domingo, 11 de julho de 2010

Pátria, sonho de luz (conclusão)

A Pátria é um poema-oração

A convergência de aspectos dramáticos no poema de Junqueiro e o fim do poema levam-nos necessariamente a pensar na relação entre Segismundo de Calderón de la Barca e o doido de Junqueiro. Em ambos, os personagens há uma conversão à luz, luz natural do homem, o sonho à luz sobrenatural na cruz. Essa conversão é o próprio caminho do poema e da poesia. Afinal, somos levados a indagar, que sonho é este, que luz se derrama sobre o culpado e sobre o inocente, sobre o doido e sobre a infância? Será que, à maneira de Calderón de la Barca, também Junqueiro defende que a vida é sonho?
Segismundo, personagem e herói do texto do autor espanhol intitulado A Vida é Sonho, é um personagem encerrado numa torre onde está incomunicável. Dada a sua condição, de estar privado de liberdade e submetido a um destino imposto pela vontade do pai e dos astros que o decretaram como parricida, este homem sem interlocutores interroga-se a si mesmo como fazem os loucos, como agem os que caminham solitários nos desertos, ou vivem ensimesmados no deserto do real. Segismundo é, por causa da má consciência do pai, transportado para o palácio, onde como num sonho, se vê inesperadamente a governar. A experiência desta ilusão – ser rei de um reino que não é seu – termina mal. Segismundo não sabe governar, só sabe matar. Todavia, a ilusão do poder foi a pedra de toque que o fez despertar. Regressado à torre, este príncipe apercebe-se de que a experiência dessa ilusão escondia uma verdade. Segismundo aprende duplamente o significado da ilusão: a ilusão engana e a ilusão esconde. Segismundo foi rei por enganosa tentativa de testarem a sua liberdade, mas é de facto o rei escondido que o pai aprisiona numa torre. Sendo as duas coisas, rei que pode sê-lo e rei que não o deixam ser, Segismundo é o paradigma do homem que, na experiência de viver e de estar vivo, percebe que a vida é uma oscilação entre liberdade e destino, sonambulismo e despertar, realidade e irrealidade, humanidade e heroísmo. A sua vida é uma oscilante passagem do sonho desventura ao sonho ventura. Porém a sua vida é um drama e não chega para ser trágica. Ele torna-se, com a ajuda do povo, rei. A sua vida que não tem acção, no sentido em que o que acontece não resultou senão de uma encenação do teatro da vida – ser rei quando o não era – e, encenação do teatro político que o aclama, não pode ser trágica porque ele se humaniza e, humanizar-se é aceitar estas oscilantes variações entre sonho e realidade, entre estar-se fechado na torre e ser-se impotente e ser-se livre e conhecer-se o poder do poder, no palácio. Para Segismundo o sonho tanto serve para mostrar que o homem não se deve entusiasmar com as suas grandezas como serve porque a vida é breve e há que ter nas mãos algo que evite o desengano do despertar. O homem trágico destrói o véu desta ilusão que oscila entre iludir-nos e enganar-nos no sentido em que ele se sabe melhor do que os seus deuses e é esta consciência que o priva da palavra que expressa não a opressão da sua culpa, mas o testemunho da honra do semi-deus, como lhe chama Holderlin. O silêncio do homem trágico é obscuro, na medida em que a luz do sonho se desfaz perante a vitória do semi-deus que é Diónisos, o que, tocando o homem, o torna estranho e morto aos olhos do mundo. Segismundo não é trágico e a sua acção é dramática, ele aclara e declara a vida como sonho: pois que a vida é tão breve, / sonhemos / outra vez; mas há-de ser / com atenção e conselho / de que havemos de despertar / deste gosto no melhor . Ao fazê-lo mostra como o sonho é um artifício que a consciência exige para se privar da experiência melancólica e da alegoria da natureza que é morte e assombração. O sonho de Segismundo não vem de longe, do fundo do passado morrendo ao longe, em sonho, nas obscuridades do porvir. O sonho de Segismundo é um sonho cuja luz irradia do próprio sujeito que reverte o movimento da consciência que caiu em si, num movimento de encadeamento de si. O sonho é uma potência de luz que distrai o homem da consciência da morte e da pena que é estar vivo. A consciência é o holofote de luz sobre o teatro do mundo.
O sonho do doido é diferente. É verdade que o doido, como Segismundo, numa primeira instância, está fechado no seu corpo e, sem alma, erra pelo palácio onde um espectro o anima. Esse espectro fala. Porque um livro é uma morada de espectros que nos falam, porque um livro é uma consciência distante que vem de longe, do fundo do passado morrendo ao longe, em sonho, nas obscuridades do porvir. No poema de Guerra Junqueiro, o livro é a alteridade que relembra e acusa o doido de um falso sonho de esplendor/sonho vão, mas contudo, é ele que, nas suas infinitas possibilidades de sentido lhe mostra que há ainda outra luta, uma outra luz dentro do sonho, a batalha do amor e da verdade .
Esse símbolo que ilumina a culpa e lhe revela o seu sentido último é o livro que lhe cai das mãos e que ele ergue e beija com fervor, ou seja, é o livro a fonte da grande revelação. O livro ilumina-o da mesma maneira que a visitação divina impele os homens para uma acção que está para além do seu poder e da sua vontade. Que diz o doido afectado por esta revelação? O doido perde, nesse instante de fulgurante apropriação de sentido, a sua identidade como herói. Metoníma da pátria, o doido deixa de se identificar com os heróis, com Nun’Álvares, e passa a identificar-se com um mártir. E é mesmo antes da crucificação que o doido se transforma em Cristo. O doido declara: A Dor, a eterna Dor, eis o meu gozo / (…) É a dor que liberta a criatura / Ó Dor, filha de Deus, mãe do universo. Essa transformação de herói em mártir não ocorre nem de forma trágica nem dramática. Esta identificação do doido com o mártir, que é o próprio Cristo, não é trágica porque o homem não se sente maior do que o divino e porque a sua decisão interior – ser como Cristo – não é canto enlutado, é canto entusiasmado. Por outro lado, esta identificação do doido com o mártir não é dramática porque se a Vida é Sonho é uma educação dos príncipes e da sua humanização, a Pátria é o percurso de um homem que se diviniza – a Dor o exalta, a Dor o diviniza.
Muitos vêem uma conversão em Segismundo, a conversão à prudência e à aceitação resignada de que a melhor forma de viver é sonhar, dentro da ordem natural do mundo, já que a vida é ela mesma sonho e os “sonhos, sonhos são”.
A conversão do doido de Junqueiro é mais profunda e está para além da resignação à ordem natural das coisas. O doido converte-se a uma ordem sobrenatural, ele abandona a ordem do mundo. A dada altura ele exclama - pudesse eu, d’alma livre e resoluta / (…) / erguer ainda os braços para a luta! - e esta exclamação condicional mostra o quanto o seu combate já não se faz com a espada. É Simone Weil quem diz o que aqui nos parece esclarecer o sentido da sua conversão e que coincide em perfeição com o fim do poema e o fim da experiência humana do doido: “quem quer que pegue na espada perecerá pela espada. E quem quer que não pegue na espada (ou a abandone) perecerá na cruz.”
Esta afirmação permite perceber que a Pátria não é nem um poema trágico nem um poema dramático, porque a cruz está para além do heroísmo trágico e da imaginação dramática. Então por que razão é o doido conduzido à cruz? Porque a sua alma está seduzida pela luz que é o amor de Deus pelos homens. “Deus consome-se, através da espessura infinita do tempo e do espaço, para atingir a alma e a seduzir. Se ela deixa arrancar de si, nem que seja pelo instante de um breve relâmpago, um consentimento puro e inteiro, então Deus conquista-a. E quando se torna em algo inteiramente dele, abandona-a. Deixa-a completamente só. E ela, por sua vez, deve, mas às cegas, atravessar a espessura infinita do tempo e do espaço, em busca daquele que ama. É assim que a alma refaz, em sentido inverso, a viagem que Deus fez em direcção a ela. E isso é a cruz.”
Essa luz que aclara o espírito do doido é a luminosidade de uma identidade derradeira entre o homem e o divino, identidade que só o poeta como criança apreende como mistério. Porque aquele que é arrebatado para a cruz não comunica mais essa experiência, essa experiência é a experiência de uma conversão para o inexprimível enquanto inexprimível. Aquele que nos pode dar conta dela é o poeta, a criança, que tomando nas suas mãos, como Maria e Madalena os panos de Cristo no sepulcro, os restos de uma experiência de redenção, compõe moradas para o divino. Essas moradas são a oração e o poema, um poema-oração em que o poeta, como o doido, pede ao que está para além do nome “seja feita a tua vontade”. O poeta é eleito para criar moradas em que repousam os que sofreram, esse lugar de repouso não é o sepulcro, é o livro. Em última instância o país, como se perceberá nas notas e apontamentos finais, não renascerá numa repetição de actos heróicos, mas numa repetição, do que liberta o heróico do esquecimento e do tempo, na criação do poema como oração. Invocação permanente do que pode abandonar-nos, do que pode ausentar-se e é o divino em nós: a alma. O poema é para os mortais o que a cruz é para os mártires: sonho de luz. Redenção da sua acção num imemorial que resplende fora da ordem natural do mundo e do tempo. Por isso, o poema é a pátria sobrenatural da alma de um povo e da vida e só ele redime a dor em luz.






Bibliografia
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