Liberto do anão que lhe pesava sobre os ombros, o qual, proclama, não conhece e não pode suportar o seu “pensamento abissal (abgründlichen Gedanken)”, Zaratustra detém-se junto de um portal (Torweg, que também significa literalmente “portão louco”), em cujo frontão está inscrito o nome “instante”, onde “se reúnem dois caminhos” frontalmente opostos, que ninguém ainda seguiu “até ao fim”: um estende-se para trás, o outro para diante e ambos duram uma eternidade. Formula então perguntas que simultaneamente se respondem: “Se alguém, todavia, seguisse por um destes caminhos, sem parar e até ao fim, julgas […] que […] se oporiam sempre?”. Contemplando o caminho eterno que se estende para trás, não deverá tudo o que é capaz de correr já o haver percorrido pelo menos uma vez? E não deverá tudo o que pode suceder já haver assim sucedido? Se tudo já foi, não devem também aquele portal, a aranha que rasteja ao luar, o luar, Zaratustra e o anão já haver existido? E não estará tudo tão intimamente interligado que aquele instante não arraste atrás de si todas as coisas futuras, incluindo a si mesmo? Não deverá tudo o que pode correr ter de percorrer uma vez mais o longo caminho que se estende para diante? Não será assim necessário que Zaratustra, o anão e todos percorram esse “longo e temível” caminho futuro e do passado regressem àquele instante?
Ao dizer isto, Zaratustra falava “em voz cada vez mais baixa”, com medo dos seus “próprios pensamentos e da sua oculta intenção”, quando ouve uivar um cão. Tudo se desvanece e encontra-se só perante um jovem pastor que se contorce, com o rosto desfigurado pela repugnância e pelo terror, pois uma forte cobra negra se lhe introduziu na boca, mordendo-lhe a garganta. Começa a puxar pela serpente, sem sucesso, até que uma voz grita pela sua boca: “Morde! Morde! / Arranca-lhe a cabeça! Morde!”. Ao gritar, “espanto, ódio, nojo, piedade”, tudo o que em si “trazia de melhor e de pior”, de si jorrava “num único grito”. Aqui Zaratustra interrompe a narrativa para pedir a todos, “exploradores” e “aventureiros” ou não, que lhe decifrem o enigma daquela visão” que é simultaneamente “previsão”: “Que vi então em imagem? E qual é o que deve chegar um dia?”; “Quem é o homem em cuja garganta se introduzirá assim o que há de mais negro e de mais pesado no mundo?”
Retomando a narrativa, o pastor morde firmemente a cabeça da serpente e cospe-a para longe, levantando-se “com um salto”. Já não é então pastor nem homem: “transformado, transfigurado (iluminado?), ria”, ria como nenhum homem o fez na terra. E o capítulo termina com a confissão:
“Ó meus irmãos! Ouvi um riso que não era um riso humano, e agora devora-me uma sede, uma saudade (Sehnsucht) que nada aplacará.
A minha saudade (Sehnsucht) daquele riso devora-me; oh!, como posso tolerar ainda a vida! E como tolerar agora a morte!”
- Fragmento da comunicação "O Eterno Retorno em Friedrich Nietzsche e Raul Proença", a apresentar no dia 29 de Outubro, no Colóquio "Proença, Cortesão, Sérgio e o grupo "Seara Nova"", que decorre de 28-30 de Outubro no Anf. III da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
4 comentários:
A instância medeia-o, à luz da verdade, e da circularidade continuada, o indivisível momento, para sempre inalcançável, como por destino renascido. No entanto, a percepção, revela-lhe as faces do anti-mundo, cujas leis reunidas, prefiguram o eterno, de áureo despertar perante idêntica realidade.
Assim possamos ouvir esse riso por toda a eternidade!
Trincada a cabeça da serpente, a si se devora em eterno riso o homem. Enontrando-se no sem tempo, no sem caminho e no anti-caminho.
Desencontrando-se se encontram; fastando-se mais se aproximam, encontrados eternamente se buscam...
O riso procurando o riso...
o bifurcado caminho a bíface visão
de todo o homem e de toda a coisa.
A pré-visão do passado e do futuro, tornado instante na Saudade divina e louca:a rir, como se tivesse provado o veneno do despertar; acima da sua altura,
sentindo-se deus e além de deus e da sua "morte".
Acima, acima, clamava!
"Deus é a ausência do livro, e o livro a lenta decifração da sua ausência.
Não existe Livro, fora de Deus."
Edmond Jabès, in "A Obscura Palavra do Deserto", Cotovia, trad. Pedro Tamen
A Serpente era o Livro na boca do pastor?
Talvez a serpente fosse o pastor na sua própria boca... Não sei. Ando agora mesmo a pensar nisso...
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