Senhor Presidente,
Li os motivos que invocou para desculpar--se de não estar presente, enquanto Presidente da República, no funeral de José Saramago, o único Prémio Nobel da Literatura de língua portuguesa. Estava nos Açores com a sua família, cumprindo uma promessa antiga, para mostrar-lhes a beleza insular. E adiantou que as cerimónias fúnebres envolveriam, essencialmente, amigos e conhecidos do escritor e não estranhos, como o senhor. Só que o senhor era, é, Presidente da República.
A explicação é confrangedora e diz muito sobre a forma como entende a sua função institucional. Mas diz ainda outra coisa, sobre algo mais tortuoso, que tem a ver com o carácter das pessoas e se traduz no recurso a justificações hipócritas. Que conste, os Açores não estão tão distantes de Portugal Continental como os Himalaias e nada teria impedido que, recorrendo a um avião da Força Aérea, por exemplo, o senhor tivesse interrompido a digressão familiar para estar presente no funeral de um português galardoado com o Prémio Nobel.
Não é plausível que os membros da sua família tivessem ficado irreparavelmente desamparados com a sua partida súbita do território açoriano e não compreendessem as superiores razões de Estado que determinavam a deslocação a Lisboa. Mas o pior não é isso: é o facto de o senhor considerar que o funeral do único Prémio Nobel português, exceptuando o já longínquo Egas Moniz, seria uma cerimónia que dispensaria a presença do Presidente da República e se iria restringir a uma cerimónia com amigos e conhecidos.
A sua ausência e a da segunda figura do Estado, o presidente da Assembleia da República, logo por acaso também em férias nos Açores, constituem um símbolo da nossa pequenez institucional, quando estava em causa a representação do país na última homenagem a um português que, goste-se ou não dele, era dos mais ilustres e consagrados internacionalmente. Em nenhum outro Estado europeu uma tal ligeireza, uma tal mesquinhez, seriam concebíveis.
Se ser Presidente da República serve para alguma coisa – e já parece duvidoso que sirva, além de poder dissolver o Parlamento ou enviar recados mais ou menos ínvios ao Governo em funções –, uma delas é o cumprimento do dever cerimonial de representar o Estado quando a imagem e o prestígio do país estão em causa. Isso tem de estar acima das divergências e conflitos políticos, de opinião ou de natureza pessoal.
É a capacidade de perceber e fazer essa diferença que enobrece e justifica o papel de Presidente da República – o qual, segundo a fórmula eternamente repetida, tantas vezes com requintes de hipocrisia, é o Presidente de todos os portugueses (mesmo daqueles com quem possa divergir radicalmente). Se ser Presidente da República não chega sequer para estar presente no funeral do único Prémio Nobel da Literatura de nacionalidade portuguesa, para que serve, então?
Saramago estava muito longe de ser uma figura consensual – quer no plano literário, quer sobretudo no plano político e das ideias. Pelo contrário, cultivava frequentemente, sobretudo desde a sua ‘nobelização’, uma sobranceria, uma prosápia e uma vaidade tão desmedidas que chegavam a ser patéticas e suscitavam uma compreensível aversão. O seu facciosismo ideológico, o proselitismo obsessivo de alguns dos seus livros e o papel que teve, como jornalista, durante o PREC, motivaram múltiplas razões de antagonismo, das quais pessoalmente partilho.
Mas Saramago era, apesar disso e contra isso, um imenso escritor, com uma formidável irradiação em todo o mundo e a quem devemos algumas das páginas mais admiráveis escritas em português no último século. Um romance como O Ano da Morte de Ricardo Reis é, sem sombra de dúvida, um dos maiores da literatura portuguesa de todos os tempos, um livro cuja magia ainda hoje nos deslumbra – e supera todas as reservas levantadas pela personalidade humana, política e até literária do seu autor.
Apenas os cegos incuráveis – bem mais cegos do que Saramago terá sido ideologicamente – e os medíocres mais desprezíveis se atrevem a negar estas evidências. Aliás, a intolerância política a que associamos Saramago revela-se quase inócua ao voltarmos a verificar, por ocasião da sua morte, o ódio furibundo que alguns dos seus inimigos lhe votavam, na miserável incapacidade de reconhecer a grandeza literária do escritor.
Um dos seus governos, nos tempos em foi primeiro-ministro, distinguiu--se pela vergonha inédita em democracia de ter censurado um livro de Saramago, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, impedindo-o de concorrer a um prémio internacional e invocando, para isso, a doutrina mais toscamente inquisitorial contra a liberdade de expressão e criação literária. Um subsecretário de Estado da Cultura (!), que se distinguiu pelo analfabetismo mais boçal e o fanatismo das suas crenças religiosas, foi o autor do crime. Mas quer o senhor, como chefe do Governo, quer o secretário de Estado que tutelava directamente o ridículo censor de opereta, deixaram que esse crime cultural se consumasse. Foi um sinal de que o senhor, agora Presidente da República, não estava à altura de zelar pelo património mais precioso de uma nação: a sua Cultura.
Teve agora a oportunidade de reparar simbolicamente a falta, mas não o fez. Afinal, a sua ausência do funeral de Saramago acaba por ser a confirmação – que uma mensagem de condolências não chega para disfarçar – da sua incapacidade de ultrapassar uma visão estreitamente economicista e contabilística do país.
Temeu desagradar novamente às clientelas católicas mais conservadoras que o tinham criticado pela promulgação da lei do ‘casamento gay’. Mostrou o entendimento minúsculo – como disse um comentador de direita, Abreu Amorim – que tem do seu cargo: o de «um homem minúsculo que não foi capaz de um gesto de grandeza institucional».
Sem comentários:
Enviar um comentário