domingo, 2 de janeiro de 2011

A face de Deus virou-se para o mundo criado e este, fitando-a, apenas pode ver mistério.

Nicolai Berdiaev (1874-1948)
Antes de tudo, há que estabelecer uma distinção basilar entre mística e magia. Estas áreas, completamente diferentes entre si, facilmente se diluem. Se a natureza da mística é espiritual, a da magia é naturalista. Se a mística é uma comunhão com Deus, a magia é comunhão com os espíritos e as forças elementares da natureza. Se o misticismo é esfera de liberdade, a magia é esfera de necessidade. A mística é isolada e contemplativa; a magia é activa e agressiva. A magia transmite ensinamentos sobre as forças ocultas da natureza humana e cósmica sem, contudo, se aprofundar com o fundamento divino do mundo. A vivência mística é uma libertação espiritual da magia do mundo natural. Vivemos agrilhoados à magia da natureza e, na maior parte das vezes, inconscientemente. A tecnologia científica possui uma natureza e origem mágicas, por detrás das quais joga a psicologia mágica das forças naturais. Por princípio, a magia distingue-se e é, inclusivamente, contrária à religião, embora dentro desta seja possível introduzir elementos mágicos. É mágico uma compreensão profunda da natureza. As energias mágicas circulam por todo o mundo. Mas o misticismo mágico - a associação da mística com a magia - é falacioso. Há dois tipos de mística falaciosa - a mística naturalista (associada à natureza) e a mística psicológica (associada à mente). Devido ao carácter circuscrito, limitado, tanto da natureza como da mente, ambos os tipos não alcançam a profundidade real da vivência mística. A verdadeira mística é espiritual. A mística autêntica supera a magia e a psicologia falaciosas. Apenas nas profundezas da vivência espritual, o homem comunica com Deus, saindo este dos limites do mundo natural e mental. Todavia, o misticismo não pode simplesmente circunscrever-se à vida espiritual pois esta é mais vasta no seu todo. O misticismo apenas pode ser denominado como o âmago e o cume da vida espiritual. Neste âmago e cume, o homem comunica com o derradeiro mistério. A mística envolve sigilo, isto é, o inefável inesgotável e profundamente insondável; contudo, também sugere a possibilidade de uma ligação viva com este mistério, habitando nele e com ele. A negação do misticismo é o reconhecimento, por parte do homem, da existência do mistério e a recusa de vivência com ele. Spencer reconhece que na base do ser há o incogniscível, isto é, um certo misticismo; todavia, sendo positivista e não um místico, o incogniscível para ele é apenas um transbordar para o negativismo. O segredo do misticismo não é incogniscível e tão pouco significa agnosticismo. A pessoa que comunica com o segredo místico da vida não se encontra numa dimensão gnoseológica - apenas liga-se ao incogniscível, ao mistério da própria vida, da experiência, da comunicação. O mistério não é nem uma categoria negativista nem um limite. O mistério é uma plenitude infindável positiva e profunda da vida. Por vezes, o mistério morre, tornando todas as coisas planas, limitadas, carecedoras de sentido de profundidade. O mistério atrai a pessoa, desvelando-lhe a possibilidade de se ambientar e de comunicar com ele. A face de Deus virou-se para o mundo criado e este, fitando-a, apenas pode ver mistério.

Nicolai Berdiaev, in Filosofia do Espírito Livre
http://www.vehi.net/berdyaev/fsduha/07.html

3 comentários:

Anónimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Kunzang Dorje disse...

"A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos lembrando.

O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.

Fita, com olhar 'sfíngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.

O rosto com que fita é Portugal."

- Fernando Pessoa

Paulo Borges disse...

Não existe senão Deus. Tudo o mais é abandono e espera. Incluindo "Deus".