terça-feira, 27 de março de 2012

Para uma nova cultura

‎"No cerne da presente crise cultural está a colisão entre os princípios operativos da sociedade moderna e do reino da vida, ou, em resumo, a colisão entre a sócio-esfera e a biosfera. Esta colisão tem lugar simultaneamente fora e dentro do organismo humano. Ela pode ser vista nos lagos e rios mortos tal como na epidemia de perturbações de identidade e de doenças psicossomáticas. A miséria ecológica e emocional são dois aspectos do mesmo beco cultural sem saída. Uma concepção cultural convincente deve, hoje, ser capaz de abordar as duas áreas. O principal tema da era que está a chegar será o de integrar a vida humana no mundo universal do Vivo. Isto precisa de ter lugar em todos os níveis da nossa existência, do sexual ao técnico e do político ao espiritual. É o tema comum a todos os centros culturais que estão coerentemente a desenvolver contributos para a sociedade do futuro"

- Dieter Duhm, Towards a new culture, 1993, p.15

quarta-feira, 21 de março de 2012

Entrevista de Paulo Borges ao filósofo romeno Ciprian Valcan sobre budismo, filosofia, Cioran, Oriente e Ocidente

1. Em que medida um melhor conhecimento da filosofia oriental contribui para a transformação da reflexão filosófica da tradição ocidental? No seu caso, como é que o budismo influenciou o estilo de filosofia que pratica?

Conhecer as filosofias orientais – muito diversas entre si – é indispensável para conhecer melhor a própria filosofia ocidental. Por um lado, porque algumas filosofias orientais, como a persa e a indiana, são fruto da mesma matriz linguística e cultural, a indo-europeia, com categorias muito semelhantes às do pensamento ocidental, procedente da submatriz grega do pensamento indoeuropeu. Por outro, porque outras filosofias orientais, como a chinesa e a japonesa, radicam numa matriz linguística e cultural muito distinta, configurando uma heterotopia (Michel Foucault), uma alteridade apenas por contraste com a qual se podem plenamente esclarecer as fundamentais opções que configuraram o destino da filosofia europeia-ocidental e a civilização dela surgida. Não é possível compreender a Europa e a filosofia ocidental sem as confrontar com o pensamento chinês, como hoje mostra François Jullien. O mesmo se pode dizer, embora de forma mais atenuada, da filosofia persa, indiana e tibetana (a qual, embora procedente de outra matriz linguística, incorporou muitas das categorias indianas). Se bem que ligadas a uma matriz comum, estas filosofias exploraram possibilidades muito diversas daquelas que foram sendo predominantemente privilegiadas pelo pensamento ocidental. Pese o risco de generalizações sempre falaciosas, pode dizer-se que as filosofias orientais privilegiam a experiência directa e pré-conceptual da vida e/ou do fundo indeterminado dos fenómenos, enquanto a filosofia ocidental, sobretudo desde Platão e Aristóteles, optou pela determinação conceptual do mundo com fins político-científicos. Outra grande diferença é o antropocentrismo do pensamento ocidental pós-socrático - raiz da actual crise ecológica e da devastação da Terra e dos seres vivos - perante a tendencial empatia cósmica do pensamento oriental com todas as formas de vida, vistas como iguais no seu fundo comum. Seja como for, as tradições são sempre muito mais interligadas do que as histórias da filosofia nos levam a crer. Não há culturas, mas sim entre-culturas.

Conhecer o pensamento oriental é decisivo para que o Ocidente compreenda as outras possibilidades que as suas opções sacrificaram, mas que nele permanecem latentes, por serem inerentes ao homem e ao espírito. Isto já é uma profunda transformação e possibilita imprevistas metamorfoses do pensar europeu-ocidental. Isto exige todavia o expatriamento da nossa situação cultural mais imediata, que nos permita vê-la de fora, panoramicamente. Isto exige um pensamento nómada, que não se ancore numa dada matriz linguístico-cultural, mas viva em constante viagem no espaço entre todas elas. É esse o projecto da revista que dirijo, Cultura ENTRE Culturas.

Encontrei o budismo ao terminar a licenciatura em Filosofia, em 1981, e reconheci nele o que já era e vivia antes de o saber. Senti o mesmo em relação a alguns pensadores portugueses contemporâneos, que descobri na mesma altura. Essas influências, o budismo, sobretudo Nagarjuna, Longchenpa, Hui Neng, Linji, Dogen, Chögyam Trungpa, Thich Nhat Hanh, o tantrismo e o Dzogchen tibetanos, os mestres com quem estudo pessoalmente, a prática quotidiana da meditação, pensadores e poetas portugueses como Antero de Quental, Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa, José Marinho, Eudoro de Sousa e Agostinho da Silva, mas também Eckhart, Rumi, Nietzsche, Cioran e poetas e místicos de todas as tradições, têm-me ajudado a esclarecer as mais gratas experiências que remontam à infância: o sentimento agudo da estranheza de existir e haver realidade, vivido até à iminência da exaustão e loucura; a comunhão disso com um amigo de jogos de rua, cerca dos 8 anos de idade; a iniciação adolescente à consciência sem sujeito nem objecto e ao sentimento de ser todo o mundo-ninguém por via da música, da dança e da experiência erótico-sexual e amorosa; a experiência do espaço aberto ao sair da Universidade de Lisboa, no fim das aulas de Filosofia, com a mente livre de todo o artifício conceptual; a mesma liberdade nas longas caminhadas por montanhas e florestas, pelas colinas de Lisboa e ao entardecer nos miradouros sobre o Tejo; a contemplação do oceano no finisterra português e a saudade de um não sei quê; o brilho das coisas nos muros caiados de branco; a vida sem quem nem quê, sem porquê nem para quê, livre e infinita. De tudo isso vem e a tudo isso regressa o meu pensar, mais directamente expresso em A cada instante estamos a tempo de nunca haver nascido e Da saudade como via de libertação (2008), além de na ficção Línguas de Fogo (2006).

2. Como se produziu a sua conversão ao budismo? Foi uma escolha racional ou um puro acto de fé?

Não me sinto convertido ao “budismo”. Na verdade não me interessa tanto o budismo histórico e institucional, mas antes a experiência de Buda, o Despertar da mente-coração na sua natureza primordial, livre de condicionamentos conceptuais-emocionais e das decorrentes convenções sócio-culturais. É isso que encontro nos mestres e em muitos homens exemplares de todas as tradições espirituais, bem como na agnóstica e ateia. Deus procede de uma raiz indo-europeia que significa “o que brilha” e a experiência dessa luz que há na consciência, para além de budologias e teologias, de religiões e filosofias, é a mesma em todo o homem, religioso, agnóstico ou ateu.

Dei por mim a seguir a via do Buda por experiência, caminho do meio para além da razão e da fé. Pessoalmente aprecio nela várias qualidades: o espírito iconoclasta, patente no “Se vires o Buda, mata-o!” de Linji, pois o Despertar não é alguém ou algo exterior; ser experimental e não dogmática, pesem os desvios de muitos budistas; ter uma ética global que não exclui nenhum ser senciente, como os animais; assumir-se como mero meio a ultrapassar, pois o que importa não é ser budista e sim Buda; e, sobretudo, a qualidade e inspiração dos mestres vivos que a ensinam. Contudo o meu interesse pelo budismo estende-se a todas as religiões e vias espirituais, formas diferentes de conduzir pessoas com distintas tendências, capacidades e condicionamentos histórico-culturais a um mesmo objectivo: a plena descoberta de quem desde sempre são.

3. Como veio a conhecer a obra de Cioran e que significado teve para si o contacto com esta obra?

Há algo em mim tão afim que não poderia deixar de a encontrar. É como se Cioran expressasse toda a revolta, desespero e pulsão niilista da minha adolescência e juventude, mas hoje não é tanto isso que na sua obra me interessa, lamentando que fique demasiado refém disso e de uma dolorosa ausência de amor e compaixão. Interessa-me nele o iconoclasmo místico e, sobretudo, as aberturas a uma transfiguração redentora. Cioran poderia ter escrito apenas o seguinte trecho de Sur les Cimes du Désespoir, no qual me reconheço inteiramente: “Gostaria de perder a razão com uma única condição: ter a certeza de me tornar um louco alegre e jovial, sem problemas nem obsessões, folgazão de manhã à noite. Se bem que deseje ardentemente êxtases luminosos, não os quereria no entanto, pois são sempre seguidos de depressões. Quereria, em contrapartida, que um banho de luz de mim brotasse para transfigurar o universo – um banho que, longe da tensão do êxtase, conservaria a calma de uma eternidade luminosa. Teria a ligeireza da graça e o calor de um sorriso. Quereria que o mundo inteiro flutuasse neste sonho de claridade, neste encanto de transparência e imaterialidade. Que não haja mais obstáculo nem matéria, forma ou confins. E que, neste paraíso, eu morra de luz”.

Cioran inspira a mais ousada e radical aventura: transcender todos os limites do pensamento, da vida e da existência e sobreviver para o dizer ou gritar, com uma mestria literária que enobrece as ruínas do mundo. Inspira-me também nele o que encontro em portugueses como Pascoaes e Pessoa: na periferia da cultura europeia dominante, agudamente conscientes do fim de ciclo da sua civilização, serem movidos pelo ímpeto de libertação dos ídolos dessa mesma cultura e civilização, sem se deterem no limite do humano, numa titânica hybris de superação de tudo, do sujeito e de si mesma, numa nostalgia ou saudade violenta do incondicionado, irredutível à constituição do sujeito no mundo e fundo sem fundo de toda a experiência. Fascina-me o modo como em Cioran o génio literário serve um obsessivo e minucioso ajuste de contas com todas as ficções da consciência, da história e da cultura, escalpelizadas e reduzidas a cinzas pelo cirúrgico e cáustico bisturi do aforismo e do pensamento incendiado na veemência da insónia, da febre e da blasfémia, mas também do entusiasmo extático e transfigurador. E também a assumida inspiração no primitivismo dos camponeses das montanhas romenas e na pulsão herética da sua cultura popular, semelhante ao que em Portugal acontece com Teixeira de Pascoaes ou Agostinho da Silva. Cioran mostra aliás conhecer as fundas afinidades entre a cultura romena e a portuguesa. Num dos seus Entretiens assume a “nostalgia sem limites”, inerente à fugacidade da experiência temporal do absoluto, como fundadora da sua visão do mundo e acrescenta: “Este sentimento liga-se em parte às minhas origens romenas. Ele impregna ali toda a poesia popular. É uma dilaceração indefinível que se diz em romeno dor, próxima da Sehnsucht dos Alemães, mas sobretudo da Saudade dos Portugueses”.

Fiz uma conferência sobre Cioran e Fernando Pessoa na Universidade de Gröningen, na Holanda, em 2009, que publiquei na revista Arca graças a Ciprian Valcan e que incluí no meu último livro sobre Pessoa: O Teatro da Vacuidade ou a impossibilidade de ser eu (2011).

4. Qual a recepção actual da obra de Cioran em Portugal?

Nos últimos anos tem havido um aumento de traduções que estão a ser recebidas com muito interesse, mas creio que até agora só há um estudo publicado: João Maurício Barreiros Brás, O pensamento insuportável de Cioran. Um itinerário do desespero à lucidez (2006).

5. Qual o papel da filosofia na nossa época? Crê que a filosofia chegou ao fim do seu caminho ou tem hipóteses de sobreviver?

Tudo o que tem início tem fim e a filosofia, se a identificarmos com a modalidade logocêntrica e conceptual surgida na Grécia e sobretudo com a sua vertente académica e institucional, está a esgotar-se, pelo afastamento da vida e de outras possibilidades do espírito. A filosofia deixou em geral de ser um modo de vida integral, como nas escolas filosóficas gregas (como recordou Pierre Hadot) e indianas, para se tornar uma actividade meramente intelectual, com uma linguagem técnica hiper-especializada em questões estéreis, que nada dizem às fundamentais aspirações humanas. Essa filosofia traiu a própria vocação, enquanto amor da sabedoria, do saber/sabor da essência da vida, e nesse sentido o seu triunfo é a sua morte.

Por outro lado, se considerarmos filosofia as múltiplas formas do pensamento planetário que visam a sabedoria - um saber que nos converte naquilo que sabemos e promove uma vida mais plena e solidária - , então essa filosofia é perene enquanto conatural ao exercício consciente do viver e sempre se renova em função dos novos lances do jogo do mundo. No que respeita à filosofia ocidental, creio que o seu renascimento depende do diálogo com esses outros paradigmas não-ocidentais e sobretudo do reencontro com a vida e o infinito que nela se abre. Necessitamos de um novo início: repensar tudo na experiência mais imediata, a do indeterminado pré-conceptual. Não a partir de Deus, do homem, do mundo ou de qualquer outro pressuposto, não “a partir de”, mas nisso que a cada instante antes de se pensar e se abre entre cada pensamento, palavra e fenómeno. Isso implica morte e renascimento contínuos: viver sem apoios.

6. A prática do aforismo ou do fragmento poderia contribuir para dar um novo alento à filosofia ocidental, mais aberto e menos dogmático?

A filosofia nasce do espanto balbuciante não só perante o haver algo, mas também perante o nada desse haver. Só aí pode re-nascer a cada instante, incinerando todos os conceitos, métodos e sistemas. O aforismo e o fragmento são o mais eloquente dizer desse gritante silêncio que há no aparecer das coisas. Neles a filosofia regressa à sua matriz místico-poética, anterior à violência do conceito que a extirpou do espanto original, como diz Maria Zambrano.

7. Crê que se pode falar de um declínio geral da civilização ocidental ou olha para o futuro com esperança? A civilização oriental poderia oferecer um modelo para este Ocidente que padece de niilismo?

Procuro viver e pensar para além do medo e da esperança. No plano colectivo, feito desse medo e esperança, creio assistirmos ao fim do que se convencionou chamar Ocidente e Oriente, que progressivamente se fundem numa nova civilização global que exteriormente tem um cunho ocidental - económico e tecnológico - , mas que arrisca uma vida curta e o iminente colapso social e ecológico se interiormente e ao nível da liderança não reencontrar a espiritualidade e a ética que presidiram ao melhor do Ocidente e do Oriente tradicionais, mas agora em termos laicos e trans-religiosos. Foi o que anunciou Fernando Pessoa, ao interpretar o maior mito profético da cultura portuguesa, o do Quinto Império, como uma era do espírito e da cultura que deverá fundir e elevar a uma superior síntese civilizacional a essência de Grécia, Roma, Cristandade e Europa, incorporando ainda o melhor de todas as culturas e civilizações mundiais num amplo universalismo. Antevejo essa superior síntese como uma nova aliança com a Terra e todos os seres vivos, fundada numa consciência holística e numa ética cósmica.

O niilismo ocidental resulta da incapacidade de se suportar habitar po-eticamente esse “vazio” aberto pela “morte de Deus” proclamada pelo “louco” nietzschiano: “Para onde vamos nós próprios? […] Não estaremos incessantemente a cair? Para diante, para trás, para o lado, para todos os lados? Haverá ainda um acima, um abaixo? Não estaremos errando através de um vazio infinito? Não sentiremos na face o sopro do vazio?”. Nesse aspecto, a espiritualidade oriental, mas também a de Plotino, Eckhart ou a heteronimia de Pessoa, podem ajudar-nos a descobrir nesse abismo o nosso próprio rosto e o de todas as coisas: o infinito exuberante de todos os possíveis, Todo o Mundo-Ninguém.

- Entrevista publicada em "Orizont" (Revista da União dos Escritores da Roménia), nr. 2 (1553), Ano XXIV, nova série, 28 de Fevereiro de 2012. Traduzida para romeno por Maria João Coutinho e Simion Cristea.

http://www.revistaorizont.ro/

sexta-feira, 16 de março de 2012

Biblia Hebraica

Manuscrito em pergaminho atribuível à escola de calígrafos de Lisboa, da segunda metade do século XV, raríssimo (conhecem-se pouco mais de 20 exemplares!), porque a maioria destas bíblias, na Península, foram confiscadas e queimadas pela Inquisição. Não tem colophon (isto é, o local onde se inscrevem os dados do local e data) que nos informe da sua data e do nome do seu autor. Este exemplar tem as páginas iniciais inteiramente preenchidas com uma escrita micrográfica, de gosto mudéjar, a tinta castanha e ouro, semelhante a exemplares assinados pelo calígrafo Samuel Isaac de Medina, datados entre 1469 e 1490, e que se conservam na Palatina de Parma, em Cincinnati e em Oxford. Faltando-lhe embora algumas características decorativas típicas da escola lisboeta (tarjas e iluminuras cor malva), tem anotações e pertences que a relacionam com a família Abravanel, de Lisboa e de Sevilha. É, por isso, conhecida como a Bíblia de Abravanel.

Tesouros da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra

quinta-feira, 15 de março de 2012

"Dançar é sentir, sentir é sofrer, sofrer é amar... Tu amas, sofres e sentes. Dança!"

(The Red Shoes - fotos e textos escolhidos por Adama)

"Dançar é sentir, sentir é sofrer, sofrer é amar... Tu amas, sofres e sentes. Dança!"

- Isadora Duncan

“A liberdade ofende. Mulher de olhos brilhantes, Isadora é inimiga declarada da escola, do matrimónio, da dança clássica e de tudo que engaiole o vento. Ela dança porque dançando goza, e dança o que quer, quando quer e como quer, e as orquestras se calam frente à música que nasce do seu corpo “

- Eduardo Galeano

"No edifício do pensamento não encontrei nenhuma categoria na qual pousar a cabeça. Em contrapartida, que belo travesseiro é o Caos!" - Cioran

quarta-feira, 14 de março de 2012

"O círculo desenha-se no apagar-se"

"O círculo desenha-se no apagar-se", aforismo de Paulo Borges, da série 'Grãos de Areia', in "Cultura Entre Culturas", nº 4, pág. 9.

"Aí, então, floresces..."

“Por vezes, uma única árvore é toda a floresta; por vezes, a árvore é tão-só uma miragem que te distrai das tuas próprias raízes. Por vezes ainda, por vezes nem a árvore permanece. Aí, então, floresces…”
– Luiz Pires dos Reys, “nascer do dia frag: mentos do ermo a esmo”, XV, in Cultura ENTRE Culturas, nº4, p.40.

sábado, 10 de março de 2012

O poema nasce como o fogo tricolor
e o poeta constrói-se com as cinzas diurnas
de um palácio azul turquesa. o poema fala e
semeia gritos esculturais como um hóspede
da madrugada a ler a sua confissão. o poema cabe
em nós como uma flor de mármore
à espera que o silêncio ganhe botões de rosa.
o poema fecunda-se na parte feminina do escuro
no interior das axilas do vento, onde os sonhos acendem
janelas e as sombras são uivos de paisagens
com perfume de criança.

quarta-feira, 7 de março de 2012

"Uma vez, no meio de todos os cinzentos dias da minha vida, vi o coração da realidade; fui testemunha da verdade”

“[…] neste cenário de todos os dias, e de um modo inteiramente inesperado (pois jamais havia sonhado com tal coisa), os meus olhos foram abertos e, pela primeira vez em toda a minha vida, tive um vislumbre da beleza estática da realidade…

[…] Não vi nenhuma coisa nova, mas vi todas as coisas habituais numa miraculosa luz nova – no que acredito ser a sua verdadeira luz. Vi pela primeira vez quão selvaticamente bela e jubilosa, para além de quaisquer palavras minhas para o descrever, é a totalidade da vida. Cada ser humano atravessando aquela varanda, cada pardal que voava, cada ramo oscilando ao vento, estava integrado e era parte do inteiro e louco êxtase de encanto, alegria, significância e embriaguez da vida.

Não que por uns poucos e excitados momentos eu imaginasse toda a existência como bela, mas, antes, a minha visão interna foi desobstruída para a verdade, de modo que vi o real encanto que está sempre aí, mas que tão raramente percepcionamos, e soube que todo o homem, mulher, ave ou árvore, toda a coisa viva diante de mim, era extravagantemente bela e extravagantemente importante. E, ao contemplar, o meu coração fundiu-se e abandonou-me num arrebatamento de amor e deleite. […]

Uma vez, no meio de todos os cinzentos dias da minha vida, vi o coração da realidade; fui testemunha da verdade”

- Margaret Scott Montague, Twenty Minutes of Reality.

"...estarei com todos aqueles que tenham pensado todo o possível como ilimitado"

- Agostinho da Silva, Pensamento à Solta, in Textos e Ensaios Filosóficos II, p. 175.

sábado, 3 de março de 2012

O ser humano, muitas vezes, não consegue ser humano.

São apresentados hoje no Porto livros de dois dos colaboradores da "Entre": "Falosofia" de Bruno Miguel Resende, que será apresentado pelo Dr. Gilberto de Lascariz, e "Spabilanto" de Fátima Vale, apresentado pela poeta Melusine de Mattos. Ambos os autores colaboraram no nº 4 da revista. É hoje, dia 3, no Orfeão do Porto, às 21,30 horas.

imagem da capa e ilustrações de magule wango 
paginação e design gráfico de bruno miguel resende   

paginação e design gráfico de bruno miguel resende   


Publicamos aqui os primeiros parágrafos do texto de Luiz Pires dos Reys, director de arte da Entre (que, diz-se, assina por vezes como Donis de Frol Guilhade) sobre as obras de Fátima Vale e Bruno Miguel Resende, hoje apresentadas no Porto, de acordo com a informação do título deste post.
O texto, que será publicado posteriormente na revista "Infernus" (quer na sua edição web, quer na sua luxuosa edição em papel) pode ser lido na íntegra aqui: http://www.spabilados.net/?p=1211



c a c a f o r i s m o s   d o   d e s a f o r o 
ou de como o creme compensa a vale e a valete  
(sonata para flauta de pã de resende e gritos no vale em três andamentos e trinta três degraus sempre a descer)

§ primo andamento: allegro rubato molto espressivo
1.     não mo pediram. por isso, apresento-me {em estado de estança indistante} na feliz encontrança de um par de mafarricos.
2.     se os digo maiúsculos, escrevo-o em minúsculas: porque sim. porque sim é igual a porque não sim: só  não o diz como mesmo.
3.  começa-se pelo final: que há-de confundir-se sem favor para com o desfecho, mas não para com a terminação. o fim, que não é lotaria nem lota, começa mesmo pelo final, porque “estar vivo pode [bem] ser ilegal”: por isso, lotaria.  por isso lutaria.
4.      à entrada tropeça-se logo – onde é a saída, por tutatis? – numa “fuga contrabandista” antes de dar de caras na lama da “tina (...) do sistema” em tombo-mestre. começa-se em grande, portanto. o assunto, na verdade, não é pequeno, nem o sujeito, mas não é o caso para menos (é a eito): veremos se é para mais.
5.    o índice é bonito: não existe. em vez de existir está toda a incomunidade sacrista esparramada na folha derradeira de ambos os vibrantes livruscos. até agora vinte duas opúsculas almas, de tantos quantos arcos maiores do baralho que nos arcana e sacana o destino e os destinatários do desatino.
6.    o senhor XXI de série é um bruno qualquer coisa que é dado, vê-se, à falosofia: já ouvi falar. não é daqueles que só falam na sophia, mas só assofiam. ela é sábia, que é, mas  é tambémeua  louca, que sobretudo é. já voltaremos ao senhor falósofo: se ele não se voltar de costas para si mesmo.
7.    em viségimo 2º na classificação geral da volta à presente estança está uma, qualquer coisa em átima, semblante assim para o grã-mátria viriata, e toda ela dharmática que nem serrana dakini. apresenta-se ademais afinada em clave de fá: vem pois cheia de fazada. a gente não se importa nada com isso, faz-lhe a vontade (não as vontades, entenda-se), e chama-lhe fátima.  só para que ela nos reconheça.  vale a pena passar incógnito onde todos se conhecem.
8.      os livros, esses, são sobre fantasmas (coisa de que toda a gente diz não ter medo: até à hora de ter!) e de cadáveres (coisa que toda a gente serfilho a gráfico, para ae serue ná um dia: à hora de ser!). O caso é este: assegura-se-nos que o “fantasma de la lembrança” dança lindamente com o “cadáber de 1 memiento”. perfeita cena de mimo para o álbum do nosso desmame funerário! 


Excerto de um texto sobre mística e saudade em Dalila Pereira da Costa, em homenagem a uma Amiga que deixou esta percepção do mundo




"Sem podermos aprofundar aqui a teoria daliliana da saudade e estender o nosso estudo às restantes obras onde a continua, parece-nos óbvio que a sua matriz e contornos fundamentais residem e radicam nesse “instante de ouro” de plenitude não pensada nem desejada, mas vivida, génese de um saber de experiência feito [1], pois, interrogamo-nos, de que mais e em última instância se poderá ter saudade? Sem esse conhecimento experimental, da possibilidade de abolição da percepção habitual da realidade, socialmente legitimada como normal, mas também sem o não menos experimental conhecimento da sua fugacidade no retorno à percepção dualista e opositiva de si, do mundo e do divino, não se compreende tudo o que brota da tentativa, sempre tortuosa e difícil, de o expressar, ao longo de quase quatro décadas. Sem esse duplo conhecimento experimental também não se compreende a teoria da saudade como a união na cisão que tende à reunião de todas as polaridades do real (ou da sua percepção) e à superação de si mesma na identidade reencontrada. Enquanto tal, ela parece ser o nome que assume, na tradição galaico-portuguesa, a única alternativa à perene errância da constitutiva fuga para a frente do homem e do mundo históricos (cf. Peter Sloterdijk, Welfremdheit), na sempre frustrada e sempre reiterada recusa da plenitude que sempre traz consigo porque a cada instante plenamente se lhe oferece. Desta mais nobre saudade, como alma do mundo e potência psicopompa e iniciática, tem sido e continuará Dalila a ser a nossa mais nobre guardiã".

- excerto de “[…] eu era o Outro”. Experiência Mística e Saudade em Dalila Pereira da Costa", publicado em Actas do III Colóquio Luso-Galaico sobre a Saudade - Em Homenagem a Dalila Pereira da Costa. Zéfiro, 2009.

[1] O ouro é tradicional e reconhecidamente um potente símbolo do incondicionado. Falando-nos do “ser de ouro”, também no contexto de uma experiência vivida e narrada, William Desmond fala-nos do kairos como esse “momento culminante do ser” e diz-nos: “Muitas vezes somos tomados por momentos de inteireza, em que uma inocência e uma alegria elementares são despertadas. Nessa perspectiva, a Idade de Ouro não precisa ser uma evasão do tempo, mas a atenção-plena mítica, memorial de uma presença qualitativa: temos de contemplar o mundo, agora, existente, partilhando a perfeição, manifestando algo inexprimivelmente bom” – William Desmond, A Filosofia e seus Outros – Modos do ser e do pensar, São Paulo, Edições Loyola, 2000, p.458; cf. também pp.450-463.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Seminário "O Bem e o Belo em contexto natural" - 2.ª Sessão ǀ Animais, Interesses e Direitos - 10 Março



Seminário "O Bem e o Belo em contexto natural"
2.ª Sessão ǀ Animais, Interesses e Direitos
10 de Março de 2012 | 9h30-18h
Anfiteatro Manuel Valadares, Museu Nacional de História Natural e da Ciência
Moderação: Maria José Varandas
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PAULO BORGES • Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Lisboa. Director da revista Cultura ENTRE Culturas. Sócio-fundador e membro da Direcção do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira. Sócio-fundador e vice-presidente da AIEM – Associação Interdisciplinar para o Estudo da Mente. Fundador e coordenador do Círculo do Entre-Ser, Associação Filosófica e Ética. Presidente da União Budista Portuguesa e da Associação Agostinho da Silva. Fundador e presidente da Direcção Nacional do Partido pelos Animais e pela Natureza (PAN).
Endereço electrónico: pauloaeborges@gmail.com

QUEM É O MEU PRÓXIMO? SENCIÊNCIA, COMPAIXÃO E ILIMITAÇÃO
“Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mateus, 22, 39). Quem é o meu próximo? Aquele que pertence ao mesmo grupo familiar, local, social, económico, nacional, étnico, cultural, linguístico, político ou religioso? Aquele que pertence à mesma espécie, ao mesmo planeta ou à mesma galáxia? Ou o meu próximo é aquele de quem me sentir próximo, ao ponto de o não sentir separado de mim nem a mim separado dele? O meu próximo tem então de ter duas pernas e dois braços ou pode ter quatro patas, muitas, nenhuma, caule, tronco, folhas, flores e frutos? Tem de ter cabelos e pele quase nua ou pode ter pêlos, penas, couraça, escamas e casca? Tem de viver sobre a terra ou pode rastejar dentro dela e voar e brilhar nos céus? Tem de ter uma vida individual ou pode ser a própria terra, as areias, as rochas, os minérios, as águas, os ventos, o fogo e as energias que em tudo isso habitam? Tem de falar a minha linguagem ou pode miar, ladrar, zumbir, uivar, cacarejar, grunhir, mugir, relinchar, rugir, trinar, grasnar, trovejar, soprar, relampejar, chover ou florir, frutificar, repousar e mover-se em silêncio? Tem de ter forma e ser visível ou pode não ter forma e ser invisível? Tem de ter vida consciente e senciente? Tem de ter vida? Tem de ser algum ser ou coisa ou pode ser tudo? A empatia, o sentir em si o outro como o mesmo, a compaixão, têm limites? Temos limites? Conhecemos a fronteira do que somos? Ou só o medo nos limita? O medo de tudo o que há. O medo do infinito e da vasta multidão que somos.
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MANUEL JOÃO PIRES • Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa onde prepara a sua dissertação de doutoramento. Orienta a sua investigação, essencialmente, nas áreas da ética, bioética e filosofia contemporânea, tendo várias comunicações e trabalhos publicados no âmbito das áreas mencionadas. É actualmente professor de Filosofia do ensino secundário, investigador do Centro de Filosofia da UL e dirigente da SEA – Sociedade de Ética Ambiental.
Endereço electrónico: manueljoaopires@hotmail.com

ALIENS, HUMANOS E NÃO-HUMANOS: O DESAFIO DA ÉTICA ANIMAL
Com base numa versão pessoal de uma experiência mental proposta por Mark Rowlands na obra Animal Rights: Moral Theory and Practice, será nosso objectivo debater o problema da consideração ética e avaliar criticamente o modo como os humanos usam os não-humanos para a satisfação dos seus interesses e preferências de natureza gastronómica, científica e de entretenimento. Tendo sempre presente o horizonte de sentido instaurado pela experiência mental, num primeiro momento, analisaremos o conceito de estatuto ético e as suas implicações directas no que respeita à forma como devemos tratar os seres que reúnem as condições suficientes ou necessárias para usufruir dessa condição ética. De seguida, procuraremos mostrar a inconsistência da pertença à espécie x ou y, incluindo à espécie homo sapiens, como critério para proceder à inclusão ou exclusão de um determinado ser da esfera de consideração ética, revelando, em simultâneo, a insustentabilidade do especismo como forma de justificar a utilização de um conjunto de seres para a satisfação dos interesses e preferências de outros seres. Assegurada a inconsistência ética do especismo, a nossa intenção será problematizar qual será a propriedade eticamente relevante que concede a um determinado ser, ou conjunto de seres, estatuto ético. Procuraremos mostrar que os critérios tradicionalmente usados no interior do paradigma antropocêntrico para a atribuição de estatuto ético, são arbitrários e injustificados, sendo inevitavelmente vítimas de uma redução ao absurdo ou reféns do argumento dos casos não paradigmáticos, uma vez que, independentemente das diferenças factuais existentes, aliens, humanos e não-humanos, partilham uma identidade ética, ou seja, são eticamente iguais. Por fim, numa lógica prévia à opção por uma fundamentação deontológica ou consequencialista da ética animal, procuraremos mostrar qual o fundamento e em que consiste, em concreto, o conceito de identidade ética e quais as suas implicações para o modo como os humanos usam os não-humanos para a satisfação das suas preferências gastronómicas, científicas e de entretenimento. Se os argumentos apresentados se revelarem sólidos, seremos forçados a reconhecer a necessidade de redefinir as fronteiras da consideração ética para além dos limites da humanidade e a concluir que, nós humanos, individualmente e como espécie, pelo estatuto que atribuímos e pela forma como tratamos os não-humanos, fracassámos, em absoluto, naquilo que Milan Kundera, no romance A Insustentável Leveza do Ser, considera o verdadeiro teste moral da humanidade.
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CRISTINA BECKERT • Professora Associada da FLUL, lecciona e investiga na área da Ética, na sua vertente teórica e prática, nomeadamente, no âmbito da Bioética médica e ambiental, bem como na da Filosofia Contemporânea. Tem obras publicadas nestas áreas, como Natureza e Ambiente: representações na cultura portuguesa, Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2001, Ética Ambiental, uma ética para o futuro, Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2003, Éticas e Políticas Ambientais, (coordenação juntamente com Maria José Varandas) Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2003, Um Pensar para o Outro. Reflexões sobre o Pensamento de Emmanuel Lévinas, Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2008 e Subjectividade e diacronia no pensamento de E. Lévinas, Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011.
Endereço electrónico: cjccb@mail.telepac.pt

O ESPELHO INVERTIDO. REFLEXÕES SOBRE A RELAÇÃO DO SER HUMANO COM OS OUTROS ANIMAIS
Propomo-nos abordar duas questões distintas, ainda que estreitamente ligadas. Assim, num primeiro momento, debruçar-nos-emos sobre os diversos modelos de relação que o ser humano manteve, ao longo dos tempos, com as restantes espécies animais, desde a simbiose até à exclusão da esfera da comunidade humana, por “excesso de semelhança”. De seguida, teceremos algumas considerações sobre o estatuto moral dos animais hoje, mostrando como a recusa de reconhecer necessidades e, sobretudo, direitos, para os animais não-humanos, é sempre devedora do que Richard Ryder, pela primeira vez, designou de especismo.
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CARLOS JOÃO CORREIA • Doutorou-se em Filosofia Contemporânea em 1993 na Universidade de Lisboa, tendo obtido igualmente o grau de Mestre em Antropologia Filosófica (1985) pela mesma Universidade. É Professor Associado do Departamento de Filosofia a Universidade de Lisboa desde 2003. Membro da Direcção do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, coordena a área de Estética e Filosofia da Religião. É autor de vários estudos no domínio da antropologia, da filosofia da arte e da religião. Da sua bibliografia, destacam-se as seguintes obras: A Religião e o Sentido da Vida: Paradigmas Culturais (Lisboa: CFUL, 2011); O Budismo e a Natureza da Mente [em colaboração com Matthieu Ricard e Paulo Borges] (Lisboa: Mundos Paralelos, 2005); Mitos e Narrativas. Ensaios sobre a Experiência do Mal (Lisboa: CFUL, 2003); Ricoeur e Expressão Simbólica do Sentido (Lisboa: Gulbenkian, 1999). Tem no prelo a publicação do livro, Sentimento de Si e Identidade Pessoal (Lisboa: CFUL, 2011/12).
Endereço electrónico: carlosjoaocorreia@gmail.com

OS ANIMAIS E A ANTROPOLOGIA
Será nosso objectivo sistematizar as principais contribuições da antropologia física para o esclarecimento filosófico da relação entre os animais e os seres humanos. Entende-se por antropologia física o estudo da humanidade como uma espécie biológica, disciplina que constitui uma das linhas de investigação mais dinâmicas da antropologia contemporânea.
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PEDRO GALVÃO • Professor no Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Membro do grupo LanCog do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. Autor de Do Ponto de Vista do Universo (CFUL, 2008) e organizador de A Ética do Aborto (Dinalivro, 2005), Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de Immanuel Kant (Edições 70, 2009), e Os Animais Têm Direitos? (Dinalivro, 2010). Autor de diversos artigos de ética filósofica em revistas nacionais e internacionais.
Endereço electrónico: p.m.galvao@gmail.com

OFICINA – OS ANIMAIS TÊM DIREITOS?
Tomando como referência alguns dos ensaios reunidos no livro, Os Animais Têm Direitos? (Dinalivro, 2010), proceder-se-á a uma discussão comparativa das implicações das seguintes perspectivas a respeito do estatuto moral dos animais não-humanos: utilitarismo de actos, deontologia reganiana, contratualismo e ética da terra.