Não deixa de ser uma enorme vaidade imaginar que estamos despertos no meio dos que dormem. A nossa vaidade leva-nos a inventar estrelas ardentes que atiramos aos outros, sabendo que entre eles não há um único capaz de segurar uma estrela com a ponta do dedo mindinho. Imaginamos que estamos despertos, mas nenhum de nós tem um sorriso na cara, aquele sorriso mistura de dentes e riso, amor e humildade, dos que enterrados na carne chegaram finalmente à raíz e dela beberam a primeira água-luz perfumada e limpa. Se nem o sorriso temos, muito menos temos asas ou sabemos criar estrelas, nem tratámos de quebrar os ossos, rasgar veias e artérias, dilacerar órgãos e romper a carne e trepar pela raíz acima, desfeitos e nús, em pleno vôo, nem parámos a meio, por compaixão, nem mesmo nos sentámos então de pernas cruzadas a rir, de nós e dos outros. E se mesmo assim, algum de entre nós tivesse passado por tudo isto, teria fingido dormir de novo, com um só olho aberto, à espera dos seus irmãos?
Escultura: Sleeping Muse, de Constantin Brancusi (1876 - 1957), Roménia
4 comentários:
Adoro Brancusi e as suas cabeças-rosto órficas e búdicas... O entrecruzar do Oriente íntimo com o Ocidente extremo… A ofidiana contemplação: o temp(o)lo que circunscreve o impossível e libera-o, indemne, na experiência estética, a perdição-viagem suprema…
:)
Li que nos anos 20 do século passado, a Alfândega dos Estados Unidos quis taxar as suas obras como produtos industriais, mais especificamente, "metal", pois recusou-se a reconhecê-las como arte. Um diálogo intercultural falhado, diria eu. :)
Belíssimo texto, de beleza feita de verdade, Laura. É seu?
Sim, Paulo. Tenho um tão profundo respeito e amor pela arte, que seria incapaz de ignorar um autor. Mesmo que o desconheça, farei questão de o apresentar, como outro que não eu.
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