"Quando, por fim, todos os homens perceberem que não há nada a esperar de Deus, nem da sociedade, nem dos amigos, nem dos tiranos benevolentes, nem dos governos democráticos, nem dos santos, nem dos salvadores, nem sequer da mais sagrada das coisas sagradas, a educação, quando todos os homens perceberem que terão que se salvar por obra das suas prórias mãos e que não precisam da piedade de ninguém, talvez então... Talvez! Mesmo nessa altura, tendo em conta a massa humana de que somos feitos, duvido. O que interessa é que estamos condenados. Talvez morramos amanhã, talvez daqui a cinco minutos. Façamos o nosso balanço. Podemos fazer com que os últimos cinco minutos valham a pena, sejam agradáveis e talvez alegres, se preferirem. Ou dissipá-los como fizemos com as horas, os dias, os meses, os anos e os séculos. Nenhum deus virá salvar-nos. Nenhum sistema de governo, nenhuma crença nos dará essa liberdade e essa justiça por que os homens anseiam mesmo no estertor da morte."
- Henry Miller, in Carta Aberta a Todos os Surrealistas do Mundo
3 comentários:
Ocorrem-me aqui aquelas palavras, perturbantemente belas, de António José Forte: “O mais belo espectáculo de horror somos nós.”
E estas outras também, da mesma obra (“Uma Faca nos dentes”):
“Já não há tempo para confusões - a Revolução é um momento, o revolucionário todos os momentos.
Não se pode confundir o amor a uma causa, a uma pátria, com o Amor.
Não se pode confundir a adesão a tipos étnicos com o amor ao homem e à liberdade. NÃO SE PODE CONFUNDIR! Quem ama a terra natal fica na terra natal; quem gosta do folclore não vem para a cidade. Ser pobre não é condição para se ganhar o céu ou o inferno. Não estar morto não quer forçosamente dizer que se esteja vivo, como não escrever não equivale sempre a ser analfabeto. Há mortos nas sepulturas muito mais presentes na vida do que se julga e gente que nunca escreveu uma linha que fez mais pela palavra que toda uma geração de escritores.
A acção poética implica: para com o amor uma atitude apaixonada, para com a amizade uma atitude intransigente, para com a Revolução uma atitude pessimista, para com a sociedade uma atitude ameaçadora. As visões poéticas são autónomas, a sua comunicação esotérica.”
Diz também Miller (embora eu não acredite em tudo o que ele (me) diz), que “Um homem escreve para expelir o veneno que acumulou devido ao seu estilo de vida falso. Ele tenta recapturar a sua inocência, mas tudo o que consegue fazer (escrevendo) é inocular o mundo com um vírus de sua desilusão. Ninguém iria colocar uma palavra no papel se tivesse a coragem de viver aquilo em que acreditava."
Disse ainda, crendo-se livre: “Eu não tenho dinheiro ou recursos ou esperança. Sou o homem mais feliz do mundo (…) Tudo o que era literatura se desprendeu de mim. Já não há mais livros para escrever, graças a Deus." (Feliz ou infelizmente voltou a enganar-se:)
Por entre a fumaça do café, José Forte, terá talvez gritado:
“Eu de barba branca a tiracolo
rodeado de fumo por todos os lados vadios
menos pelo lado do mar
com um incêndio à ilharga
e dois artelhos clandestinos
eu salvo miraculosamente para te amar e curar
e esperar o teu regresso glacial e escarlate
que escrevo poemas desde que um rato
me entrou prós pulmões e só por causa disso
eu que disse: há um cancro no mapa universal
e engenheiros, geógrafos, doutores se apressaram a negá-la
eu da cintura pra cima de alcatrão e terror
e do umbigo pra baixo de quiosque chinês
eu não espero piedade obrigado.”
E contudo, a terra continua a mover-se e a liberdade a saber “[à] boca no coração do sangue” e a nós caberá sempre o “escolher a tempo a nossa morte e amá-la.”
Abraço e obrigada pelo que me fizeram pensar.
Deus não vem de lado nenhum nem vai para lado nenhum, nem o demónio...
P.S. Desculpem lá o metro e meio de palavras retiradas à "Vida" (risos)
Gosto. Do Forte também
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