Satish Kumar é um nome pouco conhecido, mas o do seu mentor não. Gandhi inspirou toda a filosofia do indiano de 75 anos, que na década de 60, em plena crise dos mísseis de Cuba, fez uma caminhada de 14 mil quilómetros pelo mundo contra as armas nucleares. Quase meio século depois, Satish lidera a Universidade Schumacher e dirige uma revista sobre sustentabilidade. O i encontrou-se com o antigo monge Jai (a religião de Gandhi) na Estação de Santa Apolónia, em Lisboa. Satish surgiu como o imaginávamos: enérgico, bem-disposto, simples. Tinha acabado de chegar do Porto, onde foi falar sobre sustentabilidade a convite da Gulbenkian.
Como correu a conferência?
O Porto faz-me lembrar uma cidade da Índia, Varanassi, uma cidade sagrada com cinco mil anos que fica nas margens do Ganges. Então comecei por dizer isto ao público, que me sentia em casa por isso, e depois falei de sustentabilidade.
E o que disse?
Que a sustentabilidade não virá dos bancos nem do dinheiro. Sustentabilidade tem de vir do país, da nossa terra, temos que prestar mais atenção à agricultura, à comida, ao queijo, ao vinho, ao azeite e a outras coisas que, para o Porto, podem vir de um raio de 500 quilómetros. Assim passamos a precisar de menos transportes que são baseados em combustíveis fósseis, porque para os termos, temos de entrar em guerra na Líbia. Os combustíveis fósseis não são politicamente sustentáveis, nem economicamente sustentáveis, nem humanamente sustentáveis. Vamos fazer do Porto e de Portugal sítios mais independentes e evitar que os chineses nos tirem empregos e capacidades.
Como assim?
Hoje em dia tudo é feito na China. Eles levam o algodão e trazem-no em tecidos. E é assim que as pessoas perdem capacidades. E agora eles fazem as coisas baratas mas dentro de dez anos não vão ser baratas. Vamos para a China usar trabalho barato mas isso irá tornar-se caro, porque os nossos povos não vão saber fazer roupa, vamos perder as nossas capacidades, os nossos ofícios, e vamos ficar dependentes da China e esquecer como se fazem coisas bonitas. Esta globalização não é boa nem sustentável. Foi disso que falei na conferência, sobre o futuro da sustentabilidade. Tem de ser local: economia local, agricultura local, ofícios locais. E disse que o dinheiro não é uma riqueza real. O dinheiro é apenas um meio de troca, uma medida de riqueza. A verdadeira riqueza é terra, água limpa, florestas, árvores, pessoas, a sua criatividade, as suas capacidades, a sua imaginação.
Uma cidade em Itália já declarou independência do sistema financeiro. Parece-lhe a resposta certa?
Eu não digo que devemos abolir completamente o dinheiro. O dinheiro foi uma boa invenção e é um meio para alcançar um fim, mas não é o fim. Nós fizemos do dinheiro o fim, vendemos terras para termos dinheiro, destruímos florestas, pomos animais em fábricas, usamos pessoas para fazer dinheiro. Fazer dinheiro tornou-se o objectivo. Isto está de pernas para o ar. Temos de dizer: o dinheiro é um meio para alcançar um fim e esse fim deve ser o bem-estar das pessoas. O dinheiro tornou-se um ditador. Estamos a viver sob a ditadura do dinheiro e a economia é a nossa religião. E é a religião errada!
Falou sobre a Líbia. Acha que o Ocidente está a aproveitar-se desta Primavera Árabe por causa do petróleo?
Sim. O caso da Líbia devia ter sido como o da Tunísia e o do Egipto, em que deixámos as pessoas levantar-se e levar a cabo revoluções pacíficas, não-violentas. É assim que se faz. E na Síria, ainda que haja pessoas a serem mortas, se mandarmos a NATO e as forças americanas para lá haverá ainda mais mortes. Saddam Hussein matava no Iraque, mas quando os americanos entraram lá, mataram ainda mais. Os exércitos não são a resposta. Os países ocidentais devem deixar as pessoas erguer-se por elas próprias e parar de fornecer armas a estes países. Porque são países europeus e a América quem fornece as armas que estão a ser usadas para matar estes povos. Esta revolução deve ser pelo povo e para o povo, nós não podemos impor democracia três mil pés acima deles. É uma hipocrisia! Eles só querem ver-se livres do Kadhafi, não estão lá para proteger o povo líbio.
É conhecido por ter feito milhares de quilómetros a pé pela paz mundial e contra as armas nucleares.
Foi uma experiência maravilhosa. O Bertand Russell estava a protestar contra as armas nucleares em Trafalgar Square [Londres] e foi preso. Tinha 90 anos! Eu estava num café com um amigo e disse: aqui está um homem de 90 anos a lutar contra isto e o que é que eu, jovem, estou a fazer pelo mundo aqui a beber café?
Isto foi em que altura?
De 1962 a 1964, dois anos e meio. Comecei em Nova Deli, a partir da sepultura do Mahatma Gandhi, e andei 14 mil quilómetros até à sepultura de John F. Kennedy.
Porquê até à sepultura de Kennedy?
Porque estes dois homens foram assassinados por armas. Queria mostrar que as armas não matam só inimigos, também matam Gandhi e Kennedy.
Desde Nova Deli, passou por onde?
Passei pelo Paquistão, Afeganistão, Irão, Azerbaijão, Arménia, Georgia, Rússia e cheguei a Moscovo - primeira capital nuclear que visitei. Daí fui pela Bielorrússia, Polónia, Alemanha, Bélgica, França e cheguei a Paris, segunda capital. De França fui para Inglaterra de barco e cheguei a Londres, terceira capital. De Londres apanhei outro barco para Nova Iorque e daí para Washington DC, a última.
E neste tempo todo, o que fazia?
Dizia que precisamos de três tipos de paz. A primeira é a paz com as pessoas, o desarmamento nuclear, o fim das guerras, viver em harmonia com todas as religiões e nações. Temos de resolver os nossos problemas apenas através de negociação, de meios pacíficos, porque a guerra é obsoleta, particularmente a nuclear. As armas nucleares são completamente inúteis. Largando uma bomba nuclear mata-se tudo: homens, mulheres, crianças, animais, plantas, rios, lagos, terras, insectos, tudo! Estamos a gastar milhões e milhões de dólares e de libras e de euros nestas armas inúteis quando há pessoas com fome. As pessoas não têm empregos, corta-se na educação, corta-se nos hospitais, corta-se nas bibliotecas e gasta-se em armas. E dizemos nós que somos instruídos e civilizados. Isto é civilização? Isto é inteligência? Temos de gastar mais dinheiro em diplomacia e menos em força militar. Depois, temos de estar em paz com o ambiente - é a segunda paz. Neste momento, a humanidade está em guerra com a natureza, está a tentar conquistá-la. Mas mesmo que ganhemos, nós é que vamos ser vencidos, porque não se pode competir com a natureza.
E a terceira paz?
Paz com nós próprios. Andamos constantemente em tensão, em pressão, sempre a correr, rápido; mais rápido, mais dinheiro, mais tudo. Não passamos tempo connosco, vivemos sem tempo para nos sentarmos em silêncio, para escrever um poema, ler um livro, ir a um jardim, cozinhar, estar com a família, andar a pé. Porque também estamos em guerra connosco. Por isso, paz com o mundo, paz com a natureza, paz connosco. Em sânscrito dizemos shanti, shanti, shanti. Assim, três vezes: paz, paz, paz. Era esse o meu objectivo e andei sempre sem dinheiro.
Foi sozinho?
Fui com esse amigo indiano. Começámos por dizer: a paz começa pela confiança e a guerra começa pelo medo. Se íamos caminhar pela paz, eu ia mostrar a mim próprio que confiava nas pessoas e na natureza. Então, durante dois anos e meio nunca tive dinheiro. E às vezes não arranjei comida mas dizia: é uma oportunidade para jejuar. Se não encontrava um abrigo para dormir dizia: é uma oportunidade para dormir sob as estrelas. E não tinha nenhum medo da morte. Disse: se eu morrer a caminhar pela paz, será a melhor das mortes. E assim consegui caminhar com o meu amigo durante dois anos e meio - faz 50 anos no próximo ano.
E o que acha que mudou em 50 anos?
O nuclear está melhor. Naquela altura havia muita ênfase nas armas nucleares, mas depois da Guerra Fria, a Rússia e a América passaram a dar-lhes menos importância. Agora deviam era ver-se livres delas de uma vez por todas! Já hoje!
E o que está pior?
A violência contra a natureza; estamos a usar tecnologia para mais destruição. E a paz connosco também está a piorar, por causa de toda a tecnologia e velocidade. Temos de desacelerar para avançar. E temos de caminhar mais, é a melhor maneira de ficar saudável, mental e fisicamente. Ter tempo para caminhar, para fazer yoga, para cozinhar, para fazer jardinagem, para estar em contacto com a natureza e amá-la. Assim seremos mais felizes.
A Alemanha está perto de criar carne artificial. Isto não é questionável?
Se for para uma transição da carne animal para a carne vegetal, como seitan, parece-me bem. Eu não gosto de seitan, mas prefiro que as pessoas não tenham a palavra carne na cabeça. Os elefantes são vegetarianos e tornam-se tão grandes. Os cavalos são vegetarianos e são tão poderosos. Se os elefantes e os cavalos podem viver sem carne, os humanos podem viver sem carne. Eu sou vegetariano há 1600 anos!
(risos) 1600 anos?
Os meus antepassados tornaram-se vegetarianos há 1600 anos. Eu tenho 75 anos e olhe para a energia que tenho! A ideia de que precisamos de carne por causa das proteínas é propaganda da indústria da carne, é mentira! Na Índia há milhões de pessoas vegetarianas e completamente saudáveis. Para alimentar uma pessoa com carne são precisos cinco hectares de terra. Mas para alimentar uma pessoa com vegetais só é preciso um hectare. Precisamos cinco vezes mais de terra e de água para comer carne! E mesmo que as pessoas não se tornem completamente vegetarianas, pelo menos reduzam o consumo e comam apenas carne orgânica e de animais felizes. Porque se comermos animais infelizes e vítimas de crueldade, como a maioria deles vive neste momento, fechados em fábricas à espera de morrer, vamos ser infelizes e cruéis.
Nasceu no Rajastão mas vive em Inglaterra. Mudou-se com que idade?
Mudei-me em 1971. Dirijo a Universidade Schumacher, em Darlington, onde temos cursos holísticos, uma educação ecológica, espiritual, científica. Temos mestrados sobre os três tipos de paz de que falei, aplicados à economia, ciência e outras áreas.
Muitos dizem que os seus ideais são utópicos. O que responde a isso?
Muita gente diz-me que eu sou idealista e que tenho de ser realista. A minha resposta é: o que é que os realistas fizeram pelo mundo? O que é que alcançaram? Por estarmos a ser governados por realistas temos uma crise económica, temos aquecimento global, temos guerra no Afeganistão, Líbia e em outros tantos países. Os realistas criaram esta confusão toda. É altura de os realistas saírem e de os idealistas entrarem. Isto não é mero idealismo, é um idealismo realista. Vamos dizer: adeus realismo, bem-vindo idealismo!
(Entrevista ao jornal i, 8 de Setembro de 2011)