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Nicolai Berdiaev |
Se a palavra "mística" deriva da palavra "mistério", o misticismo deve ser considerado a base da religião e fonte de movimento criador dentro da prórpiareligião. A partir do contacto directo e vivo com o mistério derradeiro nasce a experiência religiosa. A necrose da vida religiosa é superada e dá-se o seu renascimento, de face voltada para o mistério derradeiro do ser, isto é, para o misticismo. No misticismo, a vida religiosa é ardente, inextinguível e não ossificada. Todos os grandes fundadores e criadores da vida religiosa tiveram uma primeira experiência mística através de uma união mística com Deus e o divino. Numa experiência mística ardente, o apóstolo Paulo revelou a essência do cristianismo. O misticismo é um solo fértil religioso e a religião esgota-se quando esta se rompe com este solo. Mas na História, as relações que existiram entre misticismo e religião foram sempre muito complicadas e confusas. A religião tinha medo do misticismo, vendo-o muitas vezes como fonte de heresia. A mística não ajudava o trabalho organizativo da religião e ameaçava derrubar as leis religiosas. Todavia, a religião precisava da mistica e institucionalizava sempre a sua forma de misticismo como o cume da sua própria vida, como sua cor. Existe oficialmente o misticismo ortodoxo, permitido e recomendado, o misticismo católico e o misticismo das religiões não cristãs. A fé religiosa tenta sempre subjugar com as suas leis religiosas os elementos, muitas vezes violentos, da mística. Assim, as relações são complexas entre misticismo e religião, complexidade essa que tem aumentado actualmente pelo facto do misticismo se ter tornado moda, usando-se esta palavra de uma forma muito incerta, vaga e irresponsável. A adopção do misticismo na literatura contemporânea trouxe consequências fatais. Tentou-se fazer da mística algo pertencente a uma cultura refinada e sofisticada. O misticismo não é um psicologismo refinado ou um conjunto de experiências irracionais nem simplesmente música de alma. E a religião cristã com razão é contra tal sentido místico. Também a psicologia do final do século XIX/início do século XX é contrária ao sentido místico, assim como é contrária a todos os sentidos. Contudo, se tomarmos em conta, não a literatura contemporânea mas sim as imagens místicas clássicas e eternas, então devemos reconhecer que é o espírito e não a alma, é o "pneuma" e não a psicologia, a natureza do misticismo. Na experiência mística, a pessoa sai do seu "eu" e entra em contacto com o Ser primordial espiritual, com a realidade divina. Ao contrário dos protestantes, que preferem atribuir à mística um carácter individualista e identificá-la com individualismo religioso, devemos afirmar que a mística é a superação do individualismo, da condição de indivíduo. A mística é a profundeza e o cume da vida espiritual, é uma forma de vida espiritual autêntica. A mística é íntima e secreta mas não é individualista. Windelband expressou o que lhe parecia uma contradição do misticismo alemão da seguinte forma: a mística tem como fonte a individualidade e ao mesmo tempo reconhece esta como pecado. Se isto é um paradoxo no plano mental, deixa de o ser no plano espiritual. É preciso insistir que a mística não é um estado subjectivo mas antes uma saída da própria contradição entre subjectivo e objectivo. O misticismo não é um romantismo subjectivo. A mística não é um sonho de experiências subjectivas. A mística é altamente realista, sóbria no reconhecimento e desvelamento da realidade. O místico autêntico é apenas aquele que vê a realidade e a distingue de fantasmas.
Nicolai Berdiaev, in Filosofia do Espírito Livre
fonte:
http://www.vehi.net/berdyaev/fsduha/07.html
3 comentários:
Grande pensador, que tive a oportunidade de estudar no final dos anos oitenta... Ele e o pensamento russo estão por ser descobertos.
místico-gasoso: todo aquele que arrota DEUS sem mais nem ontem
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