quinta-feira, 31 de dezembro de 2009
para começar bem o ano
a filosofia e as suas questôes ii.
eu vou lá estar, reparem quem também estará...
8/janeiro
14.30 Dirk Hennrich, elementos para uma paisagem europeia.
excelente ano para os amigos da serpente e que o seu 'veneno' nos transmute.
quarta-feira, 30 de dezembro de 2009
terça-feira, 29 de dezembro de 2009
"Somos", por Isabel Rosete
De onde já não se gera a ordem,
Pedaços soltos
Das organizações des-ordenadas.
Somos Micro-fibras,
De um tecido enrugado,
Sem possibilidade de alisamento.
Somos fios da teia intra-mundana
Rarefeita,
Desfeita,
Pelas nossas próprias mãos.
Somos o Tudo e o Nada
O Tempo e o Espaço,
Numa marcha simultânea.
Somos as marés,
Os rios,
Os riachos,
Que nem sempre desaguam
Nos oceanos.
Somos os ventos,
As tempestades,
A chuva ácida,
A rarefacção da atmosfera.
Somos os vulcões e a sua lava
Quente,
Ardente,
Incandescente,
Derramada por montes e vales.
Somos perfeito dinamite,
Sempre pronto a explodir,
Pólvora concentrada
De energias reprimidas.
Os sismos,
Também somos,
E a Terra fazemos estremecer,
Tremer,
Quebrar,
Ruir,
Oscilar.
Somos a poluição
E o dióxido de carbono,
As marés negras
E o lixo cósmico.
Somos os vírus,
As bactérias,
Os fungos,
Que tudo contaminam.
Somos pó,
Putrefacção,
Revestidos de formas
E fórmulas,
Incalculáveis.
Somos a amálgama do Mundo,
Dos céus
E dos mares.
Somos a mescla
De todas as raças,
De todas as cores,
De todos os credos.
Somos os deuses,
Impuros,
Que do Olimpo despejados.
Somos os Astros,
Os Sois,
Que nem sempre brilham,
Somos as faces de todas as Luas,
As giratórias de todos os planetas,
Os anéis de Saturno.
Somos a hipocrisia,
O oportunismo,
A demagogia,
Somos os defensores das causas,
Só em aparência,
Relevantes.
Somos a guerra,
A paz,
A des-ordem
E a ordem.
Somos os guerreiros solitários do Poema,
Das batalhas perdidas
Contra nós,
Contra todos os outros.
Somos o possível
E o impossível,
O sonho,
O real
E o imaginário.
Somos o virtual,
Que se presentifica,
Em cada acto comunicante,
À distância próxima
De todas as comunicações,
Intercontinentais.
Somos todas as lágrimas
Derramadas
E por derramar.
Somos todas as aventuras,
Todos os gestos,
Todos os actos,
Todos os pensamentos.
Somos todas as vontades,
Todos os quereres,
Todos os estares.
Somos?
Somos!
Tão-só,
O que realmente somos.
Isabel Rosete
Somos ( ) o que comemos
A cultura portuguesa, por exemplo, tem raízes que se perdem nos tempos e tudo vai assentando, largamente, num determinado tipo de alimentação. E tal como a cultura portuguesa, toda a civilização ocidental e, por aí fora, embora não se possa generalizar a toda a humanidade.
Transformar um hábito alimentar com séculos e séculos, por exemplo, num regime vegetariano, produz tantas transformações a nível pessoal (físico e mental), familiar, social, cultural, que não vemos como aconselhar uma ruptura súbita com as profundas raízes que carregamos em comum com os nossos conterrâneos.
Nascemos num determinado lugar e a ele estamos ligados por natureza e cultura. E, desta forma, se caracteriza largamente a existência humana no planeta azul.
Mas dizer que as coisas têm sido sempre assim, não significa dizer que, assim, terão de ser eternamente. Existem variadas razões (económicas, ecológicas, éticas, religiosas), como sabemos, que justificam a adopção de um regime alimentar que possa sair fora do tradicional. Desde logo, por questões de saúde como ouvimos alguns especialistas incansavelmente repetirem. Até porque o tradicional é um saco muito grande, onde cabe muita coisa distinta.
Neste sentido, para começar, vemos como desejável um regime alimentar que, pelo menos, tenda a uma redução significativa do consumo de carne animal. Podemos utilizar várias estratégias, como sejam, deixar de comer carne animal ao pequeno almoço e ao lanche, ou consumi-la só uma vez por dia, ou deixar de o fazer um dia por semana...
Quem sabe gostemos da experiência e, assim, tendamos a uma mudança mais radical do que por tradição e inércia temos assumido.
segunda-feira, 28 de dezembro de 2009
O que é o "diá-logo" entre culturas?
"Entre, por um lado, o consenso mole do diálogo sempre suspeito de ser um alibi ou de esconder mais insidiosamente as relações de forças sob a sua aparente abertura e, por outro, o clash anunciado - constatado - assim como o apelo à defesa identitária do "Ocidente", que outra via que não tombe para nenhum lado: que não seja nem utópica, nem defensiva, nem de compromisso? Ou "diá-logo" não é algo antes a retomar e repensar, mas decidindo desta vez conferir a sua plena exigência a um e a outro dos seus componentes [...]? Fazendo compreender, por um lado, no diá do diá-logo, a distância do afastamento, entre culturas necessariamente plurais, mantendo em tensão o que está separado: um diálogo, ensinaram-nos os Gregos, é mesmo tanto mais rigoroso e fecundo quanto mais atiça teses antagonistas; e, no logos, por outro lado, o facto de que todas as culturas mantêm entre elas uma comunicabilidade de princípio e que tudo, do cultural, é inteligível, sem perda e sem resíduo. [...] [após afirmar que o diálogo é "operatório"] Mas operatório em quê? Não que quiséssemos a todo o preço conciliarmo-nos com o outro, ou que encontrássemos já nele [no diálogo] prescritas regras formais, mas simplesmente porque, para dialogar, cada um deve imperiosamente abrir a sua posição, colocá-la em tensão e instaurá-la num frente a frente. Não pois porque cada um seria movido por uma finalidade de entendimento, ou porque a lógica do diálogo revelaria um universal pré-estabelecido, mas porque todo o diálogo é uma estrutura eficiente - operativa - que obriga de facto a reelaborar as suas próprias concepções, para entrar em comunicação, e portanto também a reflectir-se"
- François Jullien, De l'universel, de l'uniforme, du commun et du dialogue entre les cultures, Paris, Fayard, 2008, pp.247-248.
domingo, 27 de dezembro de 2009
"[...] os portugueses típicos nunca são portugueses"; "Nenhum povo se despersonaliza de modo tão magnificente"
- Fernando Pessoa, in Sensacionismo e outros ismos, edição de Jerónimo Pizarro, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2009, pp.218-219.
Palavras a ponderar, depurativas do provincianismo identitário, ainda que não plenamente livres dele...
umoutroportugal.blogspot.com
Esfera Armilar - Da identidade histórico-cultural como limite a superar
A história e a cultura constituem poderosos sistemas de condicionamentos e automatismos mentais, emocionais e práxicos que convidam, por via gregária e irreflectida, a um regime de consciência parcial, incapaz de compreender e aceitar a realidade humana, cósmica e divina na sua totalidade plural e complexa. A fixação de uma dada identidade histórico-cultural é, por isso mesmo, um notável contributo para o estreitamento da consciência e para o sofrimento e conflitos daí resultantes. Por isso mesmo, a cultura mais poderosa é aquela que a si mesma se não vir como um fim em si e antes como um meio para se libertar de si mesma. É esse o projecto da "cultura portuguesa", assumida por Vieira, Pessoa e Agostinho da Silva como trampolim para a universalidade, mediação para além de todas as mediações, sejam elas lusitanas ou lusófonas. O melhor de Portugal e da lusofonia é o que neles se esquece de se rever e assinar no espelho do mundo. O pior de Portugal e da lusofonia é o que no mesmo acto deixa a mácula da assinatura. Medíocre é o que se afirma. Grande o que se esquece. Supremo o que nunca se nomeou.
umoutroportugal.blogspot.com
sábado, 26 de dezembro de 2009
quinta-feira, 24 de dezembro de 2009
O regresso em nós de D. Sebastião ou o fim do sebastianismo
D. Sebastião
Sperai! Caí no areal e na hora adversa
Que Deus concede aos seus
Para o intervalo em que esteja a alma imersa
Em sonhos que são Deus.
Que importa o areal, a morte e a desventura
Se com Deus me guardei?
É O que eu me sonhei que eterno dura,
É Esse que regressarei.
O segundo poema que tem como título “D. Sebastião” é o primeiro dos cinco “Símbolos” que abrem a terceira parte, “O Encoberto”, da Mensagem. Nele o poeta volta a dar voz a um rei que – falando sempre como esse ser “que há” e não “que houve”, ou seja, como imortal dotado da “grandeza” de ser livre da “Sorte” - exorta a que esperem pelo seu regresso aqueles que ainda permanecem escravos da comum condição mortal e humana, reproduzindo a sua submissão ao Destino enquanto cadáveres adiados que procriam. D. Sebastião continua a ser aqui, numa coerência rigorosa, a figura de um rei-Outro, de uma consciência desperta que exorta os que esperam o seu regresso ao mundo dos homens a que não esperem que regresse o mesmo que partiu. Efectivamente, tendo-se convertido No que se sonhou, tendo-se tornado Naquele que se desejou, um ser emancipado do Destino, e sendo isso “eterno”, não pode senão ser “Esse” que regressará. Não faz sentido assim que o esperem com uma expectativa adequada ao que foi e já não é nem poderá nunca mais ser, não faz sentido que o esperem com a predominante esperança sebastianista que sobrevive à possibilidade do regresso físico do rei desaparecido em Alcácer-Quibir e se converte num paradigma da mentalidade portuguesa em épocas de crise e profunda insatisfação, fruto da laicização da expectativa messiânica: a expectativa de que surja um mero líder político, redentor da pátria oprimida e decadente, restaurador da ordem ameaçada e condutor da nação em períodos de crise da identidade e sentido da sua vida histórica. O D. Sebastião de Pessoa exorta a que o esperem, mas não como o Mesmo, antes como Outro, não como mortal, antes como imortal.
D. Sebastião exorta ao fim do sebastianismo comum, recordando que o seu fracasso humano, pessoal e histórico não foi senão o reverso do divino dom de uma oportunidade superior a todo o triunfo bélico e a todo o poder e glória temporais. Caindo “no areal e na hora adversa”, segundo a percepção mundana e exterior, D. Sebastião na verdade acedeu ao “intervalo” da imersão da “alma” “em sonhos que são Deus”, concedido pelo divino aos “seus”, ou seja, aos que o buscam acima de tudo, aos seus “amigos”.
O que são este “intervalo”, esta imersão e estes “sonhos que são Deus”? “Intervalo”, do latim intervallum, é o espaço ou distância entre dois pontos ou lugares, que etimologicamente são duas paliçadas ou trincheiras (vallum), também com o sentido de baluartes, defesas, protecções. O “intervalo”, ainda segundo um dos sentidos da palavra latina, sugere-se como o repouso ou descanso da “alma” em algo que não a pré-ocupa com a construção de limites e muros autoprotectores, o repouso ou descanso da “alma” relativamente a toda a pré-ocupação, mental, emocional ou física, com a separação entre uma coisa e outra, a divisão entre si e o outro, a defesa e o ataque, a dualidade, o medo e a (in)segurança. Livre de tudo isso, é no intervalo disso tudo, na “pausa” (outro sentido do intervallum latino) de toda essa agitação, que se pode abrir e absorver plenamente “em sonhos que são Deus”. Ou seja, no contexto da Mensagem, viver a “loucura” daquela ânsia de “grandeza” trans-mundana e transcensão de toda a “Sorte”/condição mortal que se converte nisso e é já isso mesmo a que ardentemente aspira. O desejo veemente dessa “grandeza” insuperável é já a vibrante e imanente epifania do divino. Como escreve Pessoa no poema “D. Fernando. Infante de Portugal”: “E esta febre de Além, que me consome, / E este querer grandeza são seu nome / Dentro em mim a vibrar”. É isso que torna o sujeito “cheio de Deus” e é isso, e apenas isso, que o pode ressuscitar, já em vida, de ser a “besta sadia” e “cadáver adiado que procria”, vergado pelas indomadas “forças cegas” ao triste contentamento com a vida doméstica e vegetativa. É isso, e apenas isso, que o pode ressuscitar do tempo dos quatro impérios e operar a sua superação no Quinto, a “verdade” pela qual “morreu D. Sebastião” (cf. o poema “O Quinto Império”), que evidentemente nada tem a ver com qualquer domínio mundano, temporal e político. Do mesmo modo que em D. Sebastião o ser “que há” transcende o “que houve”, assim também o Quinto Império transcende o plano onde decorrem e se dissipam os quatro, não podendo propriamente dizer-se que venha temporalmente após eles, enquanto símbolo de uma possibilidade que transcende o tempo e o espaço e que é a própria possibilidade do homem ou da consciência se imortalizar.
A alma de D. Sebastião está pois “imersa / Em sonhos que são Deus”. O que é, todavia, “Deus”? A palavra procede da raiz indo-europeia dei, que significa “tudo o que brilha”, donde vem o sânscrito deva (deus), o iraniano daeva (demónio) e o português dia [1]. Deus indica não um ser ou um ente, algo que exista e possa ser objecto, algo que possa ser visto por alguém, mas antes a própria luz invisível que torna todas as coisas visíveis, em termos inteligíveis ou sensíveis, o ilimitado espaço luminoso que é matriz de todas as possibilidades de manifestação e consciência, o nada inerente ao aparecimento de tudo [2](* cf . também o "nada que é de tudo" em Agostinho da Silva). É aí que verdadeiramente cai, imerge e reside o D. Sebastião transfigurado, que realiza a suma potencialidade de todo o homem. É nisso que se guarda, baluarte sem defesas e assim inexpugnável pela derrota no “areal”, “a morte e a desventura”. É Isso, afinal, que se sonhou e tornou, num sonho/desejo/imaginação criadora (ou desveladora) que converte o amante na coisa amada (cf. Luís de Camões), que realiza isso que imagina, em tudo distinto daquele sonho ilusório e irreal que preside à história do mundo e dos homens e à sucessão dos quatro impérios mundanos. “O” que se sonhou, esse “Deus”/matriz intemporal de toda a manifestação, transcende a consciência temporal e a sua ilusão intrínseca, sendo da ordem do eterno. É só “Esse” que D. Sebastião pode regressar, não o rei humano morto ou desaparecido no areal, ou um seu substituto, mitificado pelo sebastianismo e esperado pelos sebastianistas de todos os tempos, mas o sujeito transfigurado em Deus, dei-ficado, ou seja, iluminado. Desperto e livre, em nada se distingue desse espaço primordial, anterior a todas as coisas e de todas envolvente como a matriz que as possibilita, mas que, na experiência mundana e condicionada, apenas se abre nos inter-valos entre uma coisa e outra, entes, pensamentos, palavras e acções.
Cabe a este respeito recordar um fundamental poema inglês de Pessoa, “The King of Gaps”, “O Rei das fendas/brechas,/aberturas/hiatos/lacunas/vazios/intervalos/abismos”, que muito ajuda a compreender o “intervalo” em que está imerso o D. Sebastião pessoano. Este “rei desconhecido”, senhor de um “estranho Reino dos Vazios” com o qual coincide, figura isso que há “entre” uma “coisa” e outra “coisa”, o intervalar e não entificado espaço vazio que se desvela entre as entidades, o fundo informe onde as formas se recortam e definem, bem designado como “entre-seres”. Se num sentido parece assumir a função de um Mesmo indiferenciado, perante o qual tudo o que nele se delimita surge como as múltiplas formas da sua alteridade, ou se noutro sentido podemos pensá-lo como o Outro enquanto transcende e envolve todas as formas do mesmo, num outro sentido podemos reconhecer-lhe uma transcensão mais radical, tanto do mesmo como do outro, tanto do idêntico como do diferente, na medida em que estes se constituam no âmbito de uma relação mútua entre formas e entidades que só se torna possível por haver esse espaço não-entitativo do “estranho Reino dos Vazios” que permite a constituição e o reconhecimento da relação e do relacionado.
Seja como for, é Nisso que imerge D. Sebastião e é Isso/Esse que anuncia regressar. Este segundo poema dedicado a D. Sebastião confirma a transfiguração do herói épico e trágico, malogrado protagonista histórico, num intemporal avatar espiritual, qual Bodhisattva ou Redentor gnóstico que, desperto e iluminado, se dirige aos homens, pela voz de Pessoa, seu poeta-profeta, ensinando-lhes já a necessidade de transformação da sua esperança quanto ao seu futuro regresso para junto deles, que tudo indica nada ter a ver com uma redenção política e temporal, mas antes com o exercício de um magistério espiritual que não visa senão conduzi-los ao mesmo estado livre e desperto, à mesma libertação da “Sorte”, à mesma ressurreição, dei-ficação ou iluminação.
Esta é uma possibilidade de leitura, que não contradiz outra, mais funda e acalentada pelo próprio Pessoa, em que o regresso de D. Sebastião, como é aliás mais adequado a uma potência espiritual, não é tanto exterior quanto interior, podendo dar-se a qualquer momento em todo o homem que evoque em si o mesmo que D. Sebastião evocou. D. Sebastião, ou seja, uma potência espiritual desperta e livre do espaço e do tempo, regressa efectivamente em todo aquele que deseje a mesma libertação da “Sorte” e se afunde no mesmo “intervalo” divino, na mesma luminosa matriz primordial de todas as coisas [3]. Que isto seja susceptível de uma expressão colectiva, adverte-o também Pessoa, ao dizer do “mito sebastianista, com raízes profundas no passado e na alma portuguesa”: “Comecemos por nos embebedar desse sonho, por o integrar em nós, por o incarnar. Feito isso, cada um de nós independentemente e a sós consigo, o sonho se derramará sem esforço em tudo que dissermos ou escrevermos, e a atmosfera estará criada, em que todos os outros, como nós, o respirem. Então se dará na alma da Nação o fenómeno imprevisível de onde nascerão as Novas Descobertas, a Criação do Mundo Novo, o Quinto Império. Terá regressado El-Rei D. Sebastião” [4].
Regressará, em nós, D. Sebastião, mas, fundamental não o esquecer, Outro, jamais o mesmo. O que implica que, em nós, o mesmo morra e deixe aparecer o Outro.
Assim se desencobre o Encoberto. O que reside entre cada coisa, pensamento, palavra e acção
[1] Cf. Odon Vallet, Petit lexique des mots essentiels, Paris, Albin Michel, 2007, pp.63-64.
[2] Cf. Jean-Yves Leloup, “Notre Père”, Paris, Albin Michel, 2007, pp.173-174.
[3] É isso que salientamos neste texto decisivo: “A metempsicose. A alma é imortal e, se desaparece, torna a aparecer onde é evocada através da sua forma. Assim, morto D. Sebastião, o corpo, se conseguirmos evocar qualquer cousa em nós que se assemelha à forma do esforço de D. Sebastião, ipso facto o teremos evocado e a alma dela entrará para a forma que evocámos. Por isso quando houverdes criado uma cousa cuja forma seja idêntica à do pensamento de D. Sebastião, D. Sebastião terá regressado, mas não só regressado modo dizendo, mas na sua realidade e presença concreta, posto que não fisicamente pessoal. Um acontecimento é um homem, ou um espírito sob forma impessoal” – Fernando Pessoa, Sobre Portugal. Introdução ao problema nacional, recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão, introdução e organização de Joel Serrão, Lisboa, Ática, 1979, p.196.
[4] Cf. Ibid., p.255.
Feliz Natal!
se não nasce hoje na minha alma?"
- Angelus Silesius, Peregrino Querubínico
quarta-feira, 23 de dezembro de 2009
Deus, em Antero de Quental (1842-1890)
Sócrates - Dentro do homem está um Deus desconhecido
Cristo - Dentro do homem está o Reino dos Céus
Lutero - Dentro do homem está Deus. O Homem é um Deus que se ignora.
Robespierre - Revelação de Deus através de valores humanistas.
Hegel - Revelação de Deus através da ideia.
Moisés, Maomé, Cristo - Profetas que revelam Deus, mas todos revelam apenas um aspecto parcelar do Absoluto
O homem, ele próprio, está mais perto do divino do que as formas através das quais O representa. Em vez de procurar Deus nos céus, o homem deve procurá-lo no seu interior.
A Existência humana é privilegiada porque é nela que mais se manifesta a essência divina.
A Saudade é uma aspiração a uma relação mais plena com o deus desconhecido que cada um trás em si.
No fundo da consciência está aquilo que procuramos fora. Dormitando, em movimento mudo, mas murmurando sempre. Jeová, Brama, Sabaoth, Alá, Cristo. O homem não deseja mais do que aquilo que já há em si.
A santificação é a plena realização do indivíduo. É um Deus que se revela permanentemente, como se fosse um progresso constante, sem que nunca mais esse progresso acabe. O homem como o descobridor dos mundos encobertos do espírito.
As revoluções, os cultos, os mitos, tudo são apenas manifestações do princípio interior essencial. Civilizações e Impérios se fazem para sermos Homem um pouco mais.
in, Antero de Quental, Filosofia, Univ. dos Açores: Editorial Comunicação.
cf. Paulo Borges, Filosofia em Portugal I, apontamentos.
Rigor
transgride-se à risca.
terça-feira, 22 de dezembro de 2009
Intervenção
Mitologia
domingo, 20 de dezembro de 2009
sábado, 19 de dezembro de 2009
Orides Fontela: Elegia
Mas para que serve o pássaro?
Nós o contemplamos inerte.
Nós o tocamos no mágico fulgor das penas.
De que serve o pássaro se
desnaturado o possuímos?
O que era vôo e eis
que é concreção letal e cor
paralisada, íris silente, nítido,
o que era infinito e eis
que é peso e forma, verbo fixado, lúdico
o que era pássaro e é
o objeto: jogo
De uma inocência que
o contempla e revive
- criança que tateia
no pássaro um esquema
de distâncias -
mas para que serve o pássaro?
O pássaro não serve; arrítmicas
brandas asas repousam.
Orides Fontela
A loucura de D. Sebastião
D. Sebastião
Rei de Portugal
Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura, que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
O primeiro dos dois poemas que têm como título “D. Sebastião” constitui a quinta quina do “Brasão” português, a primeira parte da Mensagem, que interpreta o simbolismo heráldico das armas nacionais e convida a relacionar esta quinta quina/D.Sebastião com o Quinto Império. O poema dá voz ao rei assumindo a loucura de que foi acusado, mas dando-lhe outra razão que não a da patologia ou insensatez. A sua loucura consistiu em querer “grandeza / Qual a Sorte a não dá”. “Sorte”, sobretudo com maiúscula, parece ter aqui o sentido de Destino, Fado ou Fortuna, e não tanto de acaso. A “Sorte” é a necessidade que rege o universo e à qual nem os deuses escapam (cf. Moira, Ananke, Heimarmene), subordinando todos os entes à impermanência universal e às vicissitudes dos lugares, ora superiores, ora inferiores, que ocupam no mundo, e às experiências, ora felizes, ora infelizes, que nele conhecem.
Esta “Sorte” evoca o tema arcaico, antigo e medieval da Roda da Fortuna ou do samsara, presente no Oriente e no Ocidente. Pessoa refere-se várias vezes, na sua poesia, a este tema, falando por exemplo da “roda universal da Sorte” e relacionando-a, significativamente, com a “ficção”, “sonho” ou ilusão universal que faz ao sujeito supor-se na existência o mortal que afinal não é. A loucura de D. Sebastião consistiu assim, não propriamente na temeridade da aventura africana ou no ideal supostamente anacrónico que a moveu, mas antes no haver desejado, num e para além de um acto heróico dificilmente justificável pela razão humana, uma “grandeza” que não pode ser dada (e retirada) pela Sorte. Que “grandeza” pode ser essa senão a transcensão e libertação da própria “Sorte”, a transcensão e libertação da Roda da Fortuna ou do samsara, a suprema aspiração humana? Ou seja, se recordarmos a interpretação do poema “Quinto Império”, a transcensão e libertação do próprio sonho/ilusão que preside aos “quatro / tempos” do movimento do mundo, imperando sobre a consciência e a vida mediante as “forças cegas” que dominam a “alma” enquanto uma “visão” desperta e livre as não domar. Neste sentido, a “verdade” pela qual “morreu D. Sebastião” é o próprio fim da ilusão que preside ao destino do mundo, o fim do regime de consciência adormecida, onírica e iludida figurado, em termos históricos, pela sucessão dos quatro impérios: Grécia, Roma, Cristandade, Europa. A “verdade” pela qual “morreu D. Sebastião” é o próprio Quinto Império, como figura do Outro desse regime de consciência que há que transcender: não tanto uma nova soberania mundial, assente na parcialidade de uma dada cultura, ordem jurídica, concepção moral e religiosa ou cosmopolitismo comercial, mas antes o Despertar da falsa pretensão à universalidade de todas essas ilusões, o Despertar dessas e de todas as ilusões, o Despertar da ilusão universal que preside à consciência, ao tempo e à história dos homens.
O D. Sebastião histórico é claramente transfigurado num protagonista da loucura, da boa hybris ou desmesura, que deseja a suma e insuperável “grandeza” do Despertar enquanto libertação da falsa realidade de todas as supostas condições da existência no mundo. É a “certeza” dessa possibilidade que natural e necessariamente não cabe em si, pois haver um “si” é ser ou supor-se algo ou alguém no mundo, é estar situado e logo limitado, submetido e determinado na cadeia e teia de causalidade da ordem universal. São essa loucura e essa “certeza” que afinal o fazem sair de si e o ilimitam, levando-o a trespassar e transcender a própria condição humana e mortal, assegurando-lhe a transfiguração que lhe confere um outro modo de ser, actual e imortal, que nada tem a ver com o “ser que houve”, tornado um cadáver jacente no “areal” de Alcácer-Quibir. O D. Sebastião a que Pessoa dá voz já não é a pessoa do rei histórico, desaparecido em Alcácer-Quibir em termos reais e simbólicos, mas antes a consciência desperta e imortal emergente do soçobro daquele ser humano e mortal.
É ela que agora nos fala a partir de um estado transcendente e liberto, exortando-nos a assumirmos a sua “loucura”, “com o que nela ia”, o desejo de transcender a “Sorte”, como o seu mais precioso legado. Somos nós esses “outros” que podemos assumir o exemplo libertador do rei transfigurado assumindo a sua “loucura” transcendente, iluminativa, libertadora. Pois sem isso, recorda, que somos nós, “que é o homem / Mais que a besta sadia, / Cadáver adiado que procria?”. Ou seja, sem a loucura que visa transcender a condição mortal de todo o ente, não só não cumprimos o pleno potencial da nossa própria humanidade, como nem sequer a exercemos, mantendo-nos num patamar de infra-humanidade e numa vida falsa que mais não é senão morte que se adia enquanto, pior ainda, se reproduz noutros cadáveres adiados fabricados pela mentalidade familiar, escolar e socialmente dominante. Como dizem Teixeira de Pascoaes e Agostinho da Silva: “Só há homem quando se faz o impossível”. Ou seja, aqui, a transcensão da própria condição humana.
Ser “besta sadia, / Cadáver adiado que procria”, é afinal, se regressarmos ao poema “O Quinto Império”, permanecer na “apagada e vil tristeza” (Luís de Camões) de uma vida doméstica autosatisfeita, sem “sonho” e voo para mais além, ou na felicidade vegetativa de uma vida já sepulta. Como antídoto disso, a “loucura” de D. Sebastião é o descontentamento que leva o homem a cumprir-se domando as “forças cegas” “pela visão que a alma tem”. Deixar de ser “besta sadia, / Cadáver adiado que procria”, é despertar e libertar-se desse regime de ilusão e autogratificação medíocre que preside à “noite” do mundo e ao seu tempo dos quatro impérios que evanescem julgando-se eternos: “Grécia, Roma, Cristandade, / Europa”. Deixar de ser “besta sadia, / Cadáver adiado que procria”, é “viver a verdade / Que morreu D. Sebastião”, ou seja, cumprir a suma possibilidade da condição humana: a sua própria transcensão, a imortalidade. É esse o sentido mais fundo e amplo do Quinto Império, a soberania do Despertar libertador.
quarta-feira, 16 de dezembro de 2009
Mitologia
Eudoro de Souza, Mitologia, p.34
Intervenção
terça-feira, 15 de dezembro de 2009
E subitamente...
Não sei qual das mulheres sou.
Estou obcecada pelas pinturas esbatidas nas paredes do quadro.
Este quadro não está numa parede, as paredes estão nele e nelas outros quadros que uma mulher que está fora de todos estes mundos
(eu)
olha (olho)
com olhar
comum.
Conheço os lenços
(as mulheres da minha infância)
conheço as cores
(os mesmos tons dos sonhos)
conheço as poses
(as fotos antigas).
Contudo
não são
daqui.
Serei eu de
onde?
De que hoje?
De que antes?
Fascina-me
de uma
o olhar
desta
a pose
de outra
o colar.
De todas
o apenas
ali
estar.
segunda-feira, 14 de dezembro de 2009
Hopenhagen: foi você que pediu um desenvolvimento sustentável?
As Nações Unidas tentaram modificar a atitude dos Estados para com o meio ambiente, com uma série de conferências que visava o estabelecimento de acordos internacionais que permitissem articular uma estratégia global para a preservação do meio ambiente.
Por muito que se fale hoje nas alterações climáticas decorrentes da industrialização, já na conferência de Estocolmo, em 1972, foram apresentadas evidências científicas do impacto da acção humana no clima, para além de todo um manancial de dados sobre a contaminação dos solos e dos habitats marinhos à escala global, bem como sobre o desmatação, em processo acelerado, cujos efeitos se vieram a tornar cada vez mais evidentes.
Nessa altura o acordo falhou porque os países ditos sub-desenvolvidos e que hoje em dia são designados, eufemisticamente, países em desenvolvimento, quiseram fazer valer o seu direito ao desenvolvimento pleno, em pé de igualdade com os países ricos que tiveram a oportunidade histórica de se desenvolverem sem entraves a ponto de abocanharem grande parte dos recursos do planeta.
Vinte anos mais tarde, na conferência do Rio, embora se tenham lançado as bases do acordo que seria alcançado cinco anos mais tarde, em Quioto, o mesmo argumento fez-se ouvir com mais insistência, com o Brasil a liderar os esforços dos países que partilham a Amazónia para impedir uma internacionalização jurisdicional da Amazónia e das outras manchas de floresta tropical. O que se pretendia era que a Amazónia fosse declarada uma reserva ecológica com o mesmo estatuto da Antárctida.
Hoje a área florestal do maior pulmão do planeta está muito reduzida se comparada com a sua extensão em 1992 e a desflorestação continua a um ritmo cada vez mais acelerado, com a agravante de ser levada a cabo através de mega-queimadas, com o elevadíssimo custo em emissão de gazes provocadores do efeito de estufa. A contribuir para isso, de forma paradoxal, está a busca de alternativas aos combustíveis fósseis virada para o biodiesel, afinal o último recurso para salvar o paradigma do motor de explosão e a actual configuração da indústria automóvel.
Esta pressão provocada pela produção de combustíveis ‘verdes’ leva à necessidade de aumentar a superfície arável e, também, de aumentar a percentagem de terras aráveis dedicadas à produção de matéria-prima para a nova indústria dos combustíveis. Isto teve uma consequência terrível na vida das populações mais pobres, uma vez que o preço dos alimentos à base de cereais passou a estar indexado às oscilações do preço do petróleo, o que levou a que os mesmos especuladores que, ao que parece, precipitaram a actual crise económica, se tenham refugiado no mercado de futuros, hipotecando a sobrevivência de milhões de seres humanos, uma vez que esta pressão especulativa faz disparar os preços das colheitas e, consequentemente, dos alimentos processados.
Assim, o aumento da superfície arável não contribuiu para diminuir a escassez alimentar, antes é um dos principais factores do seu aumento.
A par disto há a autêntica invasão de África por países como a China e a Índia nos quais a pressão demográfica exige um crescente fornecimento de alimentos, matérias-primas e combustível. Como consequência estão a surgir gigantescos complexos agro-industriais em países praticamente sem uma agricultura local, verdadeiramente sustentável em articulação com a vida cultural das comunidades locais. Esta começa a ser neste momento a principal ameaça à sustentabilidade alimentar dos países mais pobres.
E neste sentido a política diplomática da nova administração americana em relação a África não traz nada de novo, o que se tornou bem visível no périplo que a Secretária de Estado Hillary Clinton fez por alguns dos mais importantes países africanos, no que diz respeito à sustentação da actual ordem económica mundial, planando olimpicamente por cima das questões relacionadas com os direitos humanos e as assimetrias económico-sociais.
Ainda está por contabilizar o peso das chamadas tecnologias verdes no agravamento da situação dos povos à beira da ruptura alimentar. É que a questão não está apenas na diminuição das emissões, ou no uso de alternativas menos poluentes, mas à sustentação do actual sistema económico que está a aumentar exponencialmente a escalada da industrialização, em vez de se diminuir a produção desenfreada de bens que têm uma mais-valia pulsional, mas quase nenhum benefício na sustentação duma vida humana em plenitude, continua a alimentar-se a neuro-esfera planetária com uma supra-estrutura de produtos imediatamente consumíveis (também no horizonte dito cultural), sustentada numa infra-estrutura produtiva completamente desenraizada da vida comunitária, da cultura das comunidades de base e do ritmo, esse sim ecológico, duma vida individual e colectiva em comunhão com a Natureza.
Neste sentido, Copenhaga será uma resolução do problema através da elisão das arestas do problema, num processo de dissuasão do questionamento e da crítica livre e profunda. E o que é sintomático de que há algo de muito importante em jogo, é que se consegue transformar os tradicionais mecanismos de emancipação em formas de dissuasão: o apelo a uma cidadania global, a ideia de que os líderes estão a ser liderados pela opinião pública global, quando isso não é verdade, uma vez que os Estados ganham direito de cidade mesmo se continuam a desrespeitar os direitos humanos, sem diminuírem a carga de sofrimento que hoje impõem aos seus povos e aos povos por si dominados. (Quanto à autêntica cidadania global, veja-se a entrevista, preclara e muito oportuna, concedida por Fernando Nobre ao jornal Expresso na sua última edição).
Esta manobra de dissuasão leva a que os chamados ‘povos’ indígenas sejam apresentados como ex-líbris desta ‘conferência da esperança’, numa decapagem mediática das camadas de ruído subliminar que a consciência da verdadeira situação desses povos poderia acrescentar à mensagem. Há, então, uma absolvição dos crimes contra a humanidade sob a forma dum manto verde que se espraia sobre um planeta em convulsão e onde o espectáculo mediático gastou a força constritora das imagens da fome de das crianças esqueléticas – que, por estranho que pareça, existem hoje num número muito maior do que em qualquer época anterior.
E este é um ponto decisivo: só haverá uma autêntica revolução ambiental no mundo quando os direitos humanos forem reconhecidos como o centro das mudanças a realizar. E forem encarados como uma via para o reconhecimento da senciência como a base de qualquer tipo de respeito, não excluindo, assim, todos os seres vivos.
Neste ponto tocamos no nó górdio do que urge combater: só quando se colocar em cima da mesa o actual conceito de desenvolvimento, encarado como um progresso indefinido, sempre crescente, para se equacionarem outras formas de crescimento, e entre elas considerando o crescimento espiritual como o mais precioso e benéfico, é que os actuais problemas serão atacados de forma séria.
O mito do progresso que alimentou o imaginário iluminista é o pior veneno que a civilização ocidental tomou e deu a tomar ao resto do mundo. O progresso, sem autêntico regresso é uma ilusão desumanizadora e castradora em termos espirituais. Temos que ser capazes de compreender até que ponto, ou a partir de que ponto, produzir mais é produzir demais.
Qualquer outra via, seja qual for a sua dimensão, será comparável a querer retirar o carbone das garrafas de pirolito.
domingo, 13 de dezembro de 2009
O Quinto Império
Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!
Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz –
Ter por vida a sepultura.
Eras por eras se somem
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!
E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.
Grécia, Roma, Cristandade,
Europa – os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?
O poema “Quinto Império” permite aprofundar a interpretação do poema anterior. Começando pelas duas últimas estrofes, elas anunciam claramente um desenlace do sentido da passagem do tempo terreno e histórico como uma transição da “noite” para o “dia”, da treva para a luz, do negativo para o positivo (“atro” significa negro, tenebroso, lúgubre, aziago), ou melhor, como um pleno desentranhamento do “dia claro” que na funesta e “erma noite” já se enraíza e brota. Este processo é também uma passagem dos “quatro / tempos” de um estado onírico para um despertar, esse mesmo “dia claro” que acontecerá no “teatro” da “terra”. Os quatro tempos ou quatro sonhos passageiros e fugazes do “ser que sonhou” (um Deus sonhador ou o próprio homem?) são claramente os quatro impérios, os quatro momentos-figuras histórico-civilizacionais, que se destinam a ser superados pelo Quinto Império, na versão pessoana da interpretação pelo profeta Daniel do sonho de Nabucodonosor (Daniel, 2, 31-45) que se converteu num recorrente mito teológico-histórico-político ocidental, entre nós exaustivamente interpretado pelo Padre António Vieira. Esses quatro impérios, que configuram para Pessoa a génese histórico-cultural do último deles, a Europa, são pois estados oníricos, conotados com um regime obscuro de consciência, em que o “dia claro” não emergiu ainda plenamente da “erma noite” em que se enraíza e secretamente desponta. São por natureza fugazes e inconsistentes, tendo o destino de tudo o que é temporal: a evanescência e a dissolução, desaparecer sem deixar traços.
O que fica afinal, após os quatro tempos da noite e do sonho, senão o “dia claro” que já neles secretamente se desenvolvia? E o que é esse “dia claro” senão o Quinto Império, que desde Daniel é visionado e profetizado como universal e perene?. Mas o que é o Quinto Império para Fernando Pessoa? Veremos que tem vários sentidos, claramente apontados nos vários textos em prosa que lhe dedicou. Neste poema, contudo, sem contradizer esses outros sentidos e constituindo porventura a chave maior para a sua compreensão, o Quinto Império é sugerido como a “verdade / Que morreu D. Sebastião”. Importa pois saber o que seja esta “verdade”, que, apesar de não ser definida, não deixa de ser por sua vez sugerida como o tema das três primeiras estrofes do poema. Que existam as condições para se compreender do que se trata é aliás o que fica pressuposto na exortação e desafio final a que surja quem venha “viver” essa “verdade / Que morreu D. Sebastião”.
O poema começa por lamentar dois aspectos da comum condição humana. “Triste” é “quem vive em casa”, fechado na sua reclusão doméstica e “contente” com essa forma exígua de exercício das possibilidades humanas, sem que algo mais, “sonho” ou “golpe d' asa” (cf. Mário de Sá-Carneiro), o leve a transcender essa condição domesticada, tornando até mais viva a experiência disso que se abandona (“mais rubra a brasa da lareira a abandonar”), subtil indicação de que só vivemos plenamente aquilo de que nos libertamos. Triste é também “quem é feliz”, contente agora com a mera duração da vida a que adere vegetativamente, inconsciente de tomar por vida a própria morte, o estar já sepulto nessa mesma e extrema limitação das possibilidades humanas. Esta falsa felicidade, extremamente condicionada e vulnerável, resulta de nada haver no indivíduo que internamente o leve além da “lição da raiz”, que se pode interpretar como o (falso) saber comum dispensado pela família, pela escola e pelo meio social aos humanos, ou, mais fundo, como esse inquestionado e irreflectido enraizamento vegetal na mera duração da vida biológica, sancionado pelas convenções dominantes na família, na escola e na sociedade.
Após a lamentação das duas primeiras estrofes, onde, em termos terapêuticos, se faz o diagnóstico e a etiologia do estado mórbido em que se encontra o homem comum, a terceira estrofe indica o remédio, a via a seguir para que tal estado se supere, o que deixa implícita a possibilidade da saúde. Essa via passa por assumir o descontentamento, o inconformismo com a situação imediatamente vivida, como exercício de humanidade. É isso que permite que se cumpra o apelo final: domar “as forças cegas” pela “visão” que há na alma, porventura a mesma visão espiritual a que alude o título Mensagem: Mens ag(itat) (mol)em, a visão de que o pensamento/a inteligência/a mente impele/põe em movimento a massa(matéria)/multidão, o animado e o inanimado. A via a seguir para ressuscitar uma humanidade sepultada na vida vegetativa e convencional consiste, primeiro, em despertar o seu descontentamento com esse modo despotenciado e alienado de existência e, a seguir, inverter a situação, fazendo com que não sejam as forças inconscientes, ou tornadas inconscientes, dos instintos e pulsões de sobrevivência infra-humana, bem como dos hábitos mentais colectivos (familiares, escolares, sociais) que os reproduzem, a dominar a “alma”, a consciência, mas antes esta a subjugá-los, consciencializando-os, libertando-se deles e eventualmente orientando a energia neles investida para fins superiores. Isso é possível, note-se, “pela visão que a alma tem”, como se nisso se aludisse a algo, o poder da consciência, desde já presente na alma, ou seja, na vida interna do homem, porventura apenas inoperante na medida em que esteja encoberto pelos automatismos da “vida” vegetativa e convencional.
Todavia, a estrofe carece ainda de ser lida em função do que nela se acrescenta e da sua função de charneira que, no centro da composição, estabelece a ligação entre as estrofes anteriores e posteriores. No seu início refere-se o fluxo contínuo das “eras” que umas às outras se sucedem e destituem, desvanecendo-se na mesma passagem voraz do tempo. A impermanência das “eras”, enquanto períodos temporais, é claramente, na estrofe seguinte, a dos “quatro / Tempos do ser que sonhou”, destinados a passar cedendo o lugar ao “dia claro” que desde o início nessa mesma fugacidade temporal se enraíza, germina e cresce, até que surja plenamente no “teatro” da “terra”. Estes quatro “tempos” ou “eras” oníricas, em que se troca o real por uma ficção inconsciente de o ser, e que são os quatro impérios – Grécia, Roma, Cristandade, Europa – destinados a desvanecer-se e ser superados pelo Quinto, são pois os marcos da história do mundo em que predominam as “forças cegas” que tornam a vida vegetativa, convencional e defunta e que devem ser domadas “pela visão que a alma tem”. Esta manifesta-se assim idêntica ao “dia claro”, ao despertar dos quatro tempos do sonho, ao implícito Quinto Império e à enigmática “verdade / Que morreu D. Sebastião”. Resta saber o que é esta verdade, que fica desde já suposta como algo que transcende a impermanência universal que rege o tempo cósmico e a história político-civilizacional dos homens. É legítimo entretanto supor que ela também se relaciona com essa visão ampla que se diz na palavra Europa e que, pelo seu rosto-Portugal, fita/deseja esfíngica e fatalmente a sua morte e transcensão na alteridade do Ocidente/Oceano, esse “futuro do passado” (cf. o poema inicial da Mensagem) que já vimos ser irredutível a qualquer determinação temporal e histórico-geográfica. A “verdade / Que morreu D. Sebastião”, o Quinto Império, está demasiado comprometido com o despertar da ficção onírica e com a transcensão do movimento histórico para poder ser objectivado em qualquer coordenada espácio-temporal. Não o entender é ficar tristemente refém do tempo de ilusão que é o dos quatro impérios, o tempo da vida sepulta na funesta “noite” da consciência dominada pelas “forças cegas” que regem a visão comum, apegada ao seu enraizamento no irreal.
(texto em formulação e a continuar)
sábado, 12 de dezembro de 2009
sexta-feira, 11 de dezembro de 2009
quinta-feira, 10 de dezembro de 2009
Da hipnose do Nobel
Em 1973, juntamente com o diplomata norte-vietnamita Le Duc Tho, Henry Kissinger foi agraciado com o Prémio Nobel da Paz. Isso não impediu que, enquanto responsável pela diplomacia norte-americana, estivesse envolvido em acontecimentos tão revoltantes quanto a deposição de Salvador Allende no Chile, barbaramente assassinado pelos esbirros do General Pinochet no Palácio de La Moneda, precisamente nesse ano de 1973, que instaurou uma das ditaduras mais sanguinárias que a América Latina conheceu, ou a invasão de Timor-Leste pela Indonésia, com as consequências trágicas que são bem conhecidas.
O mediatismo do fim da guerra do Vietname, a primeira com um impacto televisivo de largo espectro nas sociedades ocidentais, terá sido determinante para a atribuição do Nobel da paz a esta figura tétrica da história recente deste mundo em permanente convulsão. Houve outras atribuições que seguiram o mesmo paradigma, também elas polémicas. O que têm de comum é que premiavam a coragem de avançar para o diálogo e de aceitar o fim de conflitos aparentemente insolúveis (no Médio-Oriente, apesar de tudo, ou apesar de nada, deram-se passos importantes no sentido da criação de dois Estados, embora a plena consumação deste desiderato tenha enfrentado novos obstáculos que ressuscitaram todos os outros, mesmo os que se julgava definitivamente ultrapassados).
Quando as sociedades deixam que o ressentimento se torne o motor da sua história, não só se criam as condições para a instauração do totalitarismo, como se geram as condições propícias ao agudizar conflitos internos e externos. É por esta razão que Nelson Mandela representa hoje para o mundo a capacidade de suportar a opressão sem sucumbir ao ódio. Nobel da Paz em 1993 em parceria com Frederik de Klerk, "pelo seu esforço para a abolição pacífica do regime do apartheid, e por terem estabelecido as bases para uma nova África do Sul democrática”, Nelson Mandela é hoje um ícone político que representa a capacidade de resolução de problemas vitais para o presente e o futuro das sociedades, pela via do diálogo democrático e da verdade ética e existencial como centro atractor da convivialidade política, categoria ainda por explorar de forma profunda pela teoria política, mas que se coloca cada vez mais como a alternativa à razoabilidade mediatizada e submetida às regras da oferta e da procura eleitoral.
O problema da democracia não é a existência de eleições. Como me parece óbvio. É, antes de mais, considerar-se as eleições como a única via de participação política dos cidadãos, transformados em actantes da sociedade do espectáculo (assumo aqui um categoria de Guy Debord que neste momento é cada vez mais importante para podermos chegar aonde é preciso na problematização em torno da actualidade em que nos inserimos) desinvestidos da condição de agentes. O cidadão é cada vez mais um consumidor, um espectador também ele já mediatizado, apropriado pelo medium em que a própria sociedade já se transformou. O lema mcLuhaniano “the medium is the message” deve dar-nos que pensar, uma vez que estamos embebidos no ‘meio’ de ‘comunicação’, com o quadro arquetipal subvertido, uma vez que somos já parte da mensagem, e o destinador e os destinatários desmultiplicam-se em fractal sobre o plissado desta urdidura caótica e englobante que alimenta os discursos e subverte a paisagem mental em que se constrói a subjectividade humana e, no seu seio, a subjectividade política.
A verdade ética será o que ainda poderá ser salvo dessa metastática profusão da demiurgia do Lógos sem dia-logia, sem abertura para o outro de si, ou para a sua instauração em discursividades diversas, excêntricas e desconexas entre si, hoje tudo é discurso do mesmo sobre o mesmo, o caldeirão mediatizado de todas as teorias, a abolição das fracturas simbólicas e a erosão da agudeza das dissidências. É o Lógos sem diabolia, essa dispersividade excessiva, incircunscriptível que, como tão bem o viu Eudoro de Souza, é a possibilidade, impossibilitante e, paradoxalmente, facilitadora (a categoria de órgão-obstáculo de Jankélévitch expressa muito bem este paradoxo) da simbolização, que pode ser assumida como um retorno a uma Ítica reeditada, ou a uma condição paradisíaca abandonada.
Foi no bojo desse caldeirão que os novos feiticeiros da metafísica da história (um híbrido entre a teodiceia messiânica e o marketing político ‘puro e duro’) engendraram o ‘fenómeno Obama’, o candidato-Oprah, hollywoodofílico, completamente descomprometido com o passado tenebroso da América e do mundo, sem as máculas do bushismo e das fracturas ancestrais duma América avidamente à procura de pontes para a temporalidade mítica da instauração da Terra da Promissão que o devir histórico preteriu, em progressivo e inexorável afastamento em relação à Idade de Ouro da Fundação – Obama aparece como um herdeiro do sonho americano, o arquétipo forjado pelos Pais Fundadores e que permanece, paradoxalmente, como a meta quiliástica do progresso social.
Foi em nome da Esperança que o Comité Nobel atribuiu a Barak Obama o Prémio Nobel da Paz, fazê-lo a um Presidente em exercício, tratando-se do Chefe de Estado duma superpotência com liames a todas as instâncias de luta pelo poder e de fractura no tabuleiro geoestratégico é um acto, no mínimo, arriscado. Subordinar à Esperança o significado mais emblemático deste acto de reconhecimento tem em si uma hybricidade (que desfecho esta hybris desencadeará?) que o mundo talvez não esteja preparado para suportar, uma vez que essa é uma categoria-caixa-de-Pandora, dentro do seu invólucro está o detonador de todas as formas de loucura política que surgiram à luz do dia nos dois últimos milénios, a escatologia acaba de ser reapropriada pela hiper-rede do simbolismo mediático erguido em anti-Mitologia, a derradeira exaltação da Metafísica totalizadora.
Obama parece incarnar o arquétipo do Papa Angélico, nascido no fervor da emergência da visão joaquimita da história e que João Paulo II recuperou ao interpretar o texto do terceiro segredo de Fátima como uma referência ao atentado que sofreu em 1981, na Praça de S. Pedro. Se tivermos em conta que este mitema tem como imagem axial um Papa vestido de branco cuja missão seria governar o mundo até ao fim da História, não é difícil perceber a monstruosidade (no sentido do que ‘dá a ver’, e sem um sentido pejorativo) do que está aqui em causa, já que João Paulo II torna pública esta interpretação no ocaso da sua vida. Simbolicamente o ciclo histórico da Igreja encerra-se e tudo o que virá a seguir estará já fora da História da Salvação. Trata-se do acto mais grave que um Papa promulgou em toda a história do catolicismo.
O que temos que procurar entender é o porquê deste gesto de megalomania teológica. Estaria Carol Woytila convencido de que era o último Papa? Ou, pelo menos, de que nos abeirávamos do fim da Civilização?
Talvez, simplesmente não se tenha apercebido do significado simbólico do seu gesto.
Nem esta anedota da história contemporânea terá pesado no espírito dos membros do Comité Nobel. Mas, neste caso, as consequências poderão atingir uma escala difícil de antecipar.
Haverá História depois de Obama?