenhamos na vida quotidiana, por exemplo, pais, esposos, filhos, estudantes ou pessoas numa certa profissão. Tais papéis são importantes e eles definem-nos nas nossas inter-relações sociais. Mas, tirando as nossas relações específicas com outras pessoas e os tipos de actividades em que nos envolvemos regularmente, o que fica? Quem somos nós quando nos sentamos calmamente nos nossos quartos, nada fazendo mas estando presentes?"

- B. Alan Wallace, Mind in the Balance. Meditation in Science, Buddhism and Christianity, Columbia University Press, 2009.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Ensaio Geral

É preciso que nos fundemos na paz.
Pouco há de mais vil do que a ideia de guerra, onde a principal consequência é a do sofrimento e da morte. Onde se sacrificam generalizadamente aqueles que nos são mais queridos, todos.

Devemos eleger como motivo maior o amor.
O que nos permite olhar o outro como a nós próprios, sinal da aceitação plena do milagre da vida, compreensão de que enquanto houver alguém que se perca por desvelo é igualmente uma parte de nós que se vai.

A compaixão pelos pobres, a misericórdia pelos enfermos, a solidariedade nas desavenças, a fraternidade nos infortúnios são atitudes maiores que nos libertam das amarras da vida. Enquanto existir alguém que esteja preso nós estaremos presos também.

Ocuparemos parte das nossas reflexões e acções na necessidade de dignificação do trabalho e da vida. Entregar a maior parte do tempo de vida a um trabalho escravo não nos permite a liberdade necessária para aceder a níveis mais amplos de consciência e a uma melhor compreensão da verdade.

Não há dinheiro que nos salve. Não há lucro que nos sirva. Não há conforto que nos liberte. Só a ideia de sermos Um, corpo total, nada e tudo, nos livrará do ciclo infinito de vidas em sofrimento. A emancipação de todos trará a consciência clara do que deverá ou não ser feito.

Substituiremos as ilusões mentais de todas as construções ideológicas (como esta!) pelo primado da escuta e da conversa em prole do bem comum. Meditaremos nos caminhos ideais que nos guiam a uma suprema calma mental, a uma fina harmonia do corpo, a uma capacidade optimizada de compreensão do (des)necessário próximo passo.

Estaremos realmente vivos.

Luís Santos

P.S.: Este texto resultou de uma con-versa com os amigos Raul Costa e João Martinho justamente no Café Ensaio.

Uma nova pornografia turístico-cultural

‎"Uma nova pornografia viu a luz do dia desde que hordas de turistas desbragados podem tranquilamente, em nome da cultura, desfilar mastigando a sua pastilha elástica diante da múmia de um faraó"

- Françoise Bonardel, "Des Héritiers Sans Passé. Essai sur la crise de l'identité culturelle européenne", Chatou, Éditions de La Transparence, 2010.

A autora, professora na Sorbonne, esteve recentemente no Porto e colabora no n.2 da Cultura ENTRE Culturas.

Bússola, livro de Flávio Lopes da Silva, sobre a apresentação

Como foi anunciado, ontem, 15 de julho, foi a apresentação do meu livro chamado Bússola, onde familiares, amigos meus e alguns leitores puderam-se inteirar um pouco mais sobre o meu trabalho literário e motivações no âmbito da escrita.

Para falar sobre o livro Bússola e dar-lhe luz, esteve o meu amigo escritor e ensaísta Paulo Borges, que tão bem soube dignificar este meu mais recente trabalho, fazendo-o com sensibilidade e sabedoria, deixando nas pessoas que o ouviam atentos e serenamente uma vontade crescente em conhecer as palavras deste livro que em silêncio repousam. Livro este que, após o lançamento, deixou de me pertencer e passou a ser de todos nós. Também o actor e declamador Armindo Cerqueira esteve brilhante ao dizer excertos do livro com a sua voz que sempre enche uma sala.

Quero aqui agradecer de coração ao Paulo Borges pela sua vinda a Barcelos, pelo seu contributo genial, pelo abraço, pelo rasto que deixou quando partiu sem ter partido. Barcelos também agradece.
Grato também a todos que puderam estar comigo neste momento importante da minha vida, física ou pensamento. À câmara municipal de barcelos um obrigado.
Resta-me dizer que espero-vos encontrar noutro livro, noutra viagem, porque ontem foi só um dizer até já.
Obrigado e, façam o favor de me ler!

terça-feira, 13 de julho de 2010

Hoje, dia 15, na Feira do Livro de Barcelos, às 18 e às 21h



Hoje, dia 15, 5ª feira, estarei na Feira do Livro de Barcelos, às 18h, para apresentar a revista Cultura ENTRE Culturas e o meu livro Uma Visão Armilar do Mundo.

No mesmo lugar, às 21h, apresentarei o livro de aforismos/euforismos de Flávio Lopes da Silva, Bússola, cujo prefácio escrevi e que vivamente recomendo.

Uma oportunidade para encontrar os amigos do Norte.

domingo, 11 de julho de 2010

Pátria, sonho de luz (conclusão)

A Pátria é um poema-oração

A convergência de aspectos dramáticos no poema de Junqueiro e o fim do poema levam-nos necessariamente a pensar na relação entre Segismundo de Calderón de la Barca e o doido de Junqueiro. Em ambos, os personagens há uma conversão à luz, luz natural do homem, o sonho à luz sobrenatural na cruz. Essa conversão é o próprio caminho do poema e da poesia. Afinal, somos levados a indagar, que sonho é este, que luz se derrama sobre o culpado e sobre o inocente, sobre o doido e sobre a infância? Será que, à maneira de Calderón de la Barca, também Junqueiro defende que a vida é sonho?
Segismundo, personagem e herói do texto do autor espanhol intitulado A Vida é Sonho, é um personagem encerrado numa torre onde está incomunicável. Dada a sua condição, de estar privado de liberdade e submetido a um destino imposto pela vontade do pai e dos astros que o decretaram como parricida, este homem sem interlocutores interroga-se a si mesmo como fazem os loucos, como agem os que caminham solitários nos desertos, ou vivem ensimesmados no deserto do real. Segismundo é, por causa da má consciência do pai, transportado para o palácio, onde como num sonho, se vê inesperadamente a governar. A experiência desta ilusão – ser rei de um reino que não é seu – termina mal. Segismundo não sabe governar, só sabe matar. Todavia, a ilusão do poder foi a pedra de toque que o fez despertar. Regressado à torre, este príncipe apercebe-se de que a experiência dessa ilusão escondia uma verdade. Segismundo aprende duplamente o significado da ilusão: a ilusão engana e a ilusão esconde. Segismundo foi rei por enganosa tentativa de testarem a sua liberdade, mas é de facto o rei escondido que o pai aprisiona numa torre. Sendo as duas coisas, rei que pode sê-lo e rei que não o deixam ser, Segismundo é o paradigma do homem que, na experiência de viver e de estar vivo, percebe que a vida é uma oscilação entre liberdade e destino, sonambulismo e despertar, realidade e irrealidade, humanidade e heroísmo. A sua vida é uma oscilante passagem do sonho desventura ao sonho ventura. Porém a sua vida é um drama e não chega para ser trágica. Ele torna-se, com a ajuda do povo, rei. A sua vida que não tem acção, no sentido em que o que acontece não resultou senão de uma encenação do teatro da vida – ser rei quando o não era – e, encenação do teatro político que o aclama, não pode ser trágica porque ele se humaniza e, humanizar-se é aceitar estas oscilantes variações entre sonho e realidade, entre estar-se fechado na torre e ser-se impotente e ser-se livre e conhecer-se o poder do poder, no palácio. Para Segismundo o sonho tanto serve para mostrar que o homem não se deve entusiasmar com as suas grandezas como serve porque a vida é breve e há que ter nas mãos algo que evite o desengano do despertar. O homem trágico destrói o véu desta ilusão que oscila entre iludir-nos e enganar-nos no sentido em que ele se sabe melhor do que os seus deuses e é esta consciência que o priva da palavra que expressa não a opressão da sua culpa, mas o testemunho da honra do semi-deus, como lhe chama Holderlin. O silêncio do homem trágico é obscuro, na medida em que a luz do sonho se desfaz perante a vitória do semi-deus que é Diónisos, o que, tocando o homem, o torna estranho e morto aos olhos do mundo. Segismundo não é trágico e a sua acção é dramática, ele aclara e declara a vida como sonho: pois que a vida é tão breve, / sonhemos / outra vez; mas há-de ser / com atenção e conselho / de que havemos de despertar / deste gosto no melhor . Ao fazê-lo mostra como o sonho é um artifício que a consciência exige para se privar da experiência melancólica e da alegoria da natureza que é morte e assombração. O sonho de Segismundo não vem de longe, do fundo do passado morrendo ao longe, em sonho, nas obscuridades do porvir. O sonho de Segismundo é um sonho cuja luz irradia do próprio sujeito que reverte o movimento da consciência que caiu em si, num movimento de encadeamento de si. O sonho é uma potência de luz que distrai o homem da consciência da morte e da pena que é estar vivo. A consciência é o holofote de luz sobre o teatro do mundo.
O sonho do doido é diferente. É verdade que o doido, como Segismundo, numa primeira instância, está fechado no seu corpo e, sem alma, erra pelo palácio onde um espectro o anima. Esse espectro fala. Porque um livro é uma morada de espectros que nos falam, porque um livro é uma consciência distante que vem de longe, do fundo do passado morrendo ao longe, em sonho, nas obscuridades do porvir. No poema de Guerra Junqueiro, o livro é a alteridade que relembra e acusa o doido de um falso sonho de esplendor/sonho vão, mas contudo, é ele que, nas suas infinitas possibilidades de sentido lhe mostra que há ainda outra luta, uma outra luz dentro do sonho, a batalha do amor e da verdade .
Esse símbolo que ilumina a culpa e lhe revela o seu sentido último é o livro que lhe cai das mãos e que ele ergue e beija com fervor, ou seja, é o livro a fonte da grande revelação. O livro ilumina-o da mesma maneira que a visitação divina impele os homens para uma acção que está para além do seu poder e da sua vontade. Que diz o doido afectado por esta revelação? O doido perde, nesse instante de fulgurante apropriação de sentido, a sua identidade como herói. Metoníma da pátria, o doido deixa de se identificar com os heróis, com Nun’Álvares, e passa a identificar-se com um mártir. E é mesmo antes da crucificação que o doido se transforma em Cristo. O doido declara: A Dor, a eterna Dor, eis o meu gozo / (…) É a dor que liberta a criatura / Ó Dor, filha de Deus, mãe do universo. Essa transformação de herói em mártir não ocorre nem de forma trágica nem dramática. Esta identificação do doido com o mártir, que é o próprio Cristo, não é trágica porque o homem não se sente maior do que o divino e porque a sua decisão interior – ser como Cristo – não é canto enlutado, é canto entusiasmado. Por outro lado, esta identificação do doido com o mártir não é dramática porque se a Vida é Sonho é uma educação dos príncipes e da sua humanização, a Pátria é o percurso de um homem que se diviniza – a Dor o exalta, a Dor o diviniza.
Muitos vêem uma conversão em Segismundo, a conversão à prudência e à aceitação resignada de que a melhor forma de viver é sonhar, dentro da ordem natural do mundo, já que a vida é ela mesma sonho e os “sonhos, sonhos são”.
A conversão do doido de Junqueiro é mais profunda e está para além da resignação à ordem natural das coisas. O doido converte-se a uma ordem sobrenatural, ele abandona a ordem do mundo. A dada altura ele exclama - pudesse eu, d’alma livre e resoluta / (…) / erguer ainda os braços para a luta! - e esta exclamação condicional mostra o quanto o seu combate já não se faz com a espada. É Simone Weil quem diz o que aqui nos parece esclarecer o sentido da sua conversão e que coincide em perfeição com o fim do poema e o fim da experiência humana do doido: “quem quer que pegue na espada perecerá pela espada. E quem quer que não pegue na espada (ou a abandone) perecerá na cruz.”
Esta afirmação permite perceber que a Pátria não é nem um poema trágico nem um poema dramático, porque a cruz está para além do heroísmo trágico e da imaginação dramática. Então por que razão é o doido conduzido à cruz? Porque a sua alma está seduzida pela luz que é o amor de Deus pelos homens. “Deus consome-se, através da espessura infinita do tempo e do espaço, para atingir a alma e a seduzir. Se ela deixa arrancar de si, nem que seja pelo instante de um breve relâmpago, um consentimento puro e inteiro, então Deus conquista-a. E quando se torna em algo inteiramente dele, abandona-a. Deixa-a completamente só. E ela, por sua vez, deve, mas às cegas, atravessar a espessura infinita do tempo e do espaço, em busca daquele que ama. É assim que a alma refaz, em sentido inverso, a viagem que Deus fez em direcção a ela. E isso é a cruz.”
Essa luz que aclara o espírito do doido é a luminosidade de uma identidade derradeira entre o homem e o divino, identidade que só o poeta como criança apreende como mistério. Porque aquele que é arrebatado para a cruz não comunica mais essa experiência, essa experiência é a experiência de uma conversão para o inexprimível enquanto inexprimível. Aquele que nos pode dar conta dela é o poeta, a criança, que tomando nas suas mãos, como Maria e Madalena os panos de Cristo no sepulcro, os restos de uma experiência de redenção, compõe moradas para o divino. Essas moradas são a oração e o poema, um poema-oração em que o poeta, como o doido, pede ao que está para além do nome “seja feita a tua vontade”. O poeta é eleito para criar moradas em que repousam os que sofreram, esse lugar de repouso não é o sepulcro, é o livro. Em última instância o país, como se perceberá nas notas e apontamentos finais, não renascerá numa repetição de actos heróicos, mas numa repetição, do que liberta o heróico do esquecimento e do tempo, na criação do poema como oração. Invocação permanente do que pode abandonar-nos, do que pode ausentar-se e é o divino em nós: a alma. O poema é para os mortais o que a cruz é para os mártires: sonho de luz. Redenção da sua acção num imemorial que resplende fora da ordem natural do mundo e do tempo. Por isso, o poema é a pátria sobrenatural da alma de um povo e da vida e só ele redime a dor em luz.






Bibliografia
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BARCA, Pedro Calderón de la, La Vida es sueño, Madrid, Catedra, 2000
BARCA, Pedro Calderón de la, A Vida é Sonho, trad. Manuel Gusmão, Lisboa, Estampa-Seara Nova, 1973
BENJAMIN,Walter, Origine Du Drame Baroque Allemand, Trad. de l’allemand para Sibylle Muller, Paris, Flammarion, 1974
BENJAMIN, Walter, Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Trad. Maria Luz Moita, Maria Amélia Alberto, Lisboa, Relógio d’ Água, 1980
CALAFATE, Pedro, Portugal Como Problema - Século XIX- A Decadência, Vol.III, Introdução e organização editorial de Pedro Calafate, Lisboa, Público Fundação Luso - Americana, 2006
CIRIACO, Morón Arroyo, Introdução a: Pedro Calderón de la Barca, La Vida es Sueño, Madrid, Ediciones Cátedra, Letras Hispánicas, 1976
DERRIDA, Jacques, Mémoires d’Aveugle, L’ autoportrait et autres ruines, Paris, Editions de la Réunion des Musées Nationaux, 190
JUNQUEIRO, Guerra, Vibrações Líricas, Porto, Lello & Irmão, 1978, pp. 49-50
LORAUX, Nicole, La Voix Endeuillé, Essais sur la tragédie grecque, Paris, Gallimard, 1990
NIETZSCHE, Friedrich, O Nascimento da Tragédia, Cap. XVIII, trad. e comentário de Maria Teresa Cadete, Lisboa, Relógio d’Água, 1997
STEINER, George, Despues de Babel/ Aspectos del Linguaje y la Traduction, Trad. Adolfo Castañon, México-Madrid- Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 1981
STEINER, George, La Mort de la Tragédie, trad. de l’ anglais par Rose Celli, Paris, Gallimard, Folio Essais nº 182, 1993
WEIL, Simone, A Gravidade e a Graça, trad. Dóris Graça Dias, Relógio d’Água, col. Antropos, 2004

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Pátria, Sonho de Luz

A Pátria não é um poema dramático
Na sua obra A Origem do Drama Barroco Alemão, Walter Benjamin apresenta aquelas que são as categorias que distinguem o drama do trágico. O filósofo considera que as categorias centrais dessa diferenciação são a presença da melancolia, da repetição associada ao aparecimento dos duplos e da morte, a consciência da ruína, o jogo entre berço e sepulcro, a imanência de Deus e a sua queda no mundo natural e a existência de um tempo que o autor designa por tempo não preenchido. Por fim, mas não menos importante, no drama constata-se sempre a presença do registo alegórico e a sua sobreposição ao simbólico porque, em suma e numa só palavra, todo o drama é alegoria.
Ao focarmos a nossa exegese no poema de Junqueiro não podemos deixar de imediatamente apreender o sentido e o sentimento constantes do tom melancólico. O poeta diz isso mesmo na didascália do canto XXII , mas existe em toda a balada do poema esse sentimento próprio de alguém que cisma, de alguém que entristece, de alguém que sendo primeiro o espectro e
depois o doido, perde a apetência pela linguagem inflamada, entusiasmada do encomiasmo ou da exaltação que em outros poemas nacionais existe sobre a pátria, nomeadamente n’Os Lusíadas, e tende para o silêncio daqueles que, como S. Jerónimo, meditam e só encontram, por detrás de todas as formas que contemplam, a figura repetida da morte. Este é o poema de uma pátria que jaz no chão como o rei. O melancólico é aquele que, ensimesmado e em monólogo, se centra na reflexão daquilo que deseja mas de que não pode apropriar-se. A morte é esse desejo latente, até porque ela é o fim desejado para esse mesmo dilaceramento, ou estrangulamento do sentido que o homem não vislumbra por detrás da aparência das coisas. Afinal, que sentido há num país onde tudo se arruína, onde tudo se amesquinha, da economia à moral, em todas as classes, do clero à classe política, onde nada nem ninguém se distingue pela virtude, pela honestidade, pela sageza concentrada que lhe permita antecipar o todo e leve, enfim, a nação ao colo como uma criança? A emergência simbólica da criança é aqui o alvo do olhar desse que comunica com o objecto do seu desejo pelo desvio, ou pela carência . A criança é esse desvio e fuga relativamente à morte do país, em relação ao que está em falta: renascer. Todavia, a consciência do renascer só é agudo, só é intenso, quando a morte é uma ameaça, uma seta apontada ao coração da vida. A criança é a inversão do olhar que recai sobre a caveira, a morte. Ela é a que se espera, para cessar o desespero, sobre a terra: Os braços da criancinha estendem-se com avidez, numa alegria doida…Nobre montante, qual o teu destino? Sulcarás, relha de arado, a gleba deserta do camponês? Nas mãos dessa criança, um dia homem, brilharás acaso, espada de fogo e de justiça? Mistério…mistério…”
Afinal, neste jogo entre a criança que se vê e entre a morte que se entrevê e antevê, encontramos espelhado, no reflexo dos espelhos barrocos que constroem um duplo para tudo, o binómio entre o berço e o sepulcro. Dicotomia central do pensamento barroco, o homem sabe que a vida é um percurso que se esvai sem que haja liberdade, na aceitação de um destino. No drama, com efeito, o herói não age. O herói está condenado à aceitação de um destino em que, como é o caso do doido que se pensa a si mesmo na figura do herói Nun’Álvares, a espada fez nascer e a espada fez perecer, numa dualidade reversível e que o poema exprime de forma cabal: Minha espada de herói, ó cruz de morte e ainda, antes aparelhara o meu calvário, / Antes a minha tumba silenciosa / Com o tronco do roble funerário! Com efeito, apesar da doidice e do estado de confusão, o doido sabe que ele é o outro herói, Nun’Álvares, ele é o espectro, o que é mortal e está moribundo/a, esse espectro que assusta o rei e o deita por terra, é uma metonímia da pátria. Que é a pátria, de acordo com o livro esmaecido e arruinado que tem na mão? N’Os Lusíadas a pátria não é senão o elenco dos feitos e dos heróis, por isso aquilo que parece uma perturbação da identidade própria de um louco, de um doido – [olhando o espectro] Muito ao longe…Ora espera! ...Já sei! Não era irmão, não era! ... /Fui eu próprio! ... Fui eu assim! ... Fui eu! Fui eu! Fui eu! É tal e qual…é exacto, / O meu retrato! ...Fui eu! - nada mais é do que a verdade. A pátria é o herói, os heróis são a pátria. O doido confunde-se, como nos dramas barrocos, com os espectros, pela antecipação da morte, e confunde-se com os heróis, pela repetição de tudo em tudo, num jogo de duplos em que cada coisa é a sua contrária e/ou a sua complementar. Repare-se que o herói das conquistas nada mais é, afinal, do que a alma de um corpo, a louca-pátria: Regressas ao teu lar, alma divina, / Para morrer aqui; / E no teu lar contemplas uma ruína, / E ele sombra de ti! … / Entra no lar…entra no túmulo…descansa…/ Alma pobre, varada de amarguras, / Alma sem fé e sem esp’rança!
Como se aqui se fizesse alusão a uma possível explicação para a doidice da pátria: ela andava desalmada, sem alma. A alma errante paira como uma sombra no palácio que arde, causando à alma uma experiência de intenso deleite na contemplação de uma forma arruinada. A alma reencontrada - a nobre alma dos antepassados, não a infame que tinha governado e jazia por terra depois da assinatura do ultimatum - precisava, para recuperar a ideia perdida de pátria, da ruína. Ora, neste aspecto, o de uma alma concentrada, debruçada, na contemplação apaixonada da ruína – Dobram os sinos…dobram os sinos…Deixa dobra! / Foi Deus que deitou fogo àquilo tudo… / Quem no há-de apagar?! … / (…) E eu vou ter, que prazer!, / Mal sabeis…mal sabeis o que eu vou ter!... / A minha alma! A minha alma! Nova…nova, / Como um sol de aleluia a refulgir! E estava ali presa numa cova… - encontramos outro aspecto fundante do espírito barroco e do espírito dramático. Só na ruína se recupera a ideia, que aqui deve dizer-se Ideia de pátria. No fragmento reside, por isso mesmo, o que salva, o que redime. A partir dessa forma arruinada, a do palácio, metonímia da monarquia, forma de poder e governação que conduziu à pobreza, à fome, ao frio, à miséria, à noite de horror , o doido vê o reverso, o que brilha, o que vem, como diz ao espectro vagabundo na penumbra de um país, iluminar um túmulo vazio [?!] Porque ainda que a ruína lembre aos homens que tudo é fugaz e nada é eterno, pois nenhuma obra humana o é, a alma recuperada, a consciência de si reencontrada, permite prever o futuro no que refulge do passado, a saber, o fulgor de uma Ideia que deve iluminar a acção histórica do país e dos seus agentes sociais. A Ideia tem uma força messiânica: [perante a alma ou espectro de Nun’Álvares, as glórias passadas, o doido exclama] A epopeia gigante! No entanto, essa energeia da Ideia, não pode ser revista sem uma consciência crítica – o doido qual anjo da história de Benjamin, na décima primeira tese sobre a Filosofia da História, repara e pára para olhar para trás e perceber que nada mais resta do que um monte de ruínas. E as suas asas estão paradas e ele permanece mudo e quedo a olhar o monte de vidas arruinadas - para que o que em seu nome está consumado possa ser analisado. É daí que dimana a consciência ética do doido que só acontece porque, como veremos mais à frente, o doido se converte, depois dos crimes praticados em nome de um sonho ilusão – as conquistas históricas dos portugueses -, como Segismundo de Calderón de la Barca, num homem bom e por isso roga por perdão: Nesta alma de lobo eternamente! / Ó espada de dor, abre-me o peito! / Rasga de lado a lado o coração! / Rasga-o, meu Deus, e torna-mo perfeito, / Que eu te bendigo e louvo e me sujeito, / Sem uma queixa, aos golpes da tua mão! / Seja feita, Senhor, tua vontade, / venha o remorso igual à iniquidade, / Deus de justiça e luz, Deus de perdão!
Aqui reside um dos oximoros deste poema, pois Deus tanto é capaz do perdão como é “mentira eterna”. Deixemos propositadamente o Deus perdão para o fim, e comecemos por enquadrar este verso do poema que considera Deus [como uma] ilusão. Na história do pensamento barroco precisamente Deus não é uma transcendência, Deus é imanência, Deus é imanente à História e é tão natural como todas as coisas naturais, por isso impotente, por isso incapaz de salvar, ou abrigar a miséria humana no céu. Este Deus pensado pelo espírito barroco não tem céu, é um Deus caído na terra. E, por isso, é fundamental distinguir os dois momentos em que Deus é invocado no poema de Junqueiro. Antes de morrer nas farpas da turba, o doido exclama: Deus! Abandonas-me! Contudo, em plena tomada de consciência, de queda em si – a consciência que transforma a visão da potência de um país na revisão da sua impotência enquanto nação – e na consciência do seu excesso e desmedida, o doido interroga: Deus, onde estás?! …/ Deus! A mentira eterna! / Algum lobo voraz, / Mais piedoso que o Céu que nos governa, / Pode emprestar-me um antro, uma caverna, / Onde se durma e agonize em paz?!... Deus sem bondade, Deus sem poder interventivo no tempo, Deus sem altura e imerso na repetição com que vivos e mortos se sucedem sem redenção, expiando sem remissão a culpa e o pecado. Porque o rei, como espelho do país, é também sinal dessa imanência sem redenção para o próprio homem. O rei, como se esclarece no apontamento final pela mão do poeta, é o que não consegue abdicar, entre o estado de nascer e o estado de morrer, da condição animal, não se descentra de si, não sai da sua autocracia recebida por via bio-hereditária, não renuncia à esfera biopolítica e não acede à esfera ético-política. Então, o poeta põe a pátria - que à medida que a consciência crítica avança transforma o louco lamento em lúcida voz – a tomar consciência dos valores que faltam para cumprir Portugal. Esses valores o povo encontra-os, não nas mãos do banqueiros, mas nas mãos de quem possuir a literatura, o poema. O poema também ele aparentemente arruinado, pelo menos na sua forma física, encarna em si mesmo a ideia, na alma do povo desvanecida, de que o canto contido nos versos podem inspirar, numa alma colectiva, a ideia de que uma pátria em cinza pode voar como uma Fénix renascida. Por outras palavras, o destino e os actos dos homens podem ficar fechados num anel de fatalismo, mas as acções como as dos poetas, dos que compõem versos com a lira de Orfeu, abrem círculos inconclusos nas almas dos que o lêem. Mais do que Deus, é o poeta, Camões, o que salva o tempo da sua degradação, é o poema que preenche o tempo dos que o lêem e o cantam com esperança. Como se o poeta Junqueiro nos lembrasse que toda a leitura é espera, é espera esperançosa, de mudança e libertação. Não cabe a Deus, não cabe ao clero, não cabe ao rei, não cabe a nenhuma destas instâncias de poder a salvação. É ao poema que cabe a verdadeira redenção: ó lira d’oiro que abalaste o mundo! / Sonhos d’astros!...ó fúlgida epopeia! / canta, dá vida nova ao moribundo! (…) Levou tudo nas ondas…ficou isto! / Ficou na mão exangue a lira d’oiro,/ E é por ela existir que eu ainda existo!... O poema é o que funda e salva uma nação. Ou estas outras e contundentes palavras: sem o Banco de Portugal ficaríamos pobres 30 anos. Mas sem os Lusíadas ficaríamos pobres para sempre. As libras voltam. O génio não se repete.
É a linguagem que abre as portas de Babel para Deus. É a linguagem que abre as portas para um sonho que só ela funda: o sonho do imaginário. Citando Ernst Bloch, Steiner diz na sua obra, Depois de Babel, “ a essência do homem está em sonhar em direcção ao futuro, nessa sua faculdade compulsiva de deduzir o que não é a partir do que é agora, a consciência humana reconhece em todo o existente uma margem constante de inacabamento, de potencialidades suspensas que desafiam a sua consumação. A diferença em relação às demais espécies é que o homem possui o sentido do devir e o dom de poder encarar a história do futuro.”
Também nisso nos parece estar a loucura do doido, mais do que na de não saber quem é, ele é doido por declarar que é no poema que está a salvação, como Cristo ao declarar o Amor como lei única de toda a relação. Este é ao que parece e, num primeiro sentido, o rosto alegórico do poema de Guerra Junqueiro. O rosto do doido é o rosto daquele no qual se inscreveu a intempestividade histórica, a sua imperfeição, porque ele é aquele que dialecticamente, e quase morto – estava-o quase até ao aparecimento do espectro que lhe devolve a alma e o ânimo - tenta ascender à significação do poema que se decompõe materialmente nas suas mãos. Mas, de acordo com a definição de experiência alegórica, ou expressividade alegórica no drama barroco alemão, Benjamin mostra que a experiência dolorosa permanece irredimível porque a experiência da queda e a ruptura do homem com o estado de graça impedem o homem de se libertar dos grilhões do tempo e da morte. A experiência alegórica é a experiência do homem desgraçado, do homem para quem o tempo é a descontinuidade com o estado de graça. Ora, aquilo que nos parece ser a superação do drama, no poema de Junqueiro, é a transfiguração, operada pela visão do doido, de uma imagem desfigurada, arruinada pelo tempo, um livro que contém um poema - que desvela uma significação primitiva, a descoberta do mítico rei de Uruk, Gilgamesh - no livro que contém a alma da nação. Antes de chegar a esta compreensão alargada, ampla, fundante, o doido mergulha em dor e na experiência sacrificial da natureza e da história, e conhece apenas a condição de ser pátria desgraçada. A reunião disso que a natureza separa, a imortalidade e a significação, no livro – a verdadeira descoberta do sentido da escrita e de Gilgamesh -, permite a superação da visão dramática. O poema concede a graça a quem o ler: Lira de Orfeu! Meu único tesoiro! / (…) Pudesse eu, d’alma livre e resoluta, (…) / Erguer ainda os braços para a luta! / Não, como outrora, para a luta ardente / da riqueza e grandeza, que é vaidade, … / Da fortuna, que é sombra que nos mente… / Seja a hora do prélio e Eternidade! / (…) / A batalha do Amor e da Verdade.
Como se o doido descobrisse que aqueles a quem o divino concede um livro, o poema, a esses somente, estivesse garantida a salvação, porque esses saltaram da lei do tempo – esses são os que se foram da lei da morte libertando – e inscreveram a sua acção acima dele. No entanto, emprestam essa possibilidade aos que o lêem e cantam, pois esses são contagiados pela vida nova. Nesse sentido, a vida nova é aquela que Cristo dá a Lázaro, é aquela que Jesus garante ao homem arrependido que está ao seu lado na cruz, que Deus concede a Cristo na ressurreição ao terceiro dia, que dá ao poeta para rever Beatriz. Aquele que lê ganha ânimo, aquele que lê salva o corpo do sepulcro, aquele que lê, amando o que foi obra de Amor e de Verdade deixará, como Lázaro e Cristo, o túmulo vazio, conhecerá o Paraíso. Esse é o poder da linguagem que pode mais do que todas as instâncias económicas e políticas . O poder da linguagem consiste em nomear o que Deus não quer ver esquecido: neste caso a alma dos grandes da pátria, a pátria que com eles se confunde.
A transmutação do doido em símbolo ocorre e com isso o poema deixa de ser dramático e passa a ser uma oração, à língua e aos escritores como luz, quando no interior da consciência do sujeito se exalta a íntima unidade do tempo com o intemporal, do homem com o divino, do pátria com os heróis míticos. Essa oração pede perdão a um Deus que está acima da natureza e já não fechado nela. Perdida a visão autocentrada do doido e da nação, desfeita em lágrimas, em acto de contrição, a consciência pode ascender a uma condição mais do que humana, divina, santa: Como nascer em pútrida gangrena, / Sob os olhos de Deus, a flor de encanto, / Vaso ideal, a mística açucena! / Como? Chorando; derretendo em pranto / As máculas do crime; e o criminoso, / vestido de esplendor, ficará santo.
Deus só é imanente enquanto Cristo, Deus enquanto Deus está para além da cruz que é, afinal, a natureza a que se está aprisionado. Ou melhor, a cruz é uma janela por onde o homem avista Deus e por onde Deus avista o homem. Deus abandonas-me! , só pode ser o grito de quem ainda dirige os olhos para o mundo e, por isso, este grito parece ser alvo de surda audição, mas é também o lugar de onde Deus olha os que elege e Deus deixa de estar como nome no poema, porque Dele o poeta só escreve: Mistério…mistério…invisivelmente, saudando a luz [Cristo-Sol], as cotovias gorjeiam… A luz é a experiência da absolvição. A linguagem é o intermediário entre a natureza e Deus, mas culminando a entrega dos nomes no poema, o poeta pode render-se ao silêncio e à oração, oração à luz. O silêncio de Deus, a sua misteriosa aparição, em luz e silêncio, é a graça do perdão. Nem mais lágrimas, nem mais palavras. Aquele que toca o mistério do poema e da linguagem parece ser tocado pelo mistério de Deus.
Nota: esta é a segunda parte. Continuo sem saber colocar as notas o texto e em baixo, como se se tratasse de notas de rodapé. E estou muio cansada e não consigo colocar os itálicos. Desculpem.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Pátria, Sonho de Luz



Abertura


O nosso intuito ao elaborar esta breve reflexão sobre o poema a Pátria de Guerra Junqueiro é pensarmos a partir de duas categorias fundamentais na tradição ocidental em que toda a poesia se inscreve, a saber, determinar se se trata de um poema trágico ou de um poema dramático. Aquilo que nos propomos defender é que o poema de Junqueiro não é um poema trágico, mas também não é puramente dramático à maneira dos textos de Calderón de la Barca, apesar das semelhanças que encontramos entre o texto do poeta português do século XIX, agora em análise, e o poema do dramaturgo do século de ouro espanhol, nomeadamente no texto A Vida é Sonho. Na Pátria há uma superação do drama em oração, numa confissão com que o Doido, a própria pátria enlouquecida e esquecida da sua verdadeira natureza e vocação, se redime em palavras-lágrimas de toda a culpa, tornando este poema num livro de confissões que, como diz Derrida das de Santo Agostinho, é um livro de lágrimas.
No nosso trajecto começaremos, em primeiro lugar, por mostrar sucintamente que a Pátria não é um poema trágico. Não o faremos a partir dos traços destacados por Nietzsche cujo contributo para a definição da especificidade dos poemas gregos de Sófocles e Eurípides foi inolvidável – mas nos parece academicamente esgotado e repetido – mas antes levando em linha de conta os contornos apontados por Steiner na sua obra A Morte da Tragédia. De seguida, tentaremos mostrar que, apesar das coincidências e convergências existentes entre A Pátria e A Vida é Sonho, poema dramático e paradigmático da época e do espírito barrocos e da semelhança entre as categorias centrais do barroco e do poema do poeta português do século XIX – sobretudo com base na especificidade da obra dramática e barroca apontada por Walter Benjamin e Giorgio Agamben – há, no deste último, uma superação do espírito dramático destituído de uma visão messiânica do tempo e da história. Com efeito, se naquele há a concepção de que a vida é sonho, ilusão, no poema do poeta finissecular prevalece a visão de que a pátria é um sonho de luz, de modo semelhante à transfiguração de Cristo na Cruz, de modo similar à esperança, que é a última das virtudes da caixa de Pandora, a que colhe, como Kafka bem reparou, os desesperados, mas não a que cobre ou esconde o que não se pode encarar de frente. Luz que a pátria crucificada reacende e que se desvelou nessa transfiguração da dor da louca pátria na redenção luminescente que tão bem expressa e complementarmente se encontra no poema Oração à Luz:


Cruz que, vindo de Deus, trespasse o Inferno,
Cruz abarcando toda a imensidade,
Cruz onde um Cristo, o Amor Eterno,
Chore sem fim a dor da Eternidade!...
(…)
Monstro de dor nos ermos do Infinito,
Ó Sol crucificado, ó Sol bendito!
Tua carne de fluidos e metais
É a carne-embrião do mundo todo,
Das águas e das rochas e do lodo,
Que foram nossas mães e nossos pais!
Por isso lanças para nós teu grito
Por isso voam para nós teus ais!
São teus ais sem fim de moribundo
A luz, esp’rança, que electriza o mundo.
O oiro divino das manhãs formosas
(…)
Bendito o Cristo-Sol na cruz ardente
O monstro-mártir, que infinitamente
Por nós expira, soluçando luz!


No poema agora citado, Cristo é a luz, a esperança embrionária de um novo mundo que supera o dos antepassados, água, rocha e lodo, Cristo é identificado com o Sol, um Sol que soluça luz. Sol que chora e, na dor e nas lágrimas, encontra a passagem para um esplendor que a tudo incendeia de seiva redentora. Ora, precisamente, na Pátria, o louco país chora em palavras os seus antepassados, que na lama esqueceram a alma , morre e renasce, como Cristo, na cruz-luz. Por isso, é legítimo subentendermos que a Pátria é a oração, poema-oração, que tenta impelir a passagem da pátria desolação, à pátria assombrada pela luz, Pátria-Sol, e por uma visão, escondida nos símbolos, da cruz e da espada. A criança é, no final do poema, a que armada e iluminada construirá a nova pátria justa, a dos heróis encarnados em homens e que retirariam da sombra e da fantasmagoria os heróis fechados no esquecimento e nos livros desfeitos pela não memória dos feitos iluminados da nação, n’ Os Lusíadas.


Aproximação Crítica
A Pátria não é um poema trágico


Para Steiner no poema trágico o herói encontra abertas as portas do Inferno e a condenação é insuperável. O herói nunca consegue escapar à dor irredimível porque a sua consciência da culpa é tardia e não há desculpa aceitável perante os juízes supremos. O poema trágico insiste, pela exploração da acção do herói, na manifestação de uma falha, de um paradoxo que consiste na dissonância existente entre os fins dos homens e os fins inexplicáveis, implacáveis e inobserváveis, pelos olhos da carne e do espírito dos humanos, da própria Vida. Nisso Steiner não anda longe de Nietzsche quando este sobrevaloriza com Kant, No Nascimento da Tragédia, por ter pensado que a realidade última de tudo está para além do fenómeno. Neste sentido, Steiner, na linha do pensador germânico, tenta mostrar que são mais os movimentos numénicos da vida do que os fenoménicos e que, no âmago desconhecido da Vida, moram forças para sempre irreconhecíveis, inapreensíveis e imprevisíveis pelo sujeito do conhecimento e da acção. No entanto, é contra aqueles que a vontade do herói trágico, de modo impróprio, embate, provocando a desagregação da vida individual em culpa e sofrimento. Porque a tragédia é anti-cristã ou o cristianismo é anti-trágico, Steiner relembra, a cada passo desta obra em que nos baseamos, A Morte da Tragédia, que a essência última do trágico é a permanência sem redenção da ferida na alma daquele que cometeu a falta, enfatizando o carácter acessório da peroração do herói, ou dos que com ele cooperam para a eliminação, ou atenuação dessa dilaceração sem fim. Não há indagação possível sobre as razões dessa magnífica litania que é o canto enlutado , como chama Nicole Loraux à tragédia, não há possibilidade sequer, por mínima que seja, de aproximação entre o herói trágico e Job. Job não é trágico como é Prometeu, como é Édipo. Porque Job é cristão.
Apenas estes borrões gerais mas certeiros, de um pensador atento ao pormenor diferenciador, nos permitem verificar que o poema de Junqueiro não é trágico. O herói que, do nosso ponto de vista, é o Doido, o louco-país, é, sem dúvida alguma, remetido para uma condenação e para um Inferno em vida. Como Cristo é um herói crucificado pela turba - no final do poema, ébria de ignorância, ébria de inconsciência, constituída por homens desregrados que “entoam, epilépticos de álcool, uma canção infrene e vagabunda. (…) Apenas o descobrem, estacam de súbito, ladrando raivosos e covardes, como a dizer: Ei-lo! Aí o tendes. – O velho herói, pálido de morte, fita-os soberanamente desdenhoso. [E o herói] estende os braços para a Dor.” – mas essa condenação, essa expiação é catártica e purificadora, atempada e libertadora. O herói, colectivo porque é a nação, reconhece que falhou, porque a visão de Nun’Álvares é esclarecedora das razões da ruína, da míngua da nação: a espada não devia ter servido para derramar sangue, a espada deveria ter servido para espalhar as sementes do pão, ou para ceifar o trigo. Por outro lado, o arrependimento não é tardio, sabemo-lo em virtude do poeta terminar de modo simbólico, deixando a criança contemplar a crucificação e deixando-a transformar a espada do herói espectralizado no que houvera de vir. Um país que deixa a uma criança símbolos deixa-a com a única herança capaz de multiplicar o que é espiritual, a justiça, o amor e a verdade , porque os símbolos são o tesouro espiritual da humanidade e por isso sobre eles se fundam as religiões que só e por seu intermédio se perpetuam.

Nota: Trata-se do início de um breve e humilde ensaio. Faltam aqui páginas...Não consigo colocar as notas de rodapé nem no corpo do texto. Ensaia-se como fica, ainda assim a sua legibilidade. Que o texto celebre a luz que inunda a vida, nestes dias.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Swami Suddhananda em Lisboa




No âmbito do curso de Filosofia e Estudos Orientais, o Swami Suddhananda (Suddhananda Foundation for Self-knowledge) dará uma prelecção no dia 21 de Julho (quarta-feira), pelas 18h, no Anfiteatro III da Faculdade de Letras de Lisboa. Suddhananda é mestre do Vedānta e falará sobre o tema: "Happiness: here and now".

Resumo (em português) da conferência:
No âmbito dos princípios expressos na Bhagavad Gita, Upanishads, entre outros textos, serão abordados os seguintes temas fundamentais: a natureza e os mecanismos da mente e do corpo e suas ligações intrínsecas; o eu e sua relação com os seres e mundo à sua volta; a consciência que tudo “testemunha”.

Sai de ti...mas volta!

A "política" da meditação

A atividade ‘política’ que é meditar
Se podemos alcançar estado desperto não-dual e não-conceitual na meditação, estamos engajados em uma profunda atividade “política”, mesmo que possamos perder essa consciência nos períodos em que não estamos formalmente meditando (o estado desperto de Buda na pós-meditação é o mesmo durante a meditação).

Meditar em estado desperto não-dual e não-conceitual, que é meditar no dharmadatu, imediatamente começa a destruir de modo sistemático em nós a estrutura da consciência dualista com todos os obscurecimentos cognitivos e emoções aflitivas auxiliares. Do ponto de vista da dualidade, já que essa consciência dualista também envolve outros seres sencientes, que são o outro pólo da nossa dualidade, nossa atividade em dissolver essa consciência tem um impacto profundo neles também.

Enquanto nossa meditação não-dualista e não-conceitual está purificando nossos próprios obscurecimentos e aflições, e assim transformando nossa vivência pessoal dos outros, ela também se torna uma faísca da atividade de Buda para esses outros. Assim que nossa meditação se torna eficaz, a atitude dos outros em relação a nós começa a mudar, e eles mesmos começam a se voltar para dentro para procurar com mais consciência entre as coisas de suas mentes e vidas por soluções espirituais para os problemas.

E assim que o poder de nossa meditação aumenta, esse efeito alcança círculos concêntricos cada vez maiores de seres sencientes com quem temos interdependência cármica, que hoje nesta era incluem não apenas nossos mais próximos amigos, parentes, colegas de trabalho e da comunidade, mas também qualquer ser a quem estejamos conectados através de toda a interface de nossas vidas.

Khenchen Thrangu Rinpoche (Tibete, 1933 ~)
“The Ninth Karmapa’s Ocean of Definitive Meaning”
(Dharma Quote of The Week – Snow Lion, 24/06/2010)

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Generalidades

Nos últimos anos do século passado, fruto do desenvolvimento das sociedades humanas, preparávamo-nos para melhores níveis de qualidade de vida. O desenvolvimento da ciência e da técnica permitiam-nos sonhar com o controle da explosão demográfica, com a eliminação da pobreza, com uma redução substancial do número de horas de trabalho.

Sobretudo nos países mais desenvolvidos, mas um pouco por todo o mundo, fomos assistindo a um extraordinário incremento da protecção social, desenvolveu-se a saúde, aumentou-se a esperança média de vida, tentou-se eliminar, ou pelo menos, reduzir o trabalho infantil. O grande desenvolvimento das novas tecnologias e, de alguma forma, a substituição do homem pela máquina, indiciavam um mundo mais livre, onde o lazer e a criatividade se oporiam a um mundo de grande dependência face ao processo produtivo.

A ruína dos socialismos a leste, a queda do muro de Berlim e uma consequente maior democratização do mundo, foram vistas associadas a essa vitória das liberdades essenciais. O liberalismo assumiu-se, então, como o sistema político de excelência, tudo justificado pela vitória na "Guerra Fria" dos aliados ocidentais.

Mas, afinal, a grande supremacia acalentada pelas democracias ocidentais era mais frágil do que parecia. A crise económica depressa se fez anunciar. O capitalismo financeiro com facilidade se instalou nos centros de poder e o desenvolvimento social a que fomos assistindo na segunda metade do século XX, depressa começou a ser atacado.

Regressou o fantasma do equilíbrio demográfico, agora revelado, no ocidente, pela diminuição das taxas de natalidade e consequente envelhecimento das populações. O sistema de segurança social é posto em causa. O desemprego atinge percentagens que há muito não se via. Torna-se necessário trabalhar mais, produzir mais, competir mais, exportar mais, porque se destruíram as finanças públicas e, mesmo assim não chega, porque as potências emergentes (China, Brasil…) desenvolvem-se a um ritmo que ameaça a hegemonia ocidental e com facilidade nos ganham nas trocas comerciais, mesmo com a Organização Mundial do Comércio a dificultar-lhes a manobra.

E, nisto tudo, onde ficarão os grandes desequilíbrios ecológicos, as alterações climáticas, o esgotamento de recursos do planeta, a devastação florestal, a poluição dos rios e dos mares, a enorme acumulação de lixos vários, os direitos humanos, os direitos dos animais, a necessidade de uma alimentação saudável, de uma calma mental, de uma filosofia justa e, delírio dos delírios, o merecimento de conquistar a Vida para lá da morte?

O mundo está em rápida mudança, o debate está em aberto. Uma maior consciência cívica é necessária. A participação dos cidadãos é fundamental. O espírito democrático precisa substanciar-se. A organização política precisa de se merecer. Precisamos de saber sentar-nos a uma mesma mesa e aprender a conversar em vez de discutir.

É por isso que esta nossa parte do Estudo Geral(VER AQUI) aposta num espírito plural onde todos caibam. E se aprendemos com profetas e ascetas, com Cristo e Buda, que é o amor altruísta, o amor ao próximo, o que mais interessa, como podíamos nós trocar o geral pelo particular.

Luís Santos

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Swami Suddhananda em Lisboa

Swami Suddhananda
21//22//23 de Julho // LISBOA

Ensinamentos védicos (Vedanta)
“Happiness: here and now”

Dia 21 // 18h // Anfiteatro III da Faculdade de Letras de Lisboa
Dia 22 // 19h // Comunidade Hindu de Lisboa (Telheiras)
Dia 23 // 19h // Museu do Oriente

Entrada Gratuita (aceita-se donativo)

No âmbito dos princípios expressos na Bhagavad Gita, Upanishads, entre
outros textos, serão abordados os seguintes temas fundamentais: a natureza
e os mecanismos da mente e do corpo e suas ligações intrínsecas; o “Eu” e
sua relação com os seres e mundo à sua volta; a consciência que tudo
“testemunha”. A reputação que o Swamiji tem desenvolvido prende-se, para
lá da sua formação espiritual, com o humor e habilidade que possui em tornar
facilmente compreensível os grandes conhecimentos presentes nas
escrituras védicas.

Informações
Joana Cadete
estudio.yoga.ericeira@gmail.com
telem. 917 074 826
www.selfknowledge.in