quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Do empiricamente contraditório da Suma Compaixão

«Só por costume social deveremos desejar a alguém que seja feliz; às vezes por aquela piedade da fraqueza que leva a tomar crianças ao colo; só se deve desejar a alguém que se cumpra: e o cumprir-se inclui a desgraça e a sua superação.»
(«[...] fazer de sua infelicidade um motivo daquela alegria que se não quebra, daquela alegria serena que o leva a interessar-se por tudo quanto existe, a amar todos os homens apesar do que possa combater, e é mais difícil amar no combate que na paz [...]».)
Agostinha da Silva, in «Obras de Agostinho da Silva»: «Textos e ensaios filosóficos».

3 comentários:

Paulo Borges disse...

A verdadeira compaixão é sábia e viril, não emocional e piegas.

Leôncio Orégão disse...

Sim:

Eu não diria viril, para que ninguém possa preverter o espírito da palavra e fazer crer que a compaixão é menos, ou mesmo mais, feminina do que masculina. De resto, e por outro exemplo, também prefiro não dizer que a compaixão é humana, não vá alguém entender isso num sentido estritamente literal e inferir, entre outras coisas, que não há compaixão em outros animais que não os homens e as mulheres...
Mas diria que é sóbria, a verdadeira compaixão, que é séria, realista, crítica, e diria que é corajosa, na medida dessa consciente e senciente entrega de si mesmo ao sofrimento em que consiste, pois, o padecer com(o) o outro.

E o que torna a compaixão verdadeira é mesmo esse sofrimento, é a experiência mesma, junto com a alegria que também se experimenta quando o sofrer é fértil, por ter um sentido concreto e mutavelmente determinado.
Então, consoante as circunstâncias o exigem, na prática, a compaixão adquire várias formas, algumas das quais, coeteris paribus, quer dizer se deveras não se aplicassem a circunstâncias distintas, seriam contraditórias entre si.

Para além do mais, pois, a compaixão também se diz de muitas maneiras e em muitas línguas: fundamentalmente, porém, e por assim dizer, é silenciosamente que a compaixão é uma palavra reconfortante, é sem que ela se faça sentir que verdadeira compaixão se sente.
O valor da compaixão, como o da verdade, é livre, não tem necessidade: não tem necessidade das palavras, nem das ideias, nem mesmo das convicções emotivas nem do êxito das acções compassivas para que não obstante tende. A algumas acções, a alguns sentimentos, a algumas ideias e a algumas palavras é que falta, bastas vezes, verdadeira compaixão e liberdade de espírito: penso, por exemplo, nas invasões militares e nos domínios económicos e culturais que se apregoam como "salvamentos" dos povos em questão, e (não) quer dizer, na verdade, dos povos invadidos, saqueados e assassinados...

De forma que, para fazer alguma diferença, a verdadeira compaixão pode bem, e deve até, nalgumas medidas, "disfarçar-se" por sua vez, "contraditoriamente", de "dureza", e mesmo de "crueldade", ou de "indiferença", "inconsciência", "insensibilidade".
É nesse sentido que quero interpretar a obra do Nietzsche, embora ainda não esteja em condições de o comprovar academicamente. E foi nesse sentido também que transcrevi as algo mais moderadas, algo mais disfarçadas, mas muito semelhantes palavras do Agostinho da Silva.

Leôncio Orégão disse...

É que, por baixo de todas as máscaras, uma coisa, pelo menos, é certa: a compaixão a ter, a verdadeira, e o serviço a prestar, não consiste em anexar o outro nem em o acomodar, não consiste em torná-lo dependente, não consiste em domesticá-lo e, se não consiste em matá-lo, tampouco consiste em o mortificá-lo em vida, limitando-lhe as possibilidades. No que consiste é antes, seja lá isso o que for, consoante as circunstâncias, em servir ao outro as condições que lhe permitam autodeterminar-se, cumprir-se, que são as condições que melhor servem ao próprio também.
Por outras palavras, a compaixão é sábia, sim, sobretudo no que toca ao conhecimento de si mesma: sabe que é finita, que não é nunca, ainda, uma suma compaixão. Não se confunde a si mesma, enquanto vontade e amor que é, com as palavras e as ideias ou mesmo com as emoções e as acções que nalgum momento e em alguma circunstância já tenham sido compassivas. É essa sabedoria que a renova, que a mantém verdadeira, através da mudança das circunstâncias: é saber onde acaba, até onde pode ir sem deixar de ser compaixão, ou amor, e respeito.

Ora, uma coisa é certa: como amor e respeito, a compaixão termina lá onde o outro, como o próprio, desnecessita do ser servido e da própria necessidade de servir. Porque é nesses momentos que a compaixão, das duas uma: se não se torna numa palavra vã e em vãs ideias e emoções e acções, como não podemos deixar que aconteça, então só lhe resta tornar-se em co-alegria e co-actividade, co-criação. Nesses alegres momentos, pois, os quais vamos encontrando, graças em muito aos que tiveram compaixão antes de nós, já não se dá por o outro precisar de receber nem pelo próprio precisar de dar.
Nesses momentos a troca é gratuita, não apenas economicamente mas também emocionalmente, e tal é o valor, o ideal, aquilo para que deve servir a compaixão, esse outro que não a própria compaixão para que ela deve servir: nada mais nem menos do que o próprio gozo material e intelectual da própria diferença e da alegria de a receber e de a dar a ver.