O que é, na verdade, o conhecimento para a Filosofia? E para os Poetas, seus irmãos, será outro que o conhecimento do ser!? Para os Poetas, que encontram a palavra na semente de onde ela germina, na Origem da Saudade do Céu, conhecer é ser linguagem estelar. Não para a razão de ser, a linguagem, o mais soprado som da voz que a silencia, mas antes para o espanto de ser o mundo uma outra linguagem, um outro ser no mesmo ser desvelado. Conhecer é participar do ser, porventura seja “isso” a criação de outro que seja o fio, o anel dessa passagem pela (des)razão do ser que há. Para os Poetas, profetas da cegueira, é a visão que melhor conhece o que não tem como, pois de dentro e de fora do mistério é. Esse de que falam os poetas, o denso e obscuro mistério que em tudo habita e em tudo é constelação de nada, extingue-se na voz e na boca, para o nascer futuro de outra boca que o diga. A morte é a revelação de toda a claridade na obscuridade do mistério. Nisso, o poeta é “apóstolo” de uma ciência rara de ser e de estar, do “é” e do “há”.
No vórtice dessa avalanche de plenitude de ser desocultado, os Poetas abrem à filosofia uma via de rosas, um florir que ao sublime chamamento da alma sobe em jardins de antes de haver mundo e haver. Porque a boca do ser desenha o Silêncio que o poeta fala, para ouvir. Que bocas desenham, os poetas-filósofos, que não a outra face do mesmo milagre? Os filósofos a dizem na selva de uma linguagem, uma metalinguagem, para além da linguagem. Ansiosos, talvez, de tocar o nada com um dedo. Uma via hermenêutica que o Poeta revela, como se as nascidas palavras lhe crescessem na boca, na desordem harmónica de um caos sibilado em vozes. Cada uma seguindo o labirinto da sua mesma e esquecida Voz. O poeta é também a sua mesma lembrança, a sua Saudade de ser.
Afinal nada somos mais do que simples imagens do cosmos, com os braços abertos e o coração em estrela. Conhecer é participar do todo com o corpo e a voz. Mistério da encarnação, Logos de súbito acontecimento acontecido. Relâmpago e fulgor. Dizer é fazer acontecer, silenciar é orar. A ninguém oram os poetas e os filósofos. São bocas interditas. Tocam a luz e a treva com os dedos. Num mesmo gesto de ser.
Cada coisa é o seu mesmo mistério e espelho dele. Os Poetas e os Filósofos não pensam o mundo, não o explicam, que o mundo o não pode ser, sob o risco de deixar de ser, evidentemente, mistério e ser. Os poetas e os Filósofos estão no pensamento do mundo, percorrendo um labirinto debaixo de outro labirinto. Uma espiral enrolada sobre outra espiral girando em sentidos inversos e a vibrações complementares. O Poeta quer ser completo com o mundo, não apenas o que o homem também é: semente, luz, plano, vibração, um nada de uma vibração musical que crie o mundo e o nosso mesmo Silêncio de ser e de conceber, e, simultanamente, a mais completa sinfonia que reside nesse mesmo mistério.
Por isso mesmo, os poetas criam-se a si mesmos, e não têm que pedir desculpa a Deus. O Poeta deixa que a Palavra seja Silêncio e o silêncio se sagre em palavra. Os Poetas, pobres bocas pedintes, inspiram o mesmo mundo e envenenam a alma de mistérios segredados. Participam dos mitos, criando-se nadas com voz. Caminham por desertos de que conhecem os contornos indistintos das montanhas mágicas e sobem pelos anéis do sol, como se sagrados, no cume de si lhes nascessem asas ou bicos para furar a transparência de si mesmos, até ao recôndito abismo, de onde o Nada talvez grite e cante a uma mesma voz. Os poetas-filósofos são um terrível e sublime lugar de rios cruzados. Linhas de voz, pautas de sinfonias inventadas, dentro da vibração multiversal do mundo. Desocultam, desvelam, criam o ser e o não ser. Vão por florestas, clareiras, de novo, abraçadas: a terra e a terra. O mundo e o seu mistério engolem a voz, sopram-na para dentro de um poço tapado. (Des)labirintam-se em verdade. Encontram-se em montanhas tocadas pela voz que canta o ser da voz que o diz.
2 comentários:
Texto para silenciar.
Silenciar até o sibilar da brisa imperceptível, beijando as pedras e arvoredo do que nos seja o ermo íntimo: adequado des-pojar para uma mais inteira e abísmica nudez de saber o sabor incomparável de lê-lo.
As "bocas interditas" a que se alude são, creio, a clave de Si do tom, e a tónica da nota Sol: sem Dó!
Porventura a única chave capaz de fazer em nós o necessário silêncio - para haver "ouvidos para escutar" o [de] que não Há voz...
(Donis e os demais diabretes agradecem a Treva areopagítica d' "esta mesma luz, outra mesma linguagem"...)
Não tenho lágrimas
estou mais baixo
junto à cal
Vejo o solo extinto
não oiço ninguém
e não regresso
Adormecer talvez
junto a uma estaca
com uma pequena pedra
sobre as pálpebras
Não era um barco
nem uma guitarra
Era uma pedra
que girava
Ligado a uma sombra
o corpo só se afirma
quando nela se apaga
restituindo o espaço
ao espaço
e só então caminha
dentro de si mesmo
e com as coisas
Um tremor de proa
um fulgor fulvo
os passos ligeiros sobre o veludo da
areia
as vogais lúcidas na superfície azul
o leque das árvores demorado e leve
as raízes da água entre blocos dourados
eis o espaço de súbito fraterno
(ligando o sonho à vida na leveza
de uma pálpebra)
Tacteio sobre o branco
quase adormeço
Sinto vagamente
um aroma de inocência
o mar
…
Do fundo surgem
uns olhos de diamante
…
o vento
Como quem levanta uma lâmpada
sem ruído
no nocturno cais de um quarto
será que o mundo escuta
e um segredo simples nos ilumina?
Talvez o silêncio seja um barco
que desliza sobre a sombra de uma estrela
Onde a força do vento
nos meus dentes?
Porque esse arvoredo
está na tua garganta
e te cobre os ombros
…
Um gesto que procura
a origem (de si próprio)
É por aqui mas o caminho é trémulo
e não se sabe se a palavra vai desenhar
um ombro de água clara
ou se o vento nos conduz
a um círculo de pedras
O que escrevo por vezes é como se um
corpo de sombra
no meu corpo abrisse
o espaço de um silêncio
um espaço intacto e puro
António Ramos Rosa*
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