terça-feira, 22 de março de 2011

No Dia Internacional da Poesia

Lembrando Sophia de Mello Breyner Andresen
( 1919-2004 )



Sophia de Mello Breyner, por Arpad Szenes

A poesia tem o dom de tornar os poetas pessoas queridas. Mesmo quando não concordamos com sua visão do mundo, um bom poema nos aproxima tanto de quem o faz que de alguma forma passamos a conhecê-lo(la) melhor. E para quem tem um coração sensível, conhecer é meio caminho andado para amar. Essa talvez seja uma afirmação obscura e até absurda para alguns. Paciência. Amar também é muitas vezes obscuro e absurdo. E no entanto, o que seria de nós sem o amor?


A poesia é das raras actividades humanas que, no tempo actual, tentam salvar uma certa espiritualidade. A poesia não é uma espécie de religião, mas não há poeta, crente ou descrente, que não escreva para a salvação da sua alma – quer a essa alma se chame amor, liberdade, dignidade ou beleza.

Eis por que um poema que mereça esse nome traz sempre o melhor de seu escriba.

Lamento não ter prestado esta homenagem a Sophia enquanto ela ainda estava entre nós. Não imagino por certo que fosse ser notada por ela, que já recebera tantas homenagens muito mais importantes e dignas de sua grandeza, mas é por mim mesma que digo isso. Desde o primeiro soneto que chegou a minhas mãos, Sophia se tornou um de meus poetas prediletos. Foi há muitos anos, e eu não tinha a mínima noção de quem ela era. Não descansei enquanto não descobri, porque seus poemas me tocavam de um modo especial.

Depois que ela se foi, quero tentar me redimir ao menos em parte. Acho que nada melhor do que reler alguma coisa do que nos ficou de seu legado.


Porque

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.


Ausência

Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua

Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.



Poema

A minha vida é o mar o Abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita

Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Sabendo que o real o mostrará

Não tenho explicações
Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento

A terra o sol o vento o mar
São a minha biografia e são meu rosto

Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento

E a hora da minha morte aflora lentamente
Cada dia preparada

Naquele Tempo

Sob o caramanchão de glicínia lilaz
As abelhas e eu
Tontas de perfume
Lá no alto as abelhas
Doiradas e pequenas
Não se ocupavam de mim
Iam de flor em flor
E cá em baixo eu
Sentada no banco de azulejos
Entre penumbra e luz
Flor e perfume
Tão ávida como as abelhas

2 comentários:

Isabel Metello disse...

Gostei tanto desta sua homenagem à Poesia e a Sophia de Mello Breyner, Dade, comoveu-me pela sensibilidade que denota na escolha dos poemas e na sua contextualização. Este espaço tem sido, de facto, um local simbólico de grande aprendizagem, com enunciadores tão elevados. Avé! Abraço amigo

dade amorim disse...

Sou mesmo grande admiradora da poesia de Sophia, e pelo que vejo somos duas.
Obrigada, Isabel.
Abraço.