segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Amo o teu túmido candor de astro



a tua pura integridade
delicada
a tua permanente adolescência de segredo
a tua fragilidade
acesa sempre altiva
Por ti eu sou a leve segurança de um peito
que pulsa
e canta a sua chama
que se levanta e inclina ao teu hálito de pássaro
ou
à chuva das tuas pétalas de prata
Se guardo algum tesouro não o prendo

porque quero oferecer-te a paz de um sonho aberto
que dure e flua nas
tuas veias lentas
e seja um perfume ou um beijo um suspiro solar

Ofereço-te esta frágil flor esta pedra de chuva
para que sintas a verde
frescura
de um pomar de brancas cortesias
porque é por ti que vivo é por
ti que nasço
porque amo o ouro vivo do teu rosto

de O Teu
Rosto(1994)

António Ramos Rosa

De Portugal como "povo extremo [...], não da Europa, mas da Eurásia"

Portugal, segundo José Marinho:

“povo extremo da Ibéria, povo extremo, cabe longamente pensá-lo, não da Europa, mas da Eurásia, […]”

Verdade, condição e destino no pensamento português contemporâneo, Porto, Lello & Irmão – Editores, 1976, p.228.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Tradução da pedra

                                           foto R

Banhada pelo sol
olhas sobre
a direita
exemplificas a equidade
o direito.
Para o caso de ter de ser
a espada
desembainhada pronta avisa
que sob
pequeno tecto
apenas
se abriga,
imperfeito.
O destino é dança fiel
em balança
ponta de espada
que brada aos céus
ao arrepio de Deus.

“O povo português é essencialmente cosmopolita. Nunca um verdadeiro português foi português: foi sempre tudo”

- Fernando Pessoa, entrevista a António Alves Martins, Revista Portuguesa, nºs 23/24 (Lisboa, 13.10.1923).

“Sou um evadido. / Logo que nasci / Fecharam-me em mim, / Ah, mas eu fugi”

- Fernando Pessoa

"O abismo é o muro que tenho / Ser eu não tem um tamanho"

- Fernando Pessoa, 1929.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Do sacrifício como símbolo da queda pelo consumo de carne de animais

"É possível que a princípio o sacrifício simbolizasse a queda por um alimento animal, a expiação da morte da primeira rês; por qualquer circunstância, o homem, primitivamente frugívoro, teria sido obrigado a alimentar-se com a carne de animais, até aí sagrados para ele; abatera o primeiro e logo sentira todo o horror do seu crime: matara um companheiro, um amigo, e o seu primeiro movimento foi de fuga; depois, para que os deuses lhe perdoassem, fazia-os tomar parte no festim. O rito estranho das Bufónias, antiquíssimo, reproduzia com pormenorização a cena primitiva: havia a fuga do sacrificador, a acusação de todos os que tinham tomado parte na cerimónia; finalmente, a condenação dos instrumentos que tinham servido para cometer o crime"

- Agostinho da Silva, A Religião Grega [1930], in Estudos sobre Cultura Clássica, p. 165.

Agostinho da Silva retoma aqui a tese de Teixeira Rego, seu professor na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Veja-se, de Teixeira Rego, a Nova Teoria do Sacrifício.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

"... o estado natural do puro despertar"

“Quando os pensamentos passados cessaram e os pensamentos futuros ainda não surgiram, no intervalo, não há aí uma percepção do presente, uma frescura clara, desperta, nua, que jamais mudou, minimamente que fosse? Eis, isso é o estado natural do puro despertar"

- Dudjom Rinpoche, Extraire la Quintessence de la Réalisation, Laugeral, Éditions Padmakara, 2005, p.17.

Lançamento do livro "O Solar de Santana, Museu Municipal de Tondela e a Arquitectura Senhorial da Região", de Inês do Carmo Borges


No próximo dia 26 de Fevereiro de 2011, sábado, pelas 16 horas, no Auditório da Junta de Freguesia de Campolide, Rua de Campolide n.º 24 - A, em Lisboa, será apresentado  pelo Prof. Dr. António Filipe Pimentel, Director do Museu Nacional de Arte Antiga, o livro "O Solar de Santana, Museu Municipal de Tondela e a Arquitectura Senhorial da Região", da Dra. Inês do Carmo Borges, investigadora e historiadora de arte, colaboradora da revista Entre, desde o seu primeiro número. Na ocasião estará igualmente presente o editor, Dr. Jorge Fragoso, da Editora Palimage.
 
O projecto gráfico da capa é da responsabilidade de Luiz Pires dos Reys,  tendo a execução ficado a cabo de Xénia Pereira Reys, ambos da equipa da revista Entre.
A fotografia da capa é de Marcus Garcia Moreira, já aqui muito justamente destacado no blogue da Entre (ver: http://arevistaentre.blogspot.com/2010/05/marcus-garcia-moreira.html).

Não se deixe, entretanto, de visitar o belíssimo blogue da autora, sempre povoado por imagens, palavras e sons de muito encantar: 
http://musicaescarlate.blogspot.com

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Reportagem e entrevista na SIC sobre o PAN



Estarei amanhã, Domingo, em directo na revista da semana da SIC Notícias, entre as 10.15 e as 10.30, para comentar as notícias do dia e falar sobre o PAN, Partido pelos Animais e pela Natureza.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Do Exílio Saudoso... (Algumas re(flexões)

O vir a ser é que é o fundamento da Saudade. O sentimento nostálgico de algo que não é mais, não tem a sua origem no depois da Origem, tão só no antes que é a ignota Origem desse Tudo-nada. Deus é um efeito, tal como a Saudade, não a causa. Deus é uma ausência para si mesmo. Estará Deus, então, enganado em si mesmo? Erro que, por contágio dual, o homem sente, quando pensa existir separado da sua sombra saudosa.

Das causas e dos efeitos, o Homem, criatura caída no intervalo, no entre ilimitado de si mesmo, nada sabe e de tudo se esquece, dissolvido no que crê ser a realidade de tudo. Como quem caminhasse no deserto, na distância profunda entre a luz que crê existir e a sombra que dela provém, o homem caminha até ao esquecimento e à quietude da indiferença e da descrença, revolvendo na areia imensa que deixa atrás e depois de si, o não-lugar de onde caiu em luz arrefecida. Caminha só. Os profundos sulcos na areia são pó de outros e longínquos desertos iluminados de sombra fugidia. O claro-escuro das nuvens que contempla, entre as árvores de um bosque, em busca de uma Árvore que ainda não nasceu. Que nunca houve nascida. Caminha nascido de uma lembrança de si, uma Saudade transcendida de si e de Deus.

Antes da palavra e do pensamento, antes mesmo da ideia de uma palavra e de um pensamento. Fundo exílio que à razão escapa, como se quiséssemos parar o Sol que, entre as árvores, entre o fluxo das ondas de luz (para usar a mesma metáfora do bosque), com a mão vazia da sua incompletude radical, o homem sonha, na dualidade e multiplicidade da sua ilusória face. A sua mátria original.

Pascoaes caminha pela montanha. Na sua cabeça arde uma terrível pedra. Uma terrível perda. Arde nesse exílio a esperança de um regresso. Mas o tempo nasce com o mundo e a criança segura na mão uma mão-cheia de areia do deserto e aí encontra o tempo. Nesse esquecimento de si, dentro do sonho do mundo original criado pelo encontro saudoso do instante. Fica aí, iluminada pela sombra. O exílio é não encontrar esse entre em parte alguma, a não ser no sonho de o ter vivido. Sonho esquecido, ardente, vivido.

Aí a luz é vertical, e o homem reflexo desaparecido de si no mundo. Recolhe a si o em si velado de tudo. Eis o Homem desfeito em esperança! Vêem-no os poetas e saúdam-no as fontes, os rios e o mar, apelo de todas as águas matriciais que se fundem numa paz que não sendo deste mundo nele se desfaz em ondas de luz difusa. No horizonte, um dedo esticado aponta ao oriente do Oriente, de uma pátria terrível e abismada fonte.

Para a morte não há caminho de regresso. É Encontro. A vida é antes do tempo. A Saudade é futuro visionado. Espectro exilado do ser. Esperança florida, presença ausente. Em tudo flore o exílio saudoso. É tudo, sendo nada. É um entre nada, entificado em outro. Uma cabeleira em chamas, a beleza do seu olhar constelado. Além-Deus!

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Cristina Braga - Harpa





Cristina Braga tem conseguido realizar com grande êxito o belíssimo casamento entre a harpa e a música popular brasileira. Membro da Orquestra Sinfónica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, desde as primeiras colaborações com Nara Leão e o Quarteto em Cy não cessou de levar a harpa para os caminhos do samba, da bossa e do choro. O seu último álbum, Feito Um Peixe, onde surge também como cantora, inclui temas da sua autoria e hinos da música brasileira como "Insensatez" e "Brasileirinho".

Se fazer parte da civilização consiste em desviar mais, roubar e distorcer, então o que é o progresso?

É verdade que o homem branco trouxe uma grande mudança. Mas os diversos frutos da sua civilização, embora altamente coloridos e convidativos, são doentios e mortais. E se fazer parte da civilização consiste em desviar mais, roubar e distorcer, então o que é o progresso?
Eu aventuro-me a dizer que o homem que se sentou no chão do seu abrigo a meditar sobre a vida e o seu significado, que aceitou a sua solidariedade e companheirismo com todas as criaturas e formas de vida e que reconheceu a sua unidade com o universo das coisas, estava a infundir no seu ser a verdadeira essência da civilização. E quando o homem deixou de parte esta forma de desenvolvimento, o crescimento da sua humanização foi retardado.

- Lutero Urso em Pé 
[O Sopro das Vozes Textos de Índios Americanos, Assírio e Alvim, pp.226-227]

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Ondas

D. S. Merezhkovskii
Retrato de I. Repin (1900)
Oh! Se eu fosse como vós, ó ondas,
Livres e desapaixonadas,
Frias e cheias de eterno resplendor!
Não sois vós mais felizes do que eu?

Que a felicidade é efémera, vós não sabeis...
Com saudade, vejo o belo livre e frio que há em vós:
Em toda a minha vida de amor e dever,
Carrego humildemente os grilhões dos Santos.

Porquê a jovialidade e felicidade do vosso sorriso?
Porquê os grilhões fardos carregados por mim?
Oh!, preciso da vossa frieza imperturbável,
Do vosso sorriso livre, da vossa beleza eterna.

Como é difícil suportar o jugo da humildade!,
Ir para vós e em vós descansar
Só, simplesmente só e viver o instante,
Para depois, sem respirar, adormecer para sempre!

Oh, não me importar mais
Com mulher, Deus, Pátria
Viver a alegria, a vida,
E morrer nos salpicos de espuma resplandecente!...

Todavia não sinto desapego:
Amo a Pátria, amo Deus,
Amo o meu amor e em nome da felicidade
A amargura humildemente aguento.

Temo o dever, inquieta-me o amor,
Para viver livremente sou fraco demais...
Oh, será que a liberdade é impossível,
e o homem é escravo até morrer?

Dmitrii Merezhkovskii (1866-1941)

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

O "Eu"

O "EU"
Queridos irmãos e irmãs,
Eu penso sempre que o propósito da vida é sair do nosso ?Eu?, do nosso ego e tentar encontrar na nossa verdadeira natureza.
Estejam atentos, quando praticamos o caminho espiritual não significa que criemos outro ?Eu?. Uma pessoa espiritual é alguém que, sempre que possível, tenta reduzir o seu ?Eu?.
Na vida normal, há muito ?Eu?, esta é a raiz de todos os problemas. Isto significa que por causa do ?Eu?, criamos uma diferença entre a vida normal e a vida espiritual.
Na nossa vida quotidiana, há demasiado ?Eu?, esta é a raiz dos nossos problemas.
Então, tentamos reduzir o ?Eu?, praticando o caminho espiritual, assim separamos a vida normal e da vida espiritual.
Muitos são aqueles que, ao seguirem o caminho espiritual, criam mais ?Eu? e nem se apercebem. Aí está a raiz do problema.
Quem é que nos impede de nos tornarmos numa pessoa verdadeiramente espiritual? Ninguém, apenas o ?Eu?.
Isto significa que sempre que praticamos, em qualquer momento, a qualquer hora não interessa qual a prática a que nos dedicamos. Porém se sentimos mais ?Eu? então temos que perceber que esta não será a direcção correcta de orientar a nossa prática.
Quando estamos infelizes, quando sofremos, sentimos sempre mais ?Eu?. Isto revela a importância de não esquecer que, o objectivo de percorrer um caminho espiritual é reduzir o ?Eu?.
Quando há menos ?Eu?, há mais felicidade. O ?Eu? torna a vida muito difícil, o ?Eu? é a fonte dos problemas.
Questão: Quem pode reduzir o ?Eu?? Só nós próprios, ninguém mais, além de nós.
Questão: Que tipo de método podemos usar para dissolver o ?Eu?? A Compaixão e o amor incondicional.
Não se esqueçam que somos todos um pouco loucos!

Tulku Lobsang

[partilhado por Reiki Fenix, no facebook]
"Todos crêem na evidência indestructível, na solidez do universo. Não vêem que temos um braço na água e outro no fogo, a cabeça no ser e o corpo no não-ser, a alma no dia e o espírito na noite". 
Juan Eduardo Cirlot (numa carta a André Breton, de Agosto de 1959)

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Para ligar o espírito com a carne de forma a vencer a morte, o homem deve ligar-se com tudo o que é profundo em si, no seu centro absoluto que é Deus. - V. Soloviev

Vladimir Soloviev (1853-1900)
A união da humanidade não resultará se se der apenas numa dimensão social. A lei da morte divide a própria Igreja Universal em duas partes: uma, visível e terrena, outra, invisível e celestial. O reino da morte está inscrito; a separação do céu e da terra acontece devido ao desejo humano de dominar imediata e materialmente a terra, a existência tida como certa; o homem é sedento de testar e provar tudo sensorialmente. De forma superficial, ele junta o seu espírito celestial com as cinzas terrestres. Tal junção é efémera; tal ligação conduz o homem à morte. Para ligar o espírito com a carne de forma a vencer a morte, o homem deve ligar-se com tudo o que é profundo em si, no seu centro absoluto  que é Deus. O homem ecuménico liga-se ao amor divino que não apenas o eleva a Deus, mas também funde-o internamente com Deus, dando-lhe a oportunidade de abraçar Nele tudo o que há de eterno e indissolúvel. Este amor faz descer à terra a graça de Deus e canta vitória não apenas sobre mal ético, mas também sobre as consequências fisicas que provenientes dele - a doença e a morte. O efeito deste amor é a ressurreição derradeira. E a Igreja, ao transmitir este ensinamento no estudo da revelação, como última parte do seu Símbol, converte-o no seu mistério derradeiro. Deparando-nos com a doença e a face da morte, a Santa Unção é o símbolo e a fiança da nossa imortalidade e da ligação com Deus. O círculo dos Mistérios, o círculo da vida ecuménica completa-se com a ressurreição da carne, fecha-se com a união da humanidade com o todo, numa encarnação final com a Sabedoria Divina.

Vladimir Soloviev, in A Rússia e a Igreja Ecuménica
 http://www.vehi.net/soloviev/vselcerk/312.html
Maldita economia que nos rouba a elegância de uma mesa bem posta.
Joguei contra a parede o último cálice.  Marcava a minha diferença. 
Sou agora tão pobre quanto todos os outros miseráveis. 
Doença epidemica que prolonga a vida.
Não há pão que assista o meu ventre inchado de fome.
Ao meu lado, dorme o cão vadio. 
Maldita economia que nos roubou a elegância de um cão bem posto.
Branco de preferência.

Dançam borboletas na paisagem verde
Adormece a leoa coberta com amor
Vive a vida, a hora, sem pressa
Morna, suada, preguiçosa.
Deixo que o vinho escorregue pela garganta
Desenhe em mim um poema sem regras
Aqueça meu corpo.Encontre meu ventre e procrie.
Criança desejada, semente de amor.

Encontra a Besta o Anjo com sede
Amor adiado.

A Besta e o Anjo

Liberta agora a Besta, encontra o Anjo que nela habita
Não há Norte se não cruzares o Oriente
Mastiga cada palavra santificada, vem-te!
Quando a vida mostrar que o preto é também o branco
Confundirá a Morte o convidado, levando ambos.
A Besta e o Anjo.

"A severidade e a gravidade da vida, a tomada de consciência da morte, a queda de ilusões do mundo externo e a perda de coisas que escravizam o espírito - tudo isto apela à vivência de Deus e da espiritualidade." - N. Berdiaev

A revolução [bolchevique] trouxe danos graves à Rússia dos quais dificilmente recuperará. Por outro lado, a revolução teve consequências positivas no renascimento que houve da Igreja e da Vida religiosa na Rússia. A revolução despoletou um aprofundamento da religiosidade do povo. Muita mentira e hipocrisia se acumularam na nossa vida religiosa. Em muitos de nós predominava uma relação superficial e utilitário-egoísta com a Igreja Ortodoxa. Tornava-se necessário destruir a autoridade da Ortodoxia inerte. No topo das camadas sociais - a nobreza e a burguesia - a religiosidade não era profunda e o cristianismo era vivido futilmente. A religiosidade dos Saduceus tem um carácter oficial e nela, as perspectivas da vida temporal sobrepõem-se às perspectivas da vida eterna. Sinais de necrose obscureciam a nossa vida religiosa. A revolução dissipou a atmosfera falaciosa da Igreja e lavrou o solo sobre o qual resplandece a luz religiosa. Com a revolução, ninguém necessita de se fingir de Ortodoxo, ninguém beneficia materialmente com a Igreja e a religiosidade de Estado deixa de existir. No princípio, a revolução tinha um carácter anti-religioso e anti-cristão. O Cristianismo é perseguido, e é-o de forma horrível. Contudo, as perseguições nunca foram assustadoras para o Cristianismo. É melhor para a Igreja a perseguição do que a protecção coerciva. Durante as perseguições, o Cristianismo cresce e fortalece-se. O Cristianismo é a religião da verdade crucificada. Durante a revolução, as perseguições religiosas tiveram como consequência uma selecção qualitativa. A Igreja perde em quantidade mas ganha em qualidade. O sacrifício é novamente exigido aos filhos fiéis cristãos, o qual foi manifestado com a revolução. Os padres ortodoxos russos, no melhor de si, mantiveram-se fiéis ao seu santuário, corajosamente defenderam a Ortodoxia, corajosamente foram de encontro com o fuzilamento. Os Cristãos mostraram que sabiam morrer. A Igreja Ortodoxa demonstrou que, a nível interno, a sua unidade, a sua luz interior e a sua mística são perenes, mesmo depois da destruição da Igreja a nível exterior. Na Rússia deu-se, sem dúvidas, um aprofundamento religioso. Os Russos, apesar de terem sofrido grandes provações, vivem um ambiente religioso intenso. A severidade e a gravidade da vida, a tomada de consciência da morte, a queda de ilusões do mundo externo e a perda de coisas que escravizam o espírito - tudo isto apela à vivência de Deus e da espiritualidade.

Nicolai Berdiaev, in Reflexão sobre a Revolução Russa, 1923 
http://krotov.info/library/02_b/berdyaev/1924_21.html

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Desomenagem a Agostinho da Silva, no dia em que faria 105 anos



"Acho graça às homenagens
que me prestam,
excelente sinal de ilusões
que a eles restam;

sou tão humano quanto os outros,
com qualidades e defeitos
e mais as manhas que se escondem
em seus peitos;

[...]

de nós nada mais deixamos
que vãs memórias,
só Deus é grande, só Deus é santo
e o demais histórias"

- Agostinho da Silva, Uns Poemas de Agostinho, pp.17-18.

Li este poema no início do lançamento da antologia que organizei de Dispersos, de Agostinho da Silva, em 1988, no Mosteiro dos Jerónimos, numa mesa presidida por um sonolento presidente Mário Soares e perante a ruidosa "fina flor" das elites e da sociedade portuguesa, reunida para homenagear o filósofo que nunca tinham lido e para beberem uns copos à borla. Passados uns minutos, a presidência da mesa, incomodada, estava a pedir-me que parasse de falar...

E hoje o "vagabundo anarquista, como se definiu, continua a ser repasto de todas as aves de rapina.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

"Que pensará isto de aquilo? / Nada pensa nada" - Alberto Caeiro

Colóquio "A Obra e o Pensamento de António Telmo"


O Instituto de Filosofia Luso-Brasileira promove, dias 14 e 15 de Fevereiro, no Palácio da Independência em Lisboa, o Colóquio "A Obra e o Pensamento de António Telmo".

Programa14 de Fevereiro, 2ª feira

10h00: Sessão de Abertura
António Braz Teixeira

11h00: Comunicações
Joaquim Domingues, «António Telmo: o homem e a obra»
Abel de Lacerda, «Um olhar de António Telmo na simbólica de Prestes João»
Roque Braz de Oliveira, «António Telmo e os caminhos da hermenêutica»
Carlos Vargas, «A ironia em António Telmo»

13h00: Intervalo para almoço

14h30: Comunicações
Paulo Teixeira Pinto, «Portugal sem segredos»
Mário Rui, «António Telmo e as Três Tradições do Livro»
Manuel Gandra, «Linhagem seminal e espiritualidades bastardas – finais de todos os tempos e no contexto lusíada»
Luís Paixão, «O número 8 na obra de António Telmo»

16h30: Intervalo para café

17h00: Comunicações
António Carlos Carvalho, «Os nomes de António Telmo»
Cynthia Taveira, «António Telmo e a inversão dos candelabros»
Rui Lopo, «Significado e Valor da Filosofia em António Telmo»
Pedro Martins, «António Telmo e Luís de Camões»

19h30: Jantar no Círculo Eça de Queiroz. Inclui, a partir das 21h, apresentação de uma obra inédita de António Telmo, por Nuno Nazareth Fernandes.


15 de Fevereiro, 3ª feira

11h00: Comunicações
João Cruz Alves, «Testemunho sobre um homem novo»
António Quadros Ferro, «Correspondência entre António Telmo e António Quadros»
Elísio Gala, «Língua e Pátria»
Renato Epifânio, «A ideia de Pátria em António Telmo»

13h00: Intervalo para almoço

14h30: Comunicações
Carlos Aurélio, «Religiosidade e razão poética em António Telmo»
Paulo Borges, «O último texto de António Telmo: "O acabar da história [...] bruscamente engolida pelo nada que essencialmente é"»
António Cândido Franco, «António Telmo e o Surrealismo»
Rodrigo Sobral Cunha, «O viajante»

16h30: Intervalo para café

17h00: Testemunhos
Manuel Ferreira Patrício
Pedro Sinde
Paulo Santos
Pedro Ribeiro
Pinharanda Gomes

António Telmo Carvalho Vitorino nasceu em Almeida, Beira Alta, a 2 de Maio de 1927. Foi, a convite de Agostinho da Silva e Eudoro de Sousa, durante três anos, professor de Literatura Portuguesa na Universidade de Brasília. Mais tarde, dirigiu a Biblioteca de Sesimbra e leccionou a disciplina de Português em Estremoz. Publicou, entre outras obras, Arte Poética (1963), História Secreta de Portugal (1977), Gramática secreta da língua portuguesa (1981) e Filosofia e Kabbalah (1989). Morreu no dia 21 de Agosto de 2010.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Toska - Saudade - Duhkha

"Se eu escrevesse um diário, registaria constantemente as seguintes palavras: «Tudo me é estranho, sinto-me fragmentado, sempre, sempre aquela "тоска" pelo outro, pelo que me transcende.» Toda a minha existência é "тоска" pelo transcendente." - Nicolai Berdiaev

Tоска, em cirílico - Toska, em latim, é uma palavra de origem eslava e significa dor, tristeza, inquietação, limitação, restrinção, inquietação. Talvez, de alguma forma, "toska" esteja relacionada com "saudade". Segundo Berdiaev, toska é um sentimento direccionado para o mundo transcendente e é acompanhado por um sentimento de vazio, insignificância, perecibilidade do mundo em que nos encontramos. Toska erradia a solidão sentida pelo homem face ao transcendente, solidão essa derivada da experiência da ausência do divino. Toska é um sentimento Entre pois jaz entre o abismo do não-ser (nada niilista) e o transcendente divino. Assim, se toska é desespero, toska também é esperança, salvação.

Tal como "toska", a "saudade" não tem origem nas línguas indo-europeias. Talvez a palavra sânscrita que mais se assemelhe a "toska" e a "saudade" seja "duhkha" que significa impermanência, transitório, dor física, insatisfação, medo, mal-estar, medo de perder, insegurança, estar dividido, partido ao meio, separado de algo.

O homem sente-se separado, fragmentado, só, angustiado, dividido. É a condição humana que toma consciência da sua perecibilidade. A morte. Todavia, esta consciência pode ser um catalizador para uma busca escatológica - Sehnsucht - a busca do Ser. Como buscar? Como encontrar um caminho para trilhar? Podem a religião, a arte, a ciência ou a filosofia encontrar soluções que apaziguem o sofrimento inerente à condição humana? Devemos crer ou ter fé? Devemos acreditar ou experenciar essa Saúde obscurecida que jaz em todos nós? Devemos saber ou saborear?

Crente é pouco sê-te Deus
e para o nada que é tudo
inventa caminhos teus
- Agostinho da Silva

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

"Que se despeça da vida eterna quem não a viva já aqui"



Para o Luiz Reys

"Antes mencionámos o terceiro olho, este terceiro órgão ou faculdade, que nos abre a uma dimensão da realidade que transcende o conhecimento que possamos adquirir através da mente e dos sentidos. Sem um silêncio dos sentidos e da mente esta faculdade permanece atrofiada e então a vida - a experiência da vida, anterior à sua expressão em diferentes actividades: a vida em sua profundidade - escapa-nos; a participação na plenitude cósmica - juntamente com Deuses e demónios - passa-nos desapercebida. Então as nossas vidas, privadas da sua fonte, tornam-se pobres, tristes, medíocres. Para dominar esta miséria recorremos a uma multidão de coisas que a edulcorem, que a enriqueçam, que lhe dêem um sentido, uma relevância, uma dignidade. E identificamo-nos com essa multidão de coisas; esgotamo-nos nessa actividade incessante. E esquecemo-nos que dão maior glória a Deus a flor, o lírio, o passarinho (Mateus, VI, 26-28), que todos os nossos afãs, pressas e carreiras. Suspiramos por outra vida quando não vivemos a vida. Algo disse Jesus sobre a vida eterna que nos prometia agora. Que se despeça da vida eterna, veio a dizer Simeão, o Novo Teológo, quem não a viva já aqui"

- Raimon Panikkar, Iconos del Misterio. La experiencia de Dios, Barcelona, Ediciones Península, 2001, 3ª edição, corrigida e aumentada, pp.44-45.

Ani Choying Drolma


Ani Choying Drolma is a nun from Nepal with a wonderful voice.



Ani Choying Drolma is a great singer from Nepal. She knows the art of singinging and chanting mantras in an authentic and heart opening way.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

"Não ser senão um com todas as coisas vivas, regressar, por um radioso esquecimento de si, ao Todo da Natureza" - Hölderlin

‎"Não ser senão um com todas as coisas vivas, regressar, por um radioso esquecimento de si, ao Todo da Natureza" - Hölderlin

Trailer Shirin de Abbas Kiarostami

Cento e catorze actrizes iranianas e uma estrela francesa: espectadoras mudas da representação teatral Khosrow e Shirin, um poema persa do século XII, encenado por Kiarostami. O desenvolvimento do texto -- que sempre apaixonou os espectadores na Pérsia e no Médio Oriente -- permanece invisível para o espectador do filme. Toda a história é contada pelos rostos intensos e belos das mulheres que assistem ao espectáculo. Um mapa de ricas e pungentes emoções. É um trabalho "fora de campo" levado ao limite.

Cinema

Na escola, aos 16 anos, só gostava dos Lusíadas e da equações matemáticas. Fora dela, a vida acontecia todas as quartas- feiras, às seis da tarde, no cinema Império. Todos os outros dias eram a memória do último filme e o desejo da próxima quarta-feira.
Amores proibidos, paixões escaldantes e sempre um beijo prolongado na boca.
The End -  uma cortina imponente descansava o cinema. Meu corpo estremecia. Saliva na boca, a desejar nos meus lábios todos os beijos. Fui queimada e santificada, mulher da vida em todas as camas. Menina e moça sofri a morte do heroi. Vivi a dor injusta da guerra. Viajei pelo mundo. Andei de bicileta. 
Com o corpo suado dancei o tango nos braços fortes de cada um dos meus amados. Na calada da noite procurei em cada porto, o amor que embarcou sem dizer adeus. Com um lenço branco celebrei a paz. Fui a terra fertil de cada colheita. O sol quente em cada manhã.
Com cinema celebrei este amor sempre fiel, que se deita com todos os filmes. Sem nunca trair.

"Uma parte do ser é o Prolífico, a outra o Devorador" (William Blake)

 
Lambeth, gravura de William Blake, in The Book of Urizen, 1794.

Os Gigantes que modelaram este mundo e lhe deram existência sensível e parecem agora viver nele acorrentados são, na verdade, as causas da sua vida e as fontes de toda a actividade; mas as correntes são a astúcia de espíritos débeis e submissos, capazes de resistirem à energia; segundo o provérbio, o fraco em coragem é forte em astúcia.
Assim, uma parte do ser é o Prolífico, a outra o Devorador: para este é como se o produtor fosse seu prisioneiro; mas não é assim, ele apenas toma partes da existência e imagina ter o todo.
Mas o Prolífico deixaria de o ser se o Devorador, como um mar, não recebesse o excesso dos seus prazeres.
Alguns dirão:
– Não é Deus o único Prolífico?
Eu respondo:
Deus apenas Age e É nos seres existentes ou Homens.
Estas duas espécies de homens existem sempre sobre a terra e devem ser inimigos: quem quer que tente conciliá-los busca destruir a sua existência.
A Religião é um esforço para os conciliar.

William Blake, A União do Céu e da Terra, tradução de João Ferreira Duarte, Via Editora, Lisboa, 1979, pág.39

Entre partir e chegar - sentar. Apertada na poltrona cada vez mais estreita, coloco o cinto de segurança. Da janela vejo o branco que se perde na escuridão.
Tento dormir mas o queixo encontra o peito e sufoco. Fico com sono.
Tranquilo, viaja de olhos fechados. Um sorriso na face acompanha o homem sereno. Parece um poema contínuo. Sem fim. Contagia meu corpo. Endireito as costas. Pouso as mãos nas minhas coxas. Deixo-me estar. Devagar, escuto o ar que respiro. Meigo é o tempo que agora me abraça. Descoberta que emociona.
Uma lágrima dança na minha boca, como se fosse eu, o horizonte deste caminho novo.
Fecho os olhos. Sem pressa, sorrio.
Ao meu lado adormece o poema inacabado:
Dormi o sono dos justos, sem nunca ter acordado. Encontrei o sonho. Repousei os demónios.
Intervalo de tempo. Passado o engano, na fronteira do indizível encontro o silêncio. Aqui, onde o mar e o rio se unem e separam. Salgado e doce, dentro e fora, a mesma água. Repouso sem adormecer.



terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Se queres saber mais sobre o mundo,
como crescem as árvores, as cotovias, sem os veres crescerem,
olha o teu pai, repara na tua mãe, e finge que entendes
quando uma estrela cai do céu

domingo, 6 de fevereiro de 2011

"Se queremos julgar, viremos os olhos para a parte de dentro"

"Se queremos julgar, viremos os olhos para a parte de dentro, que ainda mal, porque tanto acharemos que julgar, que examinar e que condenar. Se nos julgarmos sem paixão a nós, eu vos prometo que teremos tanto que fazer e tanto que não nos ficará nem tempo, nem ânimo para julgar a outrem" - Padre António Vieira, Sermão da Segunda Dominga do Advento.

Vieira nasceu a 6 de Fevereiro de 1608, em Lisboa.

Surrealimo e Saudade


Existe um certo ponto do espírito de onde a vida e a morte, o
real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o
incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser percebidos como
coisas contraditórias. Ora, seria falso atribuir à actividade
surrealista qualquer motivação que não fosse a esperança de
determinar esse ponto.

(Breton - Manifesto Surrealista)


Esse ponto do espírito, cerne de toda a supra-realidade, esse ponto que não é nenhum lugar e em
nenhum espaço se encontra, é um ponto indeterminável, que podemos designar de um EnTre, sem centro e sem existência real. Um salto no desconhecido, previsto a Liberdade e o Amor. Neste sentido, esse não lugar rodeia tudo, e a tudo enche, sem, contudo, ter forma ou existência concreta e racional. No plano material das coisas que vemos fora do sonho ou da lembrança. Esse entre é inexistente.

O “ponto” de que fala Breton, metáfora de um além-real, situa-se dentro e fora da existência do mundo real, é um Outro em que tudo se transmuta e transforma. É uma realidade que não é, nem não é. Não pode estar nem não estar no mundo e buscá-lo é nunca o encontrar. As coisas que são, para os que buscam a esperança de encontrar esse lugar, são uma indeterminação no plano real. São ideias, anjos do real. Mas, porque são e não são, ao mesmo tempo, e em todos os lugares e não lugares, são a eternidade indeterminável. As coisas reais, como as entendem os que sonham acordados, um desvanecimento. É aqui que a esperança dos surrealistas encontra a sua mesma busca. É aqui que a Saudade se encontra com o surreal. É nesse ponto, em que ambos os caminhos se cruzam, melhor dizendo, se fazem ponte, que a esperança supravive e se quer futuro.

Nesse athanor alquímico da alma, as coisas apresentam-se não como uma ex-istência, senão como uma lembrança. Podemos então descer, com AML, as escadas com o Sol do lado Direito e a Lua do Esquerdo, tendo ao centro, o Fogo onde tudo arde nos olhos da Deusa.

Surrealismo e Saudade, ambas as visões se dirigem para esse ponto, esse Fogo sagrado, por labirintos onde a palavra se sacraliza e se transforma, servindo-se dos arquétipos onde o inconsciente se une ao consciente e se apresenta como "laboratório" do real e da palavra. Como transformar esse “menos”, essa inexistência de Ser essencial nas coisas existentes, no "mais" que o plano do imaginário possibilita? Esse vislumbre do real é restituído ao homem pela lembrança e pelo sonho, pella imagem transformadora, pela Poesia, o lugar do ser heideggeriano.

Esse ponto imaginal, que buscam os saudosos e os surrealistas, é a impossibilidade possível da Poesia. Isso que em reminiscência e desejo busca o Uno, a Origem, o Indiferenciado. O que é e não, simultaneamente, sem contradição. Esse “Isso” que unifica o “em cima e em baixo”, “futuro e passado”, “real e o imaginário” e, em clarão de síntese, o “mais” que a tudo subjaz, pois nele vive e se faz o "lugar" onde se dá o Encontro.

É essa Realidade, creio eu, esse olhar cego, olhar que queima, olhar livre, que buscam os sábios, os santos, os poetas e os místicos de todas as religiões. É esse “Ser tal qual se é”; essa visão branca de pleno vazio a arder de Plenitude que o coração guarda em si, em tesouro, e que é preciso desvelar para que arda em Liberdade e Amor. Por isso se mata Buda , por falso, quando imaginamos vê-lo, e se mata Cristo, para que nos morra sem morte, ressuscitado em Espírito onde somos Ele. Eesse nenhum espaço e nenhum lugar é a radiosa estrela, a grande aventura surreal. Buscá-lo, só pode ser a Esperança, determiná-lo, o erro do Homem. Viver os contrários, superá-los, talvez seja a única possibilidade irreal ou a única impossibilidade real desta e de outras aventuras poéticas.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Ainda que tropeçes numa Visão, saberás
no entanto, a realidade em que te encontras.
E assim, cair, é sinónimo da tua Procura!

Poesia é um barulho da vida

A tradição européia liga a poesia à primavera. Essa foi uma convenção estabelecida como tantas outras. O que determina o aparecimento da poesia ou a composição de um poema é de ordem mais sutil e subjetiva. Assunto para um tratado dos grandes – e ao mesmo tempo quase nada. A natureza e o mundo que nos cerca, o tempo, a interação com os outros, sentimentos, emoções, o que se aprendeu e experimentou desempenham um papel importante no fazer poético.
Hoje em dia, quando o modo de vida nas cidades (e mesmo fora delas) exige de nós tanta contenção e causa tanto desgaste emocional; quando os problemas crescem na razão direta das exigências que não conseguimos satisfazer; quando o que se espera de cada um é talvez muito mais do que seria razoável esperar de seres humanos perdidos em nossas babéis em ritmo de globalização caótica; quando cada pessoa é confrontada com desempenhos consagrados e inteiramente inalcançáveis para a absoluta maioria; quando nossos limites são testados e desafiados dia a dia no trabalho, na família, na rua, é claro que a poesia tem que refletir isso.
Não só a linguagem mudou. O modo de sentir o mundo e reagir aos estímulos se tornou mais tenso, mais áspero, porque é preciso ativar as defesas para não se ferir a toda hora.
Nada no entanto impediu que continuassem surgindo poetas verdadeiros neste mundo difícil e tantas vezes cruel. Parece que enquanto existir gente na Terra, existirão poetas. Poetas que falam não só de amor e flor, mas da humana condição, da falta permanente de alguma coisa que amenize a inquietação e a angústia, das coisas que os afetam, da própria circunstância do poema. Específico da poesia é o sentimento súbito do que toca a pele, da percepção aguçada que se amplia, instigadora, e num certo momento irrompe e mobiliza alguém a expressá-la. Mas para isso é preciso que haja um silêncio interior, uma certa contemplação desse processo, condição para ouvir o “barulho” da poesia. Desse barulho de que fala Ferreira Gullar, num poema que expressa quase a essência da questão:

Todo poema é feito de ar
apenas: a mão do poeta
não rasga a madeira
não fere
o metal
a pedra
não tinge de azul
os dedos
quando escreve manhã
ou brisa
ou blusa de mulher.
O poema
é sem matéria palpável
tudo
o que há nele
é barulho
quando rumoreja
ao sopro da leitura.

De Carlos Drummond de Andrade, um poema instrutivo, que fala das palavras, da serenidade e do silêncio, três colunas mestras de um poema:

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intacta.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros.
Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consuma
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.

Reparem como Paulo Leminski incorpora a turbulência de nossos dias sem deixar de seguir essas receitas:

maldito
o que não deixa cantar
o canto é fraco
maldito
o que não deixa cantar
o canto é forte
maldito
o que não deixa cantar
o canto gera outro canto
maldito
o que não deixa cantar
o canto nunca deixa de cantar

Poesia não é antídoto de nada, não é remédio, não relaxa, não dá sono. Ignora rótulos e visões preconcebidas. Como tudo nesta vida, tem suas formas próprias, que devem e precisam ser bem cuidadas para que o poema soe verdadeiro, mas que pouco valem se o que se diz for fraco, falso, artificial, pretensioso. Os puristas que me perdoem, mas um poema tem que ser do mundo, dos outros, da morte, e sempre, sempre da precariedade humana que se recria em palavras. Isso vale também para poemas que falam de uma realidade interior, de sentimentos subjetivos, porque, já dizia Vinicius, “a vida só se dá pra quem se deu”. E acho que não está errado dizer que fazer poesia é um modo bem-sofrido de viver – e por bem-sofrido quero dizer a dor e a alegria, o amor e seus avessos experimentados em profundidade.
O que legitima um poema são as marcas, as cicatrizes, os efeitos concretos da realidade sobre quem o escreve; é a experiência vivida – embora precise existir “calma e frescura na superfície intacta” para deixar que venha à tona e se estruture. Importa muito pouco se é um soneto, um haicai, se são trovas, versos livres e brancos ou redondilhas. Cada poema deve se impor por si mesmo, “com seu poder de palavra / e seu poder de silêncio.”

Da Lira, por Isabel Rosete


Orfeu! Ah, Orfeu!
Tu, ó deus da lira e do canto,
Da katarsis musical,
Que me moves o corpo
E adoças a alma
Nos desígnios do Amor
Puro e leve,
Trágico e terrível.
Sempre presente
Estiveste, ó Orfeu, saudado e desejado,
No reino dos vivos e dos mortos,
Amando, sofrendo,
Lamentando-te pelo Amor perdido.
Orfeu! Ah, Orfeu!
Tu, ó grande dádiva de magia
Que até os rochedos comovias.
Não tens limites,
Ultrapassas todas as fronteiras,
Infindas, que só a arte das Musas alcança.

Orfeu! Ah, Orfeu!
Como me revejo nesse teu Amor
Des-graçado, penitente, nunca recuperado.

Também eu des-pedaçada,
Não pelas mãos das Ménades
Embriagadas por Diónisos,
Mas pelas garras dos amantes
Que não me amaram,
Dos amantes que me possuíram
E nunca me conquistaram.

Isabel Rosete



Uma crónica de Delhi de José Eduardo Reis, do Conselho de Direcção da ENTRE

Acabei de ter o meu primeiro banho de multidao. Delhi, avenida Mahatma Gandi, fim de tarde, hora de ponta. O ruido permanente das buzinas tem uma funcao preventiva e ordenadora. E (devia ter acento) a dimensao audivel do transito estratificado por castas: do ricoxo a lambretas-taxis, de motoretas (numa iam tres pessoas e uma delas, de pe, bracejava como um policia sinaleiro para facilitar a travessia em contra-mao, na diagonal e aos zigzagues, a avenida) a autocarros sem luzes e outros com poucas luzes, uns apinhados com gente a sair pelas portas traseiras, outros semi-vazios, carcacas de latao fumegantes mas decorados com fitas douradas pendentes dos vidros traseiros, e muitos automoveis, alguns teimando em circular contra a corrente formada por uma massa continua de veiculos motorizados que aparentemente se deslocavam numa arteria de sentido unico. Um verdadeiro trafego darwinista.Mas incrivelemente nao vi, apesar de muitas ameacas, uma unica colisao. Percebe-se que ha um codigo que funciona. As buzinas dao o tom a este sistema mais que dinamico, um caos de milhares de unidades discretas que para o meu olhar estupefacto e contemplativo parece um fluxo, uma corrente que avanca ininterrupta, um hino a diversidade da luta pela vida.

- José Eduardo Reis, Nova Delhi, 5.2.2011 (sem acentos, para respeitar o original)

Da rectidão louca

Como deverás ser recto? Isso deve-se entender de duas maneiras, segundo as palavras do profeta que diz: «Mas, ao chegar a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho» (Gl 4,4). A plenitude do tempo existe de duas maneiras. Pois uma coisa é plena quando ela chegou ao seu fim, assim como o dia é pleno com a sua noite. Por isso o tempo será pleno, quando o todo o tempo se desprender de ti. A segunda maneira é quando o tempo chega ao seu fim, o que quer dizer: à eternidade; pois aí todo o tempo tem um fim, porque aí não existe nem antes em depois. Aí, tudo o que é, é presente e novo, e ai tens numa contemplação presente o que sempre aconteceu e acontecerá. Aí não há antes nem depois, tudo aí é presente; e nessa contemplação presente eu conservo todas as coisas em minha posse. Isso é a plenitude do tempo, e assim serei recto, e assim sou verdadeiramente o filho único e Cristo.
Que Deus nos ajude a alcançarmos essa plenitude do tempo. Ámen.

Mestre Eckhart, Tratados e Sermões, Paulinas Editora, p.240

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Helena, esquecida, largou a estação da vida

As cores definidas, o contorno do olhar desenhando a fronteira do nosso esquecimento. Ao longe- gargalhadas. Foi na ilha, que ouvi  contar, a história de Helena Serena.
A campainha insistente soou feito um lamento contínuo, sofrido. Helena Serena esqueceu o presente. Abriu a porta e como se fosse um jogo,  escondeu-se noutro tempo. Passou a conjugar o presente no  passado. Helena, esquecida, largou a estação da vida.
- Senhor Manuel, quanto custa o aipim?
- O senhor Manuel, morreu Helena Serena…
Nebuloso o olhar triste de Helena. Seu realejo cantou a saudade doutro tempo. Desafinado, embalou o engano.Nunca soube o fim da história.
Andei pelo bairro da Boa Morte, perguntei por Helena. Na rua os meninos gritaram:
- Brasileirinha. Branca. Helena viveu num tempo inventado. Serena se foi numa hora sem hora. Perdida perdeu-se no espaço…Brasileirinha, procuras que tempo?
- Procuro o tempo… que Helena perdeu
- Vens de onde, brasileira?
- Venho de um compasso desafinado. Procuro quem roubou o tempo de Helena, que também era meu
- Brasileirinha olha o horizonte, vês?
-….
- Vês o sol a dizer até amanhã?
-….
- Sempre o mesmo todos os dias. Enquanto te perdes por Helena Serena, perdes quem te visita todos os dias.
O galo acorda as seis da manhã. Na roça, o cacau está quase maduro. Seis da tarde, há peixe pescado na rede do pescador. Meu olhar desenha o contorno da vida, tão presente o sorriso dela. O sol é tão laranja!
Quero um homem feminino que faça amor, quando se deita comigo. E no momento do prazer, que o dele seja o meu, tão feliz eu fico com seu deleite.
Ressureição:

Por que vivemos os dias, todos os dias,
com uma morte escondida em cada mão?

Primeiro passo na internacionalização do pensamento e obra de Agostinho da Silva



AGOSTINHO DA SILVA, Penseur, écrivain, éducateur, organização de Paulo Borges, José Manuel Da Costa Esteves, Idelette Muzart-Fonseca dos Santos, colecção Mondes Lusophones, Paris, L'Harmattan, 2010, 330 páginas.

Foi dado o primeiro passo para a internacionalização do pensamento e obra de Agostinho da Silva, com este volume que inclui uma antologia de textos seus (organizada por Paulo Borges e Rui Lopo) e as actas do colóquio em sua homenagem, no dia do seu aniversário, 13 de Fevereiro de 2007, no Centro Calouste Gulbenkian, em Paris.

Estão já prontas outras traduções, para italiano e alemão.

Uma vida de cão...



Gostariam de experimentar?

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Ruído e Silêncio em Vergílio Ferreira (excerto), Isabel Rosete

O ruído omnipresente, tão característico da sociedade contemporânea, tornou-se um meio identitário, um modo de ser estar ocupado e preenchido, mas não um modo de ser do indivíduo. A modernidade abriu caça a todas as formas de silêncio. Exorciza-o, conserva-o à distância, considera-o politicamente incorrecto. Somos incapazes de nos abrirmos a uma «aprendizagem serena do silêncio», de escutar as vozes silenciosas da Terra, as vozes ermas dos campos «no calor parado da tarde». Perdemos, definitivamente, a serenidade e não somos mais capazes de fruir o «riso sem som», de nos determos a escutar, de nos calarmos, de percebermos, pois, que até «Deus entreabre um olhar no silêncio do campo em ruínas». Enfim, de regressarmos «ao silêncio fundamental».
       Justifica-se, presentemente, a sua fobia, pois a palavra é o único antídoto para a as múltiplas formas de totalitarismo que procuram reduzir a sociedade ao silêncio. É a grande estratégia dos políticos, das figuras públicas mais influentes. Mas não usam eles os totalitarismos, a palavra como formas de calar a voz dos que ainda escutam os desígnios insondáveis do Ser, da Vida e da Morte?
.......Seja como for, o silêncio deixou de fazer parte da nossa cultura, e o pensar vergiliano é bem a memória recôndita, mas des-velada deste estado insuportável da humanidade. O silêncio tornou-se um intruso, um abismo no seio do discurso, até mesmo um factor de desconforto, qual circunstância penosa, assunto particularmente impopular nos dia que correm na agonia da demagogia barata que tanto ilude muitas das mentes ditas mais esclarecidas, que comove as massas, sedentas de ouvir qualquer coisa que soe bem, mas, no entanto, incapazes de escutar o ser essencial das palavras de origem, esse modo de ser da linguagem, onde a verdade e autenticidade das coisas nascem e são.
.......A situação é, contudo paradoxal: a saturação da palavra, dos discursos eloquentes, mas vazios de conteúdo significante, das mis engendradas tagarelices dos renascidos Sofistas, induzem, cada vez mais, ao fascínio do silêncio. Ambivalente, suscita o amor e o ódio. Ousar falar dele, torna-se um tema provocatório, quiçá, contracultural, contribuindo para subverter o conformismo pacóvio, o efeito anestesiante e dissolvente do ruído incessante, que nos impede de ouvir, mesmo a «boca aberta num grito» . Os nossos ouvidos estão cobertos de «lixo orgânico», e até «mesmo Deus que é um chato», «tem sempre uma palavra a dizer»; e as nossas casas jamais adormecem no silêncio .
.......Mas o silêncio também assume uma função reparadora, eminentemente terapêutica, repondo pelo discurso inteligente, de que obra de Vergílio Ferreira é dos exemplos mais eminentes de toda a Literatura Portuguesa – um bem escasso, aliás – a necessidade vital de integridade. Mostra-nos o nosso escritor que, sem ele, perdemo-nos nas palavras, perdemos o fio condutor no crescente labirinto do discurso: essa infindável imensidão do silêncio rodeia qualquer escrito, qualquer assunto, qualquer existência humana, deixando-lhe justamente a possibilidade do seu encaminhamento ao longo de uma margem sem princípio nem fim. Sem norte, sem destino. Nas basta aprender a ouvir. Para escutar o mundo e outro, é preciso saber partir do silêncio. Esta é uma das grandes mensagens do nosso escritor, tal como foi de le Breton, tão inspirado na soberba escrita do Silêncio.

Isabel Rosete