quinta-feira, 29 de outubro de 2009

A Janela

Na parede do mundo abre-se a janela:
Somos paisagem.

O olhar cruzou fronteiras de vidro:
Somos estrangeiros.

A alma navega em barcos de luz:
Somos naufrágio.

Pássaros flutuam na manhã cobalto:
Somos cantiga.

Surge a lua nova em nossa lucidez:
Somos transparência.

Na parede do mundo fecha-se a janela:
Somos viagem.


Paulo Bomfim, Revista diálogo Nr. 2, São Paulo, Dezembro 1955, p.33

5 comentários:

Donis de Frol Guilhade disse...

De facto, parece, "há" alma onde sempre não estamos.
Somos, dir-se-ia, discêntricos: "des-almadamente".

Fugentes, fugitivos e fugazes.
Viáticos, "vigários" e viandantes.

Belo poema.

Anónimo disse...

Que belíssimo poema, este!

Somos sempre para além de, para aquém de... do outro lado, mais acima... de onde estamos. Esse "descentramento" é que nos descobre paisagem e janela; manhã cobalto e cantiga...

E o real é o mais que ali brilha, em ausência no reverso do avesso dos caminhos!

Discêntricos (concordo com Donis) de nós, nos viajamos viagem, desc-entrados...

Belíssimo poema.

Donis de Frol Guilhade disse...

Belo achado, esse seu também, Maria: "desc-entrados" - com uma fértil sobreposição de leituras, em duas parcelas diversas da palavra: ora evidenciando "-entrando", ora salientando "-entrando".

Um pouco como verso/refrão dum certo poema de Hélder Macedo, que bem conhece:

"Se tudo faz o nada faz sentido".

Este, com três leituras, pelo menos, parece-me:

Se tudo faz o nada, faz sentido.
Se tudo faz, o nada faz sentido.
Se tudo faz o nada, (o nada) faz sentido.

Verificação, porventura, do mesmo descentramento entre o "há" e o "está".

antiquíssima disse...

Há algo "entre" o Eterno Retorno e o Super-Homem?

Donis de Frol Guilhade disse...

Questão interessante, essa, Antiquíssima!

Se bem que com nuances diversas de entendimento e enfoque, eu vejo como muito afins o Filho do Homem, do cristianismo, o Super-Homem, de Nietzsche, e o Supramente de Sri Aurobindo.

Todos apontam para um além-homem, um após este homem, esta humanidade, este modo de ser homem.

Nietzsche (vou deter-me nele) diz duas coisas, que estão obviamente muito ligadas: "O Super-Homem é o sentido da terra" porque "o homem só existe para ser ultrapassado",

E continua: "A grandeza do Homem está em ser ele uma ponte e não um final; o que podemos amar no Homem é ser ele 'transição' e 'naufrágio'.

E conclui: "O Homem é uma corda estendida entre o animal e o Super-Homem - uma corda por cima de um abismo".

Como viver o trespasse de tal abismo?
Nietzsche diz-nos que "atravessá-lo é perigoso - perigoso seguir esse caminho - perigoso olhar para trás - perigoso ser tomado de pavor e parar!"

E dá uma série de "conselhos" quanto a como deveremos fazê-lo. Trata-se de uma série de frases que começam todas da mesma maneira ("Amo aquele(s) que..."), como que a indicar o caminho para essa travessia sobre o abismo.

Destaco duas, que me parecem, para além de belíssimas, terrivelmente apelativas e desassossegantes.
São elas:

"Amo aquele cuja alma que de tal maneira transborda, a ponto de perder a consciência de si próprio; pois é a totalidade das coisas que causa a sua perda."

"Amo aqueles que apenas são capazes de viver na condição de perecer, porque perecendo se superam."

Nós somos, porventura, aquilo que Nietzsche denomina "Último Homem", visto que, para além dele, está apenas o Super-Homem, o Além-Homem.

A este Último Homem chama-lhe ele "o que de mais desprezível existe no mundo", pois "ele torna pequenas todas as coisas".

E assevera: "O último Homem é aquele que durante mais tempo viverá"

Como fugir, então, dessa "fatalidade"? Di-lo ele, rematando:

"Amo aquele que não põe de reserva a menor gota do seu espírito, mas que é a quintessência da sua própria virtude; no estado de espírito quintessenciado atravessará ele a ponte".

Seria bom, não fora o longo já deste comentário, trazer os contributos valiosos, quer de Sri Aurobindo, quando ele fala longamente, de experiência feita, disso a que chamou Supramente (Supermind), e que constituirá, segundo ele, uma mutação de toda a raça num sentido que a transcende, ao abrir-se ela à transformação mediante a ascensão de um degrau evolutivo que responde a um "salto" involutivo por parte do Divino; quer, ainda, qual seja o mais puro, primordial e autêntico sentido do cristianismo, com o seu "realismo eucarístico" e a transmutação física, por via da "apatheia" mística e dos carismas do permanente Pentecoste do Espírito Santo no homem, vivido isso de modo não "confessional" e "religioso".

Fica para depois.

Na verdade, sempiternamente retornamos a este "enTre": o homem é precisamente isso - mutação e transcensão de si.