domingo, 17 de outubro de 2010

Mulher escrevendo

Delirium. Sem meção de autor.

Escrever era só a sobra. O que restava depois que o dia ia se cumprindo e ela cumpria seu papel – a casa bem cuidada, as garotas na escola, o almoço bem temperado, a roupa limpa e guardada, não fossem os vizinhos – ou pior, o marido – chamá-la de relaxada. Tinha uma reputação a cuidar. Dias ainda havia para as compras, estantes e tanta coisa por limpar e arrumar. E sempre, sempre os eternos ciscos, migalhas nas bancadas da copa, poeira aqui e ali, a gordura no fogão. Tinha empregada, sim, mas essas empregadas cada dia fazem menos e saem mais cedo, uma lástima: todas relapsas.
E ao fim do dia, os momentos de ócio necessários para azeitar as idéias e deixar fluir certa energia semicósmica – porque em parte vinha era de dentro. Nem sabia se era mesmo energia: era mais concreto, como liberar alguma coisa física, um miniparto. E porque nada ainda estava dito, era então preciso colher palavras, limpar a terra, o sangue, a aura estranha, revirá-las sobre o teclado e plantá-las no monitor entre as outras, em sequência de alguma lógica, às vezes nem isso. Sentir e pesar seu efeito, seu tempo de validade, porque às vezes ficavam murchas, pobres, indigestas ou indigentes de sentido, caso em que nada resolviam de sua necessidade: as palavras são como as cores para o pintor. Há um efeito final a levar em conta que, esse sim, vem de dentro, e é preciso ser-lhe fiel. Então deixava passar um tempo e voltava a elas, as palavras. Assim podia ter uma idéia mais clara do que estariam fazendo ali, corrigir algum rumo sem destino como um piloto em voo. O voo era sempre meio cego.
Havia tardes e noites em que as palavras pareciam fluir tão facilmente, e ela enchia páginas e páginas seguidas, contente, realizada, achando o tempo um sonho. Mas não durava muito e a dor secreta dos dias voltava a se insinuar. A dor era sempre, não cessaria nunca e se expressava de um jeito surdo, devorando as entrelinhas. Chegava de leve, depois aumentava de intensidade e afinal causava um mal-estar que a obrigava a se curvar como quem carrega um peso maior que suas forças. Então às vezes apareciam poemas no monitor.

Sem comentários: