domingo, 9 de janeiro de 2011

DESTINO E MORTE DAS PALAVRAS EM VERGÍLIO FERREIRA
Por, Isabel Rosete


«Mas como dizer aquilo mesmo que julgamos dizer, o que em palavras comuns enunciamos? (...) Como dizer «morte» à superfície deste vocábulo «morte»? (...) Mas o mesmo vocábulo esgotou sem esgotar toda a rede infinita que o prende. Escrevo a palavra «morte» e como admitir que nela tenha esgotado a perturbação que me toma, até porque nem sempre me toma? Escrevo a palavra «luz» e como conceber que ela ilumina toda a minha alegria para que outrém ou eu próprio a reconheça?» .
                                                                                                   Vergílio Ferreira

Quando falamos neste homem de Melo, de ar calmo e absolutamente sereno, olhando para o mundo ao mesmo tempo que olha para o interior de si mesmo, não podemos deixar de o conceber como uma excepção. No seio da literatura portuguesa assumiu a difícil e ingrata vocação de denunciar a morte da palavra, da arte do homem no pensamento contemporâneo.

Remou contra a maré como os profetas e a sua voz isolada, apesar do anúncio primeiro da morte de Deus e depois da morte do Homem, não se cansou, porém, de afirmar o valor do homem e a grandeza das suas manifestações, mas também de valorizar a dúvida, que o tornou particularmente incomodo no meio da intelectualidade portuguesa.

É neste contexto, que devemos entender a imagem a que o escritor recorreu, aquando da entrega do Prémio APE, em 1998: « Escrevi algures que numa carroça quem tem menos problemas é o cavalo. Mas precisamente por isso foi a sorte do cavalo que normalmente e no fundo o homem para si pretendeu. Alguém que tome conta de nós, alguém, alguma coisa, que tome sobre si o que é o peso do nosso excesso».

De resto, o que evocará Vergílio Ferreira que não esteja já na profunda admiração pela sua obra? A sua vida pertenceu-lhe inteira em cada livro. A sua vida (e também a sua morte) está toda, inteira, na sua obra.

Digamos que o autor escreveu uma única e grande obra que atravessa todos os seus livros, pelo que entenderemos todos os sinais que deixou em cada um deles como um lamento por um mundo que desaparecia lentamente, e por uma relação perdida entre os homens e a felicidade.

Este homem sombrio que às vezes escrevia com acentos graves de pitonisa que nos anuncia catástrofes inconcebíveis, este perscrutador de mistérios e negrumes, nunca foi capaz de aceitar pacificamente esta verdade tão simples: que só a força intrínseca da sua obra, a um tempo, fremente e sólida, o podia salvar.

Ora, aquela “inverosimilhança” que o autor de Aparição atribuiu à morte cobra, de facto, um outro sentido. Tudo na sua luz se transfigura: a voz do amigo desaparecido, os seus gestos, o rosto que nos serve de espelho de uma vida, e até os seus textos que foram a sua verdadeira vida e com ela se confundiam.

Textos sempre ligados ao sonho e à paixão que os criou, coligidos com uma espécie de solidão de ninguém, como a das estrelas. Em última análise, pensamos, é assim que muitos autores o imaginam e poucos os terão transposto para esse espaço invulnerável onde o rumor da vida e das fridas que dela supuram já não se ouvem ou não sangram, como na alma deste escritor que nos ficou «para sempre».

Vergílio Ferreira quis, menos do que se defender do que se abrigar de tudo e de si mesmo, confundir-se com a voz da solidão, que cedo o habitou com um excesso, que nem a obra toda glosando-a com uma obsessão intensa, pôs cobro. «Só» é uma pequena grande palavra que caracteriza toda a sua vida e toda a sua obra, quiçá a vida e as obras de todos os seres humanos. «Só», o mais curto dos nomes, que deu à radical vivência da condição humana, como ele a sentiu e viveu, o mesmo brasão do amor fraterno.

Sentimos em cada acto da escrita vergiliana um ostensivo culto da tristeza, qual incansável reiteração da evidência das evidências, co-essencial à nossa existência como finitude. E em torno desse «lugar-comum» ergueu uma elegia fulgurante, quiçá narcisista, ou se preferirmos, complacente música sobre a sua finitude, a sua morte e não sobre a intrínseca e anónima mortalidade, como defenderia Beckett.

Sobre toda a obra vergiliana encontramos o fantasma da própria morte do escritor, tal como Rilke o invocou. E por esta via, está naturalmente presente, suportando sobre a sua realidade da sombra, o peso e o esplendor do que chamamos mundo e vida.

Se enveredarmos por outra postura hermenêutica, talvez seja uma injustiça, encerrar a sua temática da solidão metafísica do homem, no mero círculo da subjectividade. Em termos de ficção, a Morte comparece, desde as suas primeiras palavras, como o acontecimento empírico, de espécie única, que realmente é.

Se retirarmos o fantasma da morte do nossos horizonte, não há ficção, pois toda a ficção não é senão o resultado dessa necessidade intrínseca de contornar o problema, de integrar simbolicamente a morte na realidade que ela subverte pela sua irrupção. Ora essa morte foi durante muito tempo, nos romances de Vergílio Ferreira, a morte dos próximos: do Pai e da Mãe.
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Isabel Rosete

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