segunda-feira, 2 de novembro de 2009
"Nasci no dia eleito da Saudade" - Homenagem a Teixeira de Pascoaes
"Nasci no dia eleito da Saudade,
Quando o vulto espectral da Eternidade,
Diante de nós, quimérico, se eleva,
Com estrelas a rir na máscara de treva.
E tem gestos absortos
Para os brancos sepulcros pensativos,
Onde a tristeza, em lágrimas, dos vivos
Beija a alegria, toda em flor, dos mortos.
[...]
Nasci ao pôr do sol dum dia de Novembro.
O meu berço o crepúsculo embalou...
E até parece, às vezes, que me lembro,
Porque essa tarde triste, em mim, ficou"
- Teixeira de Pascoaes, "A Minha História", Terra Proibida.
Por opção simbólica, consagrada em todas as biografias, Teixeira de Pascoaes nasceu no dia 2 de Novembro de 1877 (terá nascido, realmente, às 17 h do dia 8). Nasceu assim no dia de Finados, que hoje se comemora, um dos homens mais despertos e inquietantes que veio a este mundo de gente morta, sonâmbula e aborrecida.
Em comovida homenagem ao Irmão espiritual, reproduzo o que escrevi, em nome da Direcção, no Editorial do 4º número da Nova Águia, a ele dedicado:
"Pascoaes [...] é um poeta e um pensador maior europeu e mundial. Isto porque, na obra que se estende de Embriões (1895) até ao póstumo A Minha Cartilha (1954), assistimos a um dos mais apaixonantes confrontos do espírito humano – seja pelo rasgo visionário, pela suspensão meditativa, pela interrogação crucial ou pela inspiração lírica – com os abismos do divino e do demoníaco, da realidade, da vida e da existência, num debate explícito e implícito com as mais polifónicas vozes da tradição e da cultura humana, europeia e universal.
Em Pascoaes a multiforme tradição planetária encontra um recriador que transfigura tudo em que toca, desde os clássicos greco-latinos até à leitura gnóstico-trágica do universo bíblico, temperada pela ironia da ilusão védica a convergir com a descoberta da física quântica. Pontífice neoreligioso do Ocidente e do Oriente profundos, do antiquíssimo e do novíssimo, do tradicional e do moderno, Pascoaes não separou também, no ser lusitano e português, o mais particular e imanente do mais universal e transcendente. Como escreve, na conclusão do mais extenso ensaio consagrado à questão: “Estudemos o homem transcendente, o além homem, que o Português encerra. // Estudemos o Português do Cosmos, oculto no Português do extremo ocidental da Ibéria” (1913). Essa a descoberta da “Índia Ideal”, a suprema realização da aventura náutica da nação, sob o signo da Saudade lírico-metafísica, jamais divorciada da solidariedade com os movimentos de libertação social, pois “a pena é irmã da enxada”. Em Pascoaes reside a origem do mitema das “Índias espirituais”, celebrado com Pessoa, como em Pascoaes avulta um sentido da Ibéria e de Portugal como o outro da Europa de matriz helénica, capaz de lhe apontar um rumo alternativo à razão intelectual crescentemente comercial, industrial e bélica.
Fundo e referência maior contra os quais se constitui Pessoa, traduzido em vida em múltiplas línguas europeias, objecto da constituição de círculos na Suíça para o estudo da sua obra, comparado por Berdiaev a Dante e Milton, Pascoaes foi esse “ser terrível” (José Marinho) que era visto a chispar fogo dos cabelos (Mário Cesariny) e que, afectando a vida de muitos portugueses e europeus, conheceu o silenciamento que cada terra sempre reserva aos seus maiores profetas. Nada expressará jamais, e tão comoventemente, a sua grandeza quanto o relato do soldado alemão que, “agonizando no campo de batalha, deixa a um companheiro o seguinte recado: “Diz ao poeta Teixeira de Pascoaes que morri a pensar nele”” (Mário Cesariny).
Nós "vivemos" a esquecê-lo...
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2 comentários:
Cito Pascoaes (in "Últimos Versos"):
"O Crime"
"Quem não é filho de Caim?
Abel não deixou filhos.
Mas em Caim havia Abel.
E somos todos
A vítima e o carrasco
No mesmo ser...
A criatura e o criador
Na mesma fera,
O pecado e o remorso
no mesmo Deus"
Saramago, perante isto, é mero epígono. E de refugo.
E fabricado à custa dos expedientes e logros do marketing e da publicidade: vis instrumentos para tão pouco novo.
Deixo, para feitor de mais sábio e sagrado silêncio, um poema publicado em 1954, e não sei se o último do poeta de Amarante.
Transcrevo a segunda estrofe de:
"Versos Brancos"
É oceânica a existência:
O mar ondula, ondula a terra,
O ar é todo em ondas, que se avistam
Nas trémulas ramagens
E na poeira dos caminhos,
E há outras ondas invisíveis,
Emanadas da origem.
E recebidas
Pelos miolos
De algum poeta,
Lhe dão a inspiração
Do transcendente e do inefável,
Ou desse Espírito
Que tudo anima,
E, sendo a Vida, desejou
Ser Homem. E há-de ser...
Não subiu ele a orango
Donde se avista a humanidade?
A ondulação é musical,
Como o cantar dos pássaros
E o verbo dos profetas, que ressoa
Através do passado e do futuro.
E não tem rima, tem só ritmo,
que a Natureza, como a Bíblia,
É feita de versículos."
Entra dentro da minha alma um tal sepulto silêncio que me gela, ao ler esta homenagem e os versos que Donis nos traz, os de Caim e Abel de nós: o avesso e o reverso da nossa imagem: "oceânica existência", tudo emana em Saudade divina Origem...
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