terça-feira, 27 de outubro de 2009

Três médicos e um funeral

Summer Night de Liang Feng
O imperador da China encontrava-se à beira da morte. Os sábios e médicos da corte procuravam uma solução mas o homem piorava. A situação era políticamente instável e alguns ministros tomaram a decisão de procurar um médico fora dos muros da corte. Decisão muito arriscada mas que foi necessária dada a difícil situação que atravessava a nação.

Pouco depois os espiões do reino chegavam com a informação de que um escuro médico de um bairro da cidade de Pekim podia ser o homem que precisavam.

- Que venha imediatamente- disse o primeiro ministro. Já tinha que estar aqui!
E aí podéis ver um homem de mediana idade, de cabelos grisalhos, aspeito singelo e modos naturais, sem afectação alguma. Era como se a presença na corte o intimidasse mas, ao meso tempo, não lhe causasse impressão. Estranho paradoxo que tem uma explicação: ao seu lado os homens pareciam vulgares e isso avergonhava-o. Era como se interiormente disesse:
- Desculpem, não foi ideia minha o de estar aqui. Não quero incomodar os seus assuntos.

Por outro lado podia sentir a inveja e a expectação malevolente dos cortesãos.
Bem, o caso é que o médico achegou-se ao imperador e deu-lhe a beber uma poção, que renovou durante três dias.

O imperador curou totalmente. E foi uma felicidade mesmo para os invejosos que viram que as suas cadeiras já não perigavam.
O imperador falou para o médico:

- Que notável que um homem do teu talento só seja conhecido num pequeno bairro de Pekim. Poderias explicar a que se deve a tua discreção?

- Veréis, majestade- disse o médico. Eu só sou o mais pequeno de três irmãos. E todos somos médicos.

- Quem são então os teus famosos irmãos?-disse o imperador.
- Majestade, desculpe, mas não está a compreender o que lhe estou tentando dizer. Os meus irmãos, dos que eu aprendi, são menos conhecidos do que eu. O do meio só é conhecido na nossa rua. E o mais velho, o verdadeiro sábio, só é conhecido na nossa casa. Fora da nossa casa ninguém pensa que saiba nada de medicina. Assim é a nossa vida.
O imperador deu ordem de que trouxessem a esse médico desconhecido e oculto para o seu palácio. Queria tê-lo ali ao seu serviço para sempre.

Mas não houve sorte, pois o imperador foi informado de que o médico oculto acabava de falecer.


Todos olharam para o irmão, ainda presente. Este falou:
- Agora compreendo as palavras do meu irmão quando dizia que na verdadeira medicina era o médico o que pagava.

3 comentários:

Donis de Frol Guilhade disse...

Texto belíssimo e exemplar.

Isto remete-nos para a "autoria" e "autoridade" em geral, coisas que comummente se tem por "pessoais".

Quando se diz que Jesus "falava com autoridade" (Lc. 4,32), isso significa que estava investido, "possuído" de algo que remetia a palavra (nele, a Palavra - para o crente) e o dito dele para um qualquer plano de "indiscutibilidade".

Não, porque não houvesse quem quisesse contrapor-lhe argumento, mas porque o que ele dizia tinha em si mesmo o "fecho", a "tranca", que inviabilizava qualquer contrapor de dis-curso, debate ou qualquer tipo de discussão. Estava "fora" e "para além" do âmbito do "discutível" e do argumentável.

A fonte de uma tal "indiscutibilidade" está, porventura, naquilo que faz de Jesus (e, por extensão, de todo o homem de vida "santa", "sacralizada") mais do que apenas homem: Filho de homem (Maria, contraponto de Eva e Lilith) e Filho do Homem também (futurante e futuro da espécie).

Sem tornar obviamente "confessional" aqui o comentário, isto (creio) sinaliza-nos a atenção para o nódulo da discussão recente em torno do livro último de Saramago.

Como se tem visto no "debate" desinteligente que a obra tem suscitado, de um de outro lado da "barricada", esgrimem-se por igual razões e desrazões as mais sensatas e mais descabidas.

Ora, o "fenómeno religioso" não pode , precisamente, ser abordado (apenas) enquanto tal, enquanto "fenómeno", pois isso (independentemente da questão da verdade nisso, e da verdade de Deus e de toda a canga de humanas iniquidades que lhe está colada), fazer isso é apenas olhar para o que é visível no iceberg da religião, iceberg aliás que tem duas partes "submersas" - uma para baixo e outra para cima da tal parcela de fenómeno visível.

São ambas estas parcelas, em certa medida, que estão em questão, parece-me, nesta bela parábola que aqui trouxe, caro José Lozano.

Na verdade, quanto mais "autoridade" e "competência", mais invisível o homem se torna e mais "banhado", "empapado" na realidade ele está, ainda que ninguém, ou quase ninguém, dê por isso.

Quando se pretenda arrancá-lo a isso, a essa invisibilidade imanente-transcendente do iceberg humano, há uma implícita e inevitável "condenação à morte" - um como novo edital "Ecce homo!".

E isso, remetendo para o domínio do "público" (do devassante) mata o que no homem há de mais indizível, incomunicável, silencioso e são.

São de tal forma, que comunica saúde aos outros, pelas sua simples presença, ainda que à distância, e ainda que à custa do seu próprio, progressivo, encaminhar para a morte, e para a morte da morte.

José António Lozano disse...

Não tenho muito a acrescentar, Donis. Penso que aqui seria uma imperfeição fazê-lo.
O interessante também está em dizer algo que tem como uma semente de compreensão. É por esta causa que eu não gosto de comentar muito, ainda que às vezes também o faço, naturalmente. Realmente pode iluminar e ser necessário mas não é tanto o dito como o momento em que cada pessoa o recebe, o momento em que a pessoa o recorda e então há um Click na pessoa.
Eu tenho lido o que aqui está escrito. Gosto muito de muitas cousas aqui ditas mas chegado o momento de comentar, ás vezes, fico sem palavras próprias que digam mais do que já está dito. Digo isto para evitar qualquer sentimento de que possa haver dessinteresse pela minha parte.
Fico admirado da qualidade e da capacidade das pessoas mas também sei que a compreensão às vezes perde sabor e profundidade quando queremos dizê-lo tudo.
Por exemplo, não me sinto com forças para comentar a Nietzsche. Ele foi muito importante para mim na minha juventude e abriu-me o caminho para buscar de uma maneira totalmente nova. É tal o sentimento de "boa dívida" que tenho para com ele que falar resultaria-me frustrante. E isto não quer dizer que me negue a fazê-lo no futuro, é so tentar explicar-me um pouco.
Quanto a Saramago, a quem conheci pessoalmnte, é óbvio que eu não concordo com ele em certas cousas mas com ele tenho uma dívida (também boa) que está além das palavras. O seu ateísmo até pode ser bom para Deus por recordar aqui a Pascoaes. Cofesso que não gosto muito do seu barroquismo e ainda que o li muito na minha juventude hoje não o leio. Mas, enfim, são muitas as explicações já dadas!
Um abraço, Donis.

Paulo Borges disse...

Nada a comentar. A "verdadeira medicina" deixa-nos sem (ou com todas as) palavras.

Abraços