A Pátria não é um poema dramático
Na sua obra A Origem do Drama Barroco Alemão, Walter Benjamin apresenta aquelas que são as categorias que distinguem o drama do trágico. O filósofo considera que as categorias centrais dessa diferenciação são a presença da melancolia, da repetição associada ao aparecimento dos duplos e da morte, a consciência da ruína, o jogo entre berço e sepulcro, a imanência de Deus e a sua queda no mundo natural e a existência de um tempo que o autor designa por tempo não preenchido. Por fim, mas não menos importante, no drama constata-se sempre a presença do registo alegórico e a sua sobreposição ao simbólico porque, em suma e numa só palavra, todo o drama é alegoria.
Ao focarmos a nossa exegese no poema de Junqueiro não podemos deixar de imediatamente apreender o sentido e o sentimento constantes do tom melancólico. O poeta diz isso mesmo na didascália do canto XXII , mas existe em toda a balada do poema esse sentimento próprio de alguém que cisma, de alguém que entristece, de alguém que sendo primeiro o espectro e
depois o doido, perde a apetência pela linguagem inflamada, entusiasmada do encomiasmo ou da exaltação que em outros poemas nacionais existe sobre a pátria, nomeadamente n’Os Lusíadas, e tende para o silêncio daqueles que, como S. Jerónimo, meditam e só encontram, por detrás de todas as formas que contemplam, a figura repetida da morte. Este é o poema de uma pátria que jaz no chão como o rei. O melancólico é aquele que, ensimesmado e em monólogo, se centra na reflexão daquilo que deseja mas de que não pode apropriar-se. A morte é esse desejo latente, até porque ela é o fim desejado para esse mesmo dilaceramento, ou estrangulamento do sentido que o homem não vislumbra por detrás da aparência das coisas. Afinal, que sentido há num país onde tudo se arruína, onde tudo se amesquinha, da economia à moral, em todas as classes, do clero à classe política, onde nada nem ninguém se distingue pela virtude, pela honestidade, pela sageza concentrada que lhe permita antecipar o todo e leve, enfim, a nação ao colo como uma criança? A emergência simbólica da criança é aqui o alvo do olhar desse que comunica com o objecto do seu desejo pelo desvio, ou pela carência . A criança é esse desvio e fuga relativamente à morte do país, em relação ao que está em falta: renascer. Todavia, a consciência do renascer só é agudo, só é intenso, quando a morte é uma ameaça, uma seta apontada ao coração da vida. A criança é a inversão do olhar que recai sobre a caveira, a morte. Ela é a que se espera, para cessar o desespero, sobre a terra: Os braços da criancinha estendem-se com avidez, numa alegria doida…Nobre montante, qual o teu destino? Sulcarás, relha de arado, a gleba deserta do camponês? Nas mãos dessa criança, um dia homem, brilharás acaso, espada de fogo e de justiça? Mistério…mistério…”
Afinal, neste jogo entre a criança que se vê e entre a morte que se entrevê e antevê, encontramos espelhado, no reflexo dos espelhos barrocos que constroem um duplo para tudo, o binómio entre o berço e o sepulcro. Dicotomia central do pensamento barroco, o homem sabe que a vida é um percurso que se esvai sem que haja liberdade, na aceitação de um destino. No drama, com efeito, o herói não age. O herói está condenado à aceitação de um destino em que, como é o caso do doido que se pensa a si mesmo na figura do herói Nun’Álvares, a espada fez nascer e a espada fez perecer, numa dualidade reversível e que o poema exprime de forma cabal: Minha espada de herói, ó cruz de morte e ainda, antes aparelhara o meu calvário, / Antes a minha tumba silenciosa / Com o tronco do roble funerário! Com efeito, apesar da doidice e do estado de confusão, o doido sabe que ele é o outro herói, Nun’Álvares, ele é o espectro, o que é mortal e está moribundo/a, esse espectro que assusta o rei e o deita por terra, é uma metonímia da pátria. Que é a pátria, de acordo com o livro esmaecido e arruinado que tem na mão? N’Os Lusíadas a pátria não é senão o elenco dos feitos e dos heróis, por isso aquilo que parece uma perturbação da identidade própria de um louco, de um doido – [olhando o espectro] Muito ao longe…Ora espera! ...Já sei! Não era irmão, não era! ... /Fui eu próprio! ... Fui eu assim! ... Fui eu! Fui eu! Fui eu! É tal e qual…é exacto, / O meu retrato! ...Fui eu! - nada mais é do que a verdade. A pátria é o herói, os heróis são a pátria. O doido confunde-se, como nos dramas barrocos, com os espectros, pela antecipação da morte, e confunde-se com os heróis, pela repetição de tudo em tudo, num jogo de duplos em que cada coisa é a sua contrária e/ou a sua complementar. Repare-se que o herói das conquistas nada mais é, afinal, do que a alma de um corpo, a louca-pátria: Regressas ao teu lar, alma divina, / Para morrer aqui; / E no teu lar contemplas uma ruína, / E ele sombra de ti! … / Entra no lar…entra no túmulo…descansa…/ Alma pobre, varada de amarguras, / Alma sem fé e sem esp’rança!
Como se aqui se fizesse alusão a uma possível explicação para a doidice da pátria: ela andava desalmada, sem alma. A alma errante paira como uma sombra no palácio que arde, causando à alma uma experiência de intenso deleite na contemplação de uma forma arruinada. A alma reencontrada - a nobre alma dos antepassados, não a infame que tinha governado e jazia por terra depois da assinatura do ultimatum - precisava, para recuperar a ideia perdida de pátria, da ruína. Ora, neste aspecto, o de uma alma concentrada, debruçada, na contemplação apaixonada da ruína – Dobram os sinos…dobram os sinos…Deixa dobra! / Foi Deus que deitou fogo àquilo tudo… / Quem no há-de apagar?! … / (…) E eu vou ter, que prazer!, / Mal sabeis…mal sabeis o que eu vou ter!... / A minha alma! A minha alma! Nova…nova, / Como um sol de aleluia a refulgir! E estava ali presa numa cova… - encontramos outro aspecto fundante do espírito barroco e do espírito dramático. Só na ruína se recupera a ideia, que aqui deve dizer-se Ideia de pátria. No fragmento reside, por isso mesmo, o que salva, o que redime. A partir dessa forma arruinada, a do palácio, metonímia da monarquia, forma de poder e governação que conduziu à pobreza, à fome, ao frio, à miséria, à noite de horror , o doido vê o reverso, o que brilha, o que vem, como diz ao espectro vagabundo na penumbra de um país, iluminar um túmulo vazio [?!] Porque ainda que a ruína lembre aos homens que tudo é fugaz e nada é eterno, pois nenhuma obra humana o é, a alma recuperada, a consciência de si reencontrada, permite prever o futuro no que refulge do passado, a saber, o fulgor de uma Ideia que deve iluminar a acção histórica do país e dos seus agentes sociais. A Ideia tem uma força messiânica: [perante a alma ou espectro de Nun’Álvares, as glórias passadas, o doido exclama] A epopeia gigante! No entanto, essa energeia da Ideia, não pode ser revista sem uma consciência crítica – o doido qual anjo da história de Benjamin, na décima primeira tese sobre a Filosofia da História, repara e pára para olhar para trás e perceber que nada mais resta do que um monte de ruínas. E as suas asas estão paradas e ele permanece mudo e quedo a olhar o monte de vidas arruinadas - para que o que em seu nome está consumado possa ser analisado. É daí que dimana a consciência ética do doido que só acontece porque, como veremos mais à frente, o doido se converte, depois dos crimes praticados em nome de um sonho ilusão – as conquistas históricas dos portugueses -, como Segismundo de Calderón de la Barca, num homem bom e por isso roga por perdão: Nesta alma de lobo eternamente! / Ó espada de dor, abre-me o peito! / Rasga de lado a lado o coração! / Rasga-o, meu Deus, e torna-mo perfeito, / Que eu te bendigo e louvo e me sujeito, / Sem uma queixa, aos golpes da tua mão! / Seja feita, Senhor, tua vontade, / venha o remorso igual à iniquidade, / Deus de justiça e luz, Deus de perdão!
Aqui reside um dos oximoros deste poema, pois Deus tanto é capaz do perdão como é “mentira eterna”. Deixemos propositadamente o Deus perdão para o fim, e comecemos por enquadrar este verso do poema que considera Deus [como uma] ilusão. Na história do pensamento barroco precisamente Deus não é uma transcendência, Deus é imanência, Deus é imanente à História e é tão natural como todas as coisas naturais, por isso impotente, por isso incapaz de salvar, ou abrigar a miséria humana no céu. Este Deus pensado pelo espírito barroco não tem céu, é um Deus caído na terra. E, por isso, é fundamental distinguir os dois momentos em que Deus é invocado no poema de Junqueiro. Antes de morrer nas farpas da turba, o doido exclama: Deus! Abandonas-me! Contudo, em plena tomada de consciência, de queda em si – a consciência que transforma a visão da potência de um país na revisão da sua impotência enquanto nação – e na consciência do seu excesso e desmedida, o doido interroga: Deus, onde estás?! …/ Deus! A mentira eterna! / Algum lobo voraz, / Mais piedoso que o Céu que nos governa, / Pode emprestar-me um antro, uma caverna, / Onde se durma e agonize em paz?!... Deus sem bondade, Deus sem poder interventivo no tempo, Deus sem altura e imerso na repetição com que vivos e mortos se sucedem sem redenção, expiando sem remissão a culpa e o pecado. Porque o rei, como espelho do país, é também sinal dessa imanência sem redenção para o próprio homem. O rei, como se esclarece no apontamento final pela mão do poeta, é o que não consegue abdicar, entre o estado de nascer e o estado de morrer, da condição animal, não se descentra de si, não sai da sua autocracia recebida por via bio-hereditária, não renuncia à esfera biopolítica e não acede à esfera ético-política. Então, o poeta põe a pátria - que à medida que a consciência crítica avança transforma o louco lamento em lúcida voz – a tomar consciência dos valores que faltam para cumprir Portugal. Esses valores o povo encontra-os, não nas mãos do banqueiros, mas nas mãos de quem possuir a literatura, o poema. O poema também ele aparentemente arruinado, pelo menos na sua forma física, encarna em si mesmo a ideia, na alma do povo desvanecida, de que o canto contido nos versos podem inspirar, numa alma colectiva, a ideia de que uma pátria em cinza pode voar como uma Fénix renascida. Por outras palavras, o destino e os actos dos homens podem ficar fechados num anel de fatalismo, mas as acções como as dos poetas, dos que compõem versos com a lira de Orfeu, abrem círculos inconclusos nas almas dos que o lêem. Mais do que Deus, é o poeta, Camões, o que salva o tempo da sua degradação, é o poema que preenche o tempo dos que o lêem e o cantam com esperança. Como se o poeta Junqueiro nos lembrasse que toda a leitura é espera, é espera esperançosa, de mudança e libertação. Não cabe a Deus, não cabe ao clero, não cabe ao rei, não cabe a nenhuma destas instâncias de poder a salvação. É ao poema que cabe a verdadeira redenção: ó lira d’oiro que abalaste o mundo! / Sonhos d’astros!...ó fúlgida epopeia! / canta, dá vida nova ao moribundo! (…) Levou tudo nas ondas…ficou isto! / Ficou na mão exangue a lira d’oiro,/ E é por ela existir que eu ainda existo!... O poema é o que funda e salva uma nação. Ou estas outras e contundentes palavras: sem o Banco de Portugal ficaríamos pobres 30 anos. Mas sem os Lusíadas ficaríamos pobres para sempre. As libras voltam. O génio não se repete.
É a linguagem que abre as portas de Babel para Deus. É a linguagem que abre as portas para um sonho que só ela funda: o sonho do imaginário. Citando Ernst Bloch, Steiner diz na sua obra, Depois de Babel, “ a essência do homem está em sonhar em direcção ao futuro, nessa sua faculdade compulsiva de deduzir o que não é a partir do que é agora, a consciência humana reconhece em todo o existente uma margem constante de inacabamento, de potencialidades suspensas que desafiam a sua consumação. A diferença em relação às demais espécies é que o homem possui o sentido do devir e o dom de poder encarar a história do futuro.”
Também nisso nos parece estar a loucura do doido, mais do que na de não saber quem é, ele é doido por declarar que é no poema que está a salvação, como Cristo ao declarar o Amor como lei única de toda a relação. Este é ao que parece e, num primeiro sentido, o rosto alegórico do poema de Guerra Junqueiro. O rosto do doido é o rosto daquele no qual se inscreveu a intempestividade histórica, a sua imperfeição, porque ele é aquele que dialecticamente, e quase morto – estava-o quase até ao aparecimento do espectro que lhe devolve a alma e o ânimo - tenta ascender à significação do poema que se decompõe materialmente nas suas mãos. Mas, de acordo com a definição de experiência alegórica, ou expressividade alegórica no drama barroco alemão, Benjamin mostra que a experiência dolorosa permanece irredimível porque a experiência da queda e a ruptura do homem com o estado de graça impedem o homem de se libertar dos grilhões do tempo e da morte. A experiência alegórica é a experiência do homem desgraçado, do homem para quem o tempo é a descontinuidade com o estado de graça. Ora, aquilo que nos parece ser a superação do drama, no poema de Junqueiro, é a transfiguração, operada pela visão do doido, de uma imagem desfigurada, arruinada pelo tempo, um livro que contém um poema - que desvela uma significação primitiva, a descoberta do mítico rei de Uruk, Gilgamesh - no livro que contém a alma da nação. Antes de chegar a esta compreensão alargada, ampla, fundante, o doido mergulha em dor e na experiência sacrificial da natureza e da história, e conhece apenas a condição de ser pátria desgraçada. A reunião disso que a natureza separa, a imortalidade e a significação, no livro – a verdadeira descoberta do sentido da escrita e de Gilgamesh -, permite a superação da visão dramática. O poema concede a graça a quem o ler: Lira de Orfeu! Meu único tesoiro! / (…) Pudesse eu, d’alma livre e resoluta, (…) / Erguer ainda os braços para a luta! / Não, como outrora, para a luta ardente / da riqueza e grandeza, que é vaidade, … / Da fortuna, que é sombra que nos mente… / Seja a hora do prélio e Eternidade! / (…) / A batalha do Amor e da Verdade.
Como se o doido descobrisse que aqueles a quem o divino concede um livro, o poema, a esses somente, estivesse garantida a salvação, porque esses saltaram da lei do tempo – esses são os que se foram da lei da morte libertando – e inscreveram a sua acção acima dele. No entanto, emprestam essa possibilidade aos que o lêem e cantam, pois esses são contagiados pela vida nova. Nesse sentido, a vida nova é aquela que Cristo dá a Lázaro, é aquela que Jesus garante ao homem arrependido que está ao seu lado na cruz, que Deus concede a Cristo na ressurreição ao terceiro dia, que dá ao poeta para rever Beatriz. Aquele que lê ganha ânimo, aquele que lê salva o corpo do sepulcro, aquele que lê, amando o que foi obra de Amor e de Verdade deixará, como Lázaro e Cristo, o túmulo vazio, conhecerá o Paraíso. Esse é o poder da linguagem que pode mais do que todas as instâncias económicas e políticas . O poder da linguagem consiste em nomear o que Deus não quer ver esquecido: neste caso a alma dos grandes da pátria, a pátria que com eles se confunde.
A transmutação do doido em símbolo ocorre e com isso o poema deixa de ser dramático e passa a ser uma oração, à língua e aos escritores como luz, quando no interior da consciência do sujeito se exalta a íntima unidade do tempo com o intemporal, do homem com o divino, do pátria com os heróis míticos. Essa oração pede perdão a um Deus que está acima da natureza e já não fechado nela. Perdida a visão autocentrada do doido e da nação, desfeita em lágrimas, em acto de contrição, a consciência pode ascender a uma condição mais do que humana, divina, santa: Como nascer em pútrida gangrena, / Sob os olhos de Deus, a flor de encanto, / Vaso ideal, a mística açucena! / Como? Chorando; derretendo em pranto / As máculas do crime; e o criminoso, / vestido de esplendor, ficará santo.
Deus só é imanente enquanto Cristo, Deus enquanto Deus está para além da cruz que é, afinal, a natureza a que se está aprisionado. Ou melhor, a cruz é uma janela por onde o homem avista Deus e por onde Deus avista o homem. Deus abandonas-me! , só pode ser o grito de quem ainda dirige os olhos para o mundo e, por isso, este grito parece ser alvo de surda audição, mas é também o lugar de onde Deus olha os que elege e Deus deixa de estar como nome no poema, porque Dele o poeta só escreve: Mistério…mistério…invisivelmente, saudando a luz [Cristo-Sol], as cotovias gorjeiam… A luz é a experiência da absolvição. A linguagem é o intermediário entre a natureza e Deus, mas culminando a entrega dos nomes no poema, o poeta pode render-se ao silêncio e à oração, oração à luz. O silêncio de Deus, a sua misteriosa aparição, em luz e silêncio, é a graça do perdão. Nem mais lágrimas, nem mais palavras. Aquele que toca o mistério do poema e da linguagem parece ser tocado pelo mistério de Deus.
Na sua obra A Origem do Drama Barroco Alemão, Walter Benjamin apresenta aquelas que são as categorias que distinguem o drama do trágico. O filósofo considera que as categorias centrais dessa diferenciação são a presença da melancolia, da repetição associada ao aparecimento dos duplos e da morte, a consciência da ruína, o jogo entre berço e sepulcro, a imanência de Deus e a sua queda no mundo natural e a existência de um tempo que o autor designa por tempo não preenchido. Por fim, mas não menos importante, no drama constata-se sempre a presença do registo alegórico e a sua sobreposição ao simbólico porque, em suma e numa só palavra, todo o drama é alegoria.
Ao focarmos a nossa exegese no poema de Junqueiro não podemos deixar de imediatamente apreender o sentido e o sentimento constantes do tom melancólico. O poeta diz isso mesmo na didascália do canto XXII , mas existe em toda a balada do poema esse sentimento próprio de alguém que cisma, de alguém que entristece, de alguém que sendo primeiro o espectro e
depois o doido, perde a apetência pela linguagem inflamada, entusiasmada do encomiasmo ou da exaltação que em outros poemas nacionais existe sobre a pátria, nomeadamente n’Os Lusíadas, e tende para o silêncio daqueles que, como S. Jerónimo, meditam e só encontram, por detrás de todas as formas que contemplam, a figura repetida da morte. Este é o poema de uma pátria que jaz no chão como o rei. O melancólico é aquele que, ensimesmado e em monólogo, se centra na reflexão daquilo que deseja mas de que não pode apropriar-se. A morte é esse desejo latente, até porque ela é o fim desejado para esse mesmo dilaceramento, ou estrangulamento do sentido que o homem não vislumbra por detrás da aparência das coisas. Afinal, que sentido há num país onde tudo se arruína, onde tudo se amesquinha, da economia à moral, em todas as classes, do clero à classe política, onde nada nem ninguém se distingue pela virtude, pela honestidade, pela sageza concentrada que lhe permita antecipar o todo e leve, enfim, a nação ao colo como uma criança? A emergência simbólica da criança é aqui o alvo do olhar desse que comunica com o objecto do seu desejo pelo desvio, ou pela carência . A criança é esse desvio e fuga relativamente à morte do país, em relação ao que está em falta: renascer. Todavia, a consciência do renascer só é agudo, só é intenso, quando a morte é uma ameaça, uma seta apontada ao coração da vida. A criança é a inversão do olhar que recai sobre a caveira, a morte. Ela é a que se espera, para cessar o desespero, sobre a terra: Os braços da criancinha estendem-se com avidez, numa alegria doida…Nobre montante, qual o teu destino? Sulcarás, relha de arado, a gleba deserta do camponês? Nas mãos dessa criança, um dia homem, brilharás acaso, espada de fogo e de justiça? Mistério…mistério…”
Afinal, neste jogo entre a criança que se vê e entre a morte que se entrevê e antevê, encontramos espelhado, no reflexo dos espelhos barrocos que constroem um duplo para tudo, o binómio entre o berço e o sepulcro. Dicotomia central do pensamento barroco, o homem sabe que a vida é um percurso que se esvai sem que haja liberdade, na aceitação de um destino. No drama, com efeito, o herói não age. O herói está condenado à aceitação de um destino em que, como é o caso do doido que se pensa a si mesmo na figura do herói Nun’Álvares, a espada fez nascer e a espada fez perecer, numa dualidade reversível e que o poema exprime de forma cabal: Minha espada de herói, ó cruz de morte e ainda, antes aparelhara o meu calvário, / Antes a minha tumba silenciosa / Com o tronco do roble funerário! Com efeito, apesar da doidice e do estado de confusão, o doido sabe que ele é o outro herói, Nun’Álvares, ele é o espectro, o que é mortal e está moribundo/a, esse espectro que assusta o rei e o deita por terra, é uma metonímia da pátria. Que é a pátria, de acordo com o livro esmaecido e arruinado que tem na mão? N’Os Lusíadas a pátria não é senão o elenco dos feitos e dos heróis, por isso aquilo que parece uma perturbação da identidade própria de um louco, de um doido – [olhando o espectro] Muito ao longe…Ora espera! ...Já sei! Não era irmão, não era! ... /Fui eu próprio! ... Fui eu assim! ... Fui eu! Fui eu! Fui eu! É tal e qual…é exacto, / O meu retrato! ...Fui eu! - nada mais é do que a verdade. A pátria é o herói, os heróis são a pátria. O doido confunde-se, como nos dramas barrocos, com os espectros, pela antecipação da morte, e confunde-se com os heróis, pela repetição de tudo em tudo, num jogo de duplos em que cada coisa é a sua contrária e/ou a sua complementar. Repare-se que o herói das conquistas nada mais é, afinal, do que a alma de um corpo, a louca-pátria: Regressas ao teu lar, alma divina, / Para morrer aqui; / E no teu lar contemplas uma ruína, / E ele sombra de ti! … / Entra no lar…entra no túmulo…descansa…/ Alma pobre, varada de amarguras, / Alma sem fé e sem esp’rança!
Como se aqui se fizesse alusão a uma possível explicação para a doidice da pátria: ela andava desalmada, sem alma. A alma errante paira como uma sombra no palácio que arde, causando à alma uma experiência de intenso deleite na contemplação de uma forma arruinada. A alma reencontrada - a nobre alma dos antepassados, não a infame que tinha governado e jazia por terra depois da assinatura do ultimatum - precisava, para recuperar a ideia perdida de pátria, da ruína. Ora, neste aspecto, o de uma alma concentrada, debruçada, na contemplação apaixonada da ruína – Dobram os sinos…dobram os sinos…Deixa dobra! / Foi Deus que deitou fogo àquilo tudo… / Quem no há-de apagar?! … / (…) E eu vou ter, que prazer!, / Mal sabeis…mal sabeis o que eu vou ter!... / A minha alma! A minha alma! Nova…nova, / Como um sol de aleluia a refulgir! E estava ali presa numa cova… - encontramos outro aspecto fundante do espírito barroco e do espírito dramático. Só na ruína se recupera a ideia, que aqui deve dizer-se Ideia de pátria. No fragmento reside, por isso mesmo, o que salva, o que redime. A partir dessa forma arruinada, a do palácio, metonímia da monarquia, forma de poder e governação que conduziu à pobreza, à fome, ao frio, à miséria, à noite de horror , o doido vê o reverso, o que brilha, o que vem, como diz ao espectro vagabundo na penumbra de um país, iluminar um túmulo vazio [?!] Porque ainda que a ruína lembre aos homens que tudo é fugaz e nada é eterno, pois nenhuma obra humana o é, a alma recuperada, a consciência de si reencontrada, permite prever o futuro no que refulge do passado, a saber, o fulgor de uma Ideia que deve iluminar a acção histórica do país e dos seus agentes sociais. A Ideia tem uma força messiânica: [perante a alma ou espectro de Nun’Álvares, as glórias passadas, o doido exclama] A epopeia gigante! No entanto, essa energeia da Ideia, não pode ser revista sem uma consciência crítica – o doido qual anjo da história de Benjamin, na décima primeira tese sobre a Filosofia da História, repara e pára para olhar para trás e perceber que nada mais resta do que um monte de ruínas. E as suas asas estão paradas e ele permanece mudo e quedo a olhar o monte de vidas arruinadas - para que o que em seu nome está consumado possa ser analisado. É daí que dimana a consciência ética do doido que só acontece porque, como veremos mais à frente, o doido se converte, depois dos crimes praticados em nome de um sonho ilusão – as conquistas históricas dos portugueses -, como Segismundo de Calderón de la Barca, num homem bom e por isso roga por perdão: Nesta alma de lobo eternamente! / Ó espada de dor, abre-me o peito! / Rasga de lado a lado o coração! / Rasga-o, meu Deus, e torna-mo perfeito, / Que eu te bendigo e louvo e me sujeito, / Sem uma queixa, aos golpes da tua mão! / Seja feita, Senhor, tua vontade, / venha o remorso igual à iniquidade, / Deus de justiça e luz, Deus de perdão!
Aqui reside um dos oximoros deste poema, pois Deus tanto é capaz do perdão como é “mentira eterna”. Deixemos propositadamente o Deus perdão para o fim, e comecemos por enquadrar este verso do poema que considera Deus [como uma] ilusão. Na história do pensamento barroco precisamente Deus não é uma transcendência, Deus é imanência, Deus é imanente à História e é tão natural como todas as coisas naturais, por isso impotente, por isso incapaz de salvar, ou abrigar a miséria humana no céu. Este Deus pensado pelo espírito barroco não tem céu, é um Deus caído na terra. E, por isso, é fundamental distinguir os dois momentos em que Deus é invocado no poema de Junqueiro. Antes de morrer nas farpas da turba, o doido exclama: Deus! Abandonas-me! Contudo, em plena tomada de consciência, de queda em si – a consciência que transforma a visão da potência de um país na revisão da sua impotência enquanto nação – e na consciência do seu excesso e desmedida, o doido interroga: Deus, onde estás?! …/ Deus! A mentira eterna! / Algum lobo voraz, / Mais piedoso que o Céu que nos governa, / Pode emprestar-me um antro, uma caverna, / Onde se durma e agonize em paz?!... Deus sem bondade, Deus sem poder interventivo no tempo, Deus sem altura e imerso na repetição com que vivos e mortos se sucedem sem redenção, expiando sem remissão a culpa e o pecado. Porque o rei, como espelho do país, é também sinal dessa imanência sem redenção para o próprio homem. O rei, como se esclarece no apontamento final pela mão do poeta, é o que não consegue abdicar, entre o estado de nascer e o estado de morrer, da condição animal, não se descentra de si, não sai da sua autocracia recebida por via bio-hereditária, não renuncia à esfera biopolítica e não acede à esfera ético-política. Então, o poeta põe a pátria - que à medida que a consciência crítica avança transforma o louco lamento em lúcida voz – a tomar consciência dos valores que faltam para cumprir Portugal. Esses valores o povo encontra-os, não nas mãos do banqueiros, mas nas mãos de quem possuir a literatura, o poema. O poema também ele aparentemente arruinado, pelo menos na sua forma física, encarna em si mesmo a ideia, na alma do povo desvanecida, de que o canto contido nos versos podem inspirar, numa alma colectiva, a ideia de que uma pátria em cinza pode voar como uma Fénix renascida. Por outras palavras, o destino e os actos dos homens podem ficar fechados num anel de fatalismo, mas as acções como as dos poetas, dos que compõem versos com a lira de Orfeu, abrem círculos inconclusos nas almas dos que o lêem. Mais do que Deus, é o poeta, Camões, o que salva o tempo da sua degradação, é o poema que preenche o tempo dos que o lêem e o cantam com esperança. Como se o poeta Junqueiro nos lembrasse que toda a leitura é espera, é espera esperançosa, de mudança e libertação. Não cabe a Deus, não cabe ao clero, não cabe ao rei, não cabe a nenhuma destas instâncias de poder a salvação. É ao poema que cabe a verdadeira redenção: ó lira d’oiro que abalaste o mundo! / Sonhos d’astros!...ó fúlgida epopeia! / canta, dá vida nova ao moribundo! (…) Levou tudo nas ondas…ficou isto! / Ficou na mão exangue a lira d’oiro,/ E é por ela existir que eu ainda existo!... O poema é o que funda e salva uma nação. Ou estas outras e contundentes palavras: sem o Banco de Portugal ficaríamos pobres 30 anos. Mas sem os Lusíadas ficaríamos pobres para sempre. As libras voltam. O génio não se repete.
É a linguagem que abre as portas de Babel para Deus. É a linguagem que abre as portas para um sonho que só ela funda: o sonho do imaginário. Citando Ernst Bloch, Steiner diz na sua obra, Depois de Babel, “ a essência do homem está em sonhar em direcção ao futuro, nessa sua faculdade compulsiva de deduzir o que não é a partir do que é agora, a consciência humana reconhece em todo o existente uma margem constante de inacabamento, de potencialidades suspensas que desafiam a sua consumação. A diferença em relação às demais espécies é que o homem possui o sentido do devir e o dom de poder encarar a história do futuro.”
Também nisso nos parece estar a loucura do doido, mais do que na de não saber quem é, ele é doido por declarar que é no poema que está a salvação, como Cristo ao declarar o Amor como lei única de toda a relação. Este é ao que parece e, num primeiro sentido, o rosto alegórico do poema de Guerra Junqueiro. O rosto do doido é o rosto daquele no qual se inscreveu a intempestividade histórica, a sua imperfeição, porque ele é aquele que dialecticamente, e quase morto – estava-o quase até ao aparecimento do espectro que lhe devolve a alma e o ânimo - tenta ascender à significação do poema que se decompõe materialmente nas suas mãos. Mas, de acordo com a definição de experiência alegórica, ou expressividade alegórica no drama barroco alemão, Benjamin mostra que a experiência dolorosa permanece irredimível porque a experiência da queda e a ruptura do homem com o estado de graça impedem o homem de se libertar dos grilhões do tempo e da morte. A experiência alegórica é a experiência do homem desgraçado, do homem para quem o tempo é a descontinuidade com o estado de graça. Ora, aquilo que nos parece ser a superação do drama, no poema de Junqueiro, é a transfiguração, operada pela visão do doido, de uma imagem desfigurada, arruinada pelo tempo, um livro que contém um poema - que desvela uma significação primitiva, a descoberta do mítico rei de Uruk, Gilgamesh - no livro que contém a alma da nação. Antes de chegar a esta compreensão alargada, ampla, fundante, o doido mergulha em dor e na experiência sacrificial da natureza e da história, e conhece apenas a condição de ser pátria desgraçada. A reunião disso que a natureza separa, a imortalidade e a significação, no livro – a verdadeira descoberta do sentido da escrita e de Gilgamesh -, permite a superação da visão dramática. O poema concede a graça a quem o ler: Lira de Orfeu! Meu único tesoiro! / (…) Pudesse eu, d’alma livre e resoluta, (…) / Erguer ainda os braços para a luta! / Não, como outrora, para a luta ardente / da riqueza e grandeza, que é vaidade, … / Da fortuna, que é sombra que nos mente… / Seja a hora do prélio e Eternidade! / (…) / A batalha do Amor e da Verdade.
Como se o doido descobrisse que aqueles a quem o divino concede um livro, o poema, a esses somente, estivesse garantida a salvação, porque esses saltaram da lei do tempo – esses são os que se foram da lei da morte libertando – e inscreveram a sua acção acima dele. No entanto, emprestam essa possibilidade aos que o lêem e cantam, pois esses são contagiados pela vida nova. Nesse sentido, a vida nova é aquela que Cristo dá a Lázaro, é aquela que Jesus garante ao homem arrependido que está ao seu lado na cruz, que Deus concede a Cristo na ressurreição ao terceiro dia, que dá ao poeta para rever Beatriz. Aquele que lê ganha ânimo, aquele que lê salva o corpo do sepulcro, aquele que lê, amando o que foi obra de Amor e de Verdade deixará, como Lázaro e Cristo, o túmulo vazio, conhecerá o Paraíso. Esse é o poder da linguagem que pode mais do que todas as instâncias económicas e políticas . O poder da linguagem consiste em nomear o que Deus não quer ver esquecido: neste caso a alma dos grandes da pátria, a pátria que com eles se confunde.
A transmutação do doido em símbolo ocorre e com isso o poema deixa de ser dramático e passa a ser uma oração, à língua e aos escritores como luz, quando no interior da consciência do sujeito se exalta a íntima unidade do tempo com o intemporal, do homem com o divino, do pátria com os heróis míticos. Essa oração pede perdão a um Deus que está acima da natureza e já não fechado nela. Perdida a visão autocentrada do doido e da nação, desfeita em lágrimas, em acto de contrição, a consciência pode ascender a uma condição mais do que humana, divina, santa: Como nascer em pútrida gangrena, / Sob os olhos de Deus, a flor de encanto, / Vaso ideal, a mística açucena! / Como? Chorando; derretendo em pranto / As máculas do crime; e o criminoso, / vestido de esplendor, ficará santo.
Deus só é imanente enquanto Cristo, Deus enquanto Deus está para além da cruz que é, afinal, a natureza a que se está aprisionado. Ou melhor, a cruz é uma janela por onde o homem avista Deus e por onde Deus avista o homem. Deus abandonas-me! , só pode ser o grito de quem ainda dirige os olhos para o mundo e, por isso, este grito parece ser alvo de surda audição, mas é também o lugar de onde Deus olha os que elege e Deus deixa de estar como nome no poema, porque Dele o poeta só escreve: Mistério…mistério…invisivelmente, saudando a luz [Cristo-Sol], as cotovias gorjeiam… A luz é a experiência da absolvição. A linguagem é o intermediário entre a natureza e Deus, mas culminando a entrega dos nomes no poema, o poeta pode render-se ao silêncio e à oração, oração à luz. O silêncio de Deus, a sua misteriosa aparição, em luz e silêncio, é a graça do perdão. Nem mais lágrimas, nem mais palavras. Aquele que toca o mistério do poema e da linguagem parece ser tocado pelo mistério de Deus.
Nota: esta é a segunda parte. Continuo sem saber colocar as notas o texto e em baixo, como se se tratasse de notas de rodapé. E estou muio cansada e não consigo colocar os itálicos. Desculpem.
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