A tradição européia liga a poesia à primavera. Essa foi uma convenção estabelecida como tantas outras. O que determina o aparecimento da poesia ou a composição de um poema é de ordem mais sutil e subjetiva. Assunto para um tratado dos grandes – e ao mesmo tempo quase nada. A natureza e o mundo que nos cerca, o tempo, a interação com os outros, sentimentos, emoções, o que se aprendeu e experimentou desempenham um papel importante no fazer poético.
Hoje em dia, quando o modo de vida nas cidades (e mesmo fora delas) exige de nós tanta contenção e causa tanto desgaste emocional; quando os problemas crescem na razão direta das exigências que não conseguimos satisfazer; quando o que se espera de cada um é talvez muito mais do que seria razoável esperar de seres humanos perdidos em nossas babéis em ritmo de globalização caótica; quando cada pessoa é confrontada com desempenhos consagrados e inteiramente inalcançáveis para a absoluta maioria; quando nossos limites são testados e desafiados dia a dia no trabalho, na família, na rua, é claro que a poesia tem que refletir isso.
Não só a linguagem mudou. O modo de sentir o mundo e reagir aos estímulos se tornou mais tenso, mais áspero, porque é preciso ativar as defesas para não se ferir a toda hora.
Nada no entanto impediu que continuassem surgindo poetas verdadeiros neste mundo difícil e tantas vezes cruel. Parece que enquanto existir gente na Terra, existirão poetas. Poetas que falam não só de amor e flor, mas da humana condição, da falta permanente de alguma coisa que amenize a inquietação e a angústia, das coisas que os afetam, da própria circunstância do poema. Específico da poesia é o sentimento súbito do que toca a pele, da percepção aguçada que se amplia, instigadora, e num certo momento irrompe e mobiliza alguém a expressá-la. Mas para isso é preciso que haja um silêncio interior, uma certa contemplação desse processo, condição para ouvir o “barulho” da poesia. Desse barulho de que fala Ferreira Gullar, num poema que expressa quase a essência da questão:
Todo poema é feito de ar
apenas: a mão do poeta
não rasga a madeira
não fere
o metal
a pedra
não tinge de azul
os dedos
quando escreve manhã
ou brisa
ou blusa de mulher.
O poema
é sem matéria palpável
tudo
o que há nele
é barulho
quando rumoreja
ao sopro da leitura.
De Carlos Drummond de Andrade, um poema instrutivo, que fala das palavras, da serenidade e do silêncio, três colunas mestras de um poema:
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intacta.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros.
Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consuma
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Reparem como Paulo Leminski incorpora a turbulência de nossos dias sem deixar de seguir essas receitas:
maldito
o que não deixa cantar
o canto é fraco
maldito
o que não deixa cantar
o canto é forte
maldito
o que não deixa cantar
o canto gera outro canto
maldito
o que não deixa cantar
o canto nunca deixa de cantar
Poesia não é antídoto de nada, não é remédio, não relaxa, não dá sono. Ignora rótulos e visões preconcebidas. Como tudo nesta vida, tem suas formas próprias, que devem e precisam ser bem cuidadas para que o poema soe verdadeiro, mas que pouco valem se o que se diz for fraco, falso, artificial, pretensioso. Os puristas que me perdoem, mas um poema tem que ser do mundo, dos outros, da morte, e sempre, sempre da precariedade humana que se recria em palavras. Isso vale também para poemas que falam de uma realidade interior, de sentimentos subjetivos, porque, já dizia Vinicius, “a vida só se dá pra quem se deu”. E acho que não está errado dizer que fazer poesia é um modo bem-sofrido de viver – e por bem-sofrido quero dizer a dor e a alegria, o amor e seus avessos experimentados em profundidade.
O que legitima um poema são as marcas, as cicatrizes, os efeitos concretos da realidade sobre quem o escreve; é a experiência vivida – embora precise existir “calma e frescura na superfície intacta” para deixar que venha à tona e se estruture. Importa muito pouco se é um soneto, um haicai, se são trovas, versos livres e brancos ou redondilhas. Cada poema deve se impor por si mesmo, “com seu poder de palavra / e seu poder de silêncio.”