Fonte da Imagem - Google - Fractal
O intervalo é que nos define. Uma folha de papel branco é uma asa que nos voa na palavra que ganha a distância. O que nos arrebata é o trémulo e crescente ruído de asas, como se um anjo deixasse cair pó fino e colorido, sobre a face surpreendida das folhas, à velocidade da palavra sobrevoando o papel indimensionado do texto. Toca-nos um rio na face. Um rio iluminado é uma líquida procissão de estrelas. O poeta é uma oração. A face é um semeado de férteis sombras das árvores e das flores de cores e perfumes. Um fogo alquímico arde. Estrelas escurecidas ou pedras em fogo fitam-nos súbitas e rápidas. As árvores acenam-nos, benevolentes. Despedem-se dos corpos com sopros de ar no canto das folhas. Os pássaros são o espelho da lembrança de voar. Do esquecimento e do desejo.
Rilke traz um anjo que vestimos de gaze para não cegar com o brilho da chegada à eterna luz cega dos dias: o caminho para todos os lugares. Para cobrir a vertigem, enrolei as asas ao tecido da noite em fios azuis de linho. Cobri a minha face. Revelamos a dor e o canto: tu e eu e o anjo de Rilke. Para ouvir o rumor, o gesto antes da partida, desapareço com a face encostada à humidade do papel, reflecte as letras através da lágrima, as palavras perdidas. Atravessamos através dessas palavras-asas o alto e grande mar. Uma palavra, pena à solta de mim sobrevoa a casa na montanha. E cobre o texto com um manto de céu. O tecido rompe o ar e um pássaro entra pela abertura do tecto do mundo. O pássaro revela-se poema e o choro é uma brisa nos dedos inspirados e crentes do construtor de asas. O lume crepita e o fogo que queima as asas é um corredor para a queda impossível no mar. Uma palavra tecida nas imensas asas do céu é uma estrela que brilha na impossível saciedade do infinito.
Caminhamos com os pés azuis, porque nos dói o espaço vasto do firmamento que contempla o chão do poema. A raiz que aí segrega palavras líquidas e expressões de uma coloração terrena vêem-se no espelho da lua, como se invertida a imagem, descêssemos por um fio de luz regressado ao labirinto. Um canto inaudível nos puxa as asas para cima do labirinto. Sonha-nos, matéria ardente, metal ardido no fundo chão do mundo; sonha-nos uma asa solta na vertiginosa subida: o apelo da luz que quer ser poema. Voltará em expressão de flor e semente à Origem da Saudade, ao firmamento sem regresso que como a nuvem se move, no azul indimensiondo do real florido do mundo. Uma árvore em que as raizes estão plantadas no azul, e são, no final sem fim eterno do movimento eterno a sua água de mar e de céu, a subir na descida do chão azul das nuvens.
4 comentários:
"Porque nós somos apenas a casca e a folha. A grande morte que cada um traz em si é o fruto à volta do qual tudo gira"
Rainer Maria Rilke, in o Livro da pobreza e da morte, p.38
Parabéns pela sua expressão, Maria.
Um abraço humilde do leitor.
Rilke há-de morar aqui, entre a folha e a casca, porque ele colhe os frutos que cada morte-texto traz para se alimentar da beleza, profundidade e ascensão que és.
Outro abraço de leitora.
Somos uma Saudade. A natureza é esse afundar que dá ao sol o nascer, ou o subir do mar que leva para o outro lado da falésia e para o fundo do cimo, as raízes que do céu se desprendem e em simétrica estrela se reflectem na flor, na árvore, no astro que vive no interior da pedra.
O que nos move nesse subir e descer, nesse voar é o a que a tudo transfigura. O movimento que tudo leva e traz é o que nasce nas asas de infinita expansão de mundos.
"Nós somos apenas a casca e a folha." A nossa grande morte vive na Origem de onde tudo se gera e onde tudo gira: na semente que não se dá emlimitado terrrena, mas a que se espalha canto.
Que belo e bom é o leitor que voa com o texto! Em redor da beleza, vendo-a, porque a reflecte.
Um abraço.
Isabel,
Rilke e o poema ou o anjo da palavra virão colher a morte dos textos que moram em um outro lugar da realidade o não lugar saudoso, onde nos acenamos para além das palavras, na profundidade e na altura das paisagens que nos colhem em lágrima, no azul do céu, reflexo do vasto mar, onde sobrevoam asas.
Uma frase me emudeceu no jardim:
"A natureza é um texto, cada ser uma palavra, mas um texto e uma palavra escritos numa língua que não é a nossa."(Pedro Sinde, "O Canto dos Seres").
Um beijo do jardim, hoje de chuva e folhas de árvore amarelas de outono. Brilham as asas!
Um beijo e a minha gratidão.
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