sábado, 3 de março de 2012

Excerto de um texto sobre mística e saudade em Dalila Pereira da Costa, em homenagem a uma Amiga que deixou esta percepção do mundo




"Sem podermos aprofundar aqui a teoria daliliana da saudade e estender o nosso estudo às restantes obras onde a continua, parece-nos óbvio que a sua matriz e contornos fundamentais residem e radicam nesse “instante de ouro” de plenitude não pensada nem desejada, mas vivida, génese de um saber de experiência feito [1], pois, interrogamo-nos, de que mais e em última instância se poderá ter saudade? Sem esse conhecimento experimental, da possibilidade de abolição da percepção habitual da realidade, socialmente legitimada como normal, mas também sem o não menos experimental conhecimento da sua fugacidade no retorno à percepção dualista e opositiva de si, do mundo e do divino, não se compreende tudo o que brota da tentativa, sempre tortuosa e difícil, de o expressar, ao longo de quase quatro décadas. Sem esse duplo conhecimento experimental também não se compreende a teoria da saudade como a união na cisão que tende à reunião de todas as polaridades do real (ou da sua percepção) e à superação de si mesma na identidade reencontrada. Enquanto tal, ela parece ser o nome que assume, na tradição galaico-portuguesa, a única alternativa à perene errância da constitutiva fuga para a frente do homem e do mundo históricos (cf. Peter Sloterdijk, Welfremdheit), na sempre frustrada e sempre reiterada recusa da plenitude que sempre traz consigo porque a cada instante plenamente se lhe oferece. Desta mais nobre saudade, como alma do mundo e potência psicopompa e iniciática, tem sido e continuará Dalila a ser a nossa mais nobre guardiã".

- excerto de “[…] eu era o Outro”. Experiência Mística e Saudade em Dalila Pereira da Costa", publicado em Actas do III Colóquio Luso-Galaico sobre a Saudade - Em Homenagem a Dalila Pereira da Costa. Zéfiro, 2009.

[1] O ouro é tradicional e reconhecidamente um potente símbolo do incondicionado. Falando-nos do “ser de ouro”, também no contexto de uma experiência vivida e narrada, William Desmond fala-nos do kairos como esse “momento culminante do ser” e diz-nos: “Muitas vezes somos tomados por momentos de inteireza, em que uma inocência e uma alegria elementares são despertadas. Nessa perspectiva, a Idade de Ouro não precisa ser uma evasão do tempo, mas a atenção-plena mítica, memorial de uma presença qualitativa: temos de contemplar o mundo, agora, existente, partilhando a perfeição, manifestando algo inexprimivelmente bom” – William Desmond, A Filosofia e seus Outros – Modos do ser e do pensar, São Paulo, Edições Loyola, 2000, p.458; cf. também pp.450-463.

1 comentário:

Kunzang Dorje disse...

Solidão -
depois do fogo de artifício
uma estrela cadente

- Masaoka Shiki