Salvador Dali, "The transparent simulacrum of the feigned image", 1938
No sítio em que os Transparentes dão o nome de Terra à estrela cadente dos répteis repartida em calafrios pedestres, a árvore genealógica dá frutos de crianças estranguladas. Descender é transportar um cobarde adiamento que em nós se faz o deserto de poros que não deixa passar a vida. Os pais pagam as lições aos filhos para eles aprenderem a não ser deuses. Mas quando o filho descobre que o professor é o pai a espreitá-lo atrás de um cacto de dentes canibais, bate com o pé e as batidas formam as sílabas do seu corpo sem peso. Porque a força da gravidade é a certeza antiga dos sáurios não poderem voar nos descendentes.[…]
Descender, descenda quem servir de escadote à autofixação dos cartazes que anunciam a sua vida. A minha vida não me foi anunciada. Comi-a até achar o seu sabor. Porque o sabor é a certeza daquilo que convém a cada um. Os que tudo envenenam com a sua vida amarga não têm paladar. São torres abandonadas pelos ascendentes que a elas pontualmente regressam para celebrar o baile anual dos morcegos. Acabo de vos descrever o historiador. Reproduzo-me, por isso, ao arrepio do tempo. Tudo começa no fim como o rio na foz que exige a nascente para que os passos sonâmbulos da água que se sonha um rio se despenhem nas passadas insones de um mar por sua vez modeladas por um outro fim que precisa desse andamento.
Natália Correia, “A mosca iluminada”, in “Poesia Completa”, Publ. Dom Quixote, Lisboa, 2000, pág. 311.
3 comentários:
Este texto é iluminado. O seu clarão deixa ver para além do "real", o real.
Mas no "sítio dos Transparentes", tal o é a Terra, já muitos devoram o sabor de si, livres da liberdade de querer ser deuses,quiçá o foram de Amor e de Cuidado.
O estrangulameto a que estamos sujeitos pela escada que ascendendo, desce, e descendendo sobe,sem que tenham que ter sido "estrangulados" ou fechados os tais "poros que não deixam assar a vida".
Ao fim - ou ao início -,tudo é, afinal, uma infinita gargalhada. O despertar ousado.
A Alegria está sempre a tempo. Ela é um dom que transforma. Vejo-a na ascendência e na descendência. E também o riso de que fala Zaratustra. O genial riso de quem "mata" pai e mãe.
Começa-se assim do fim para o princípio. Descendo e subindo a escada, Donis.
A Amizade.
Corrijo de imediato: No segundo parágrafo, onde se lê "assa", deve lêr-se "passa". Desculpem.
Assar também não ficava nada mal, Maria.
A gargalhada é o clarão que nos estruge (inventei o transitivo) a clareza límpida da liberdade que percorre uma tal escada em que os degraus mutuamente se geram e devoram.
Porque, na verdade, "a força da gravidade é a certeza antiga dos sáurios não poderem voar nos descendentes".
Alegria, em amizade.
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