segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O Homem e o Violoncelo

Um corpo pousado no colo do homem, violoncelo, espigão ligado à terra, voluta-céu, o homem precisa de um arco-alma para o tocar, para lhe ouvir a voz, a alma do violoncelo é de abeto, perfeita, perfeitamente posicionada, aguarda o movimento do corpo macio, vibração transmitida ao fundo da luz, as cordas enroladas em prata anseiam as crinas de cavalo do arco de pau-brasil adormecido, não pode tocar-lhe com os dedos, o homem, com os dedos pode apenas tocar-lhe no pescoço, a mão acaricia a voluta e cai, o corpo precisa do arco, o arco precisa da alma do homem para existir, o homem não consegue despertar o arco, que lhe pende da mão, inerte. Só, tão só, o homem agarra o violoncelo e chora, nú.


Pintura de Wayne Roberts, Austrália

4 comentários:

Anónimo disse...

"...o homem precisa de um arco-alma para tocar" Esse arco é corpo, madeira e espírito de luz. Para tocar o arco, o homem tem que esperar o silêncio para ouvir o abeto e o som do canto, entre chuvas e neve silenciosa e branca; entre água que lhe cobre o corpo-canto; o corpo movimento e dança na água. O brilho de uma folha! O abeto na floresta! o choro de Orpheu; o cavalo adormecido entre azul e azul e o infinito do corpo abraça o violencelo. Arcadas sobre arcadas, ate ao céu do peito: templo iluminado pela ausência e pela forma que a si mesma se devora e lambe a ausência. "o arco precisa da alma do homem" e deus chora a música que no ar desaparece. A saudade é uma trepadeira à volta do corpo do homem. O homem abraça o violoncelo e os cabelos de um deus de água tocam a floresta. A mão inerte esquecida de voar- Um homem é uma solidão musical e a imagem, a imagem é esse peso da matéria que o fixa ao chão. Voar é não haver separação entre o homem e o violoncelo. É ser Um. A música, o Silêncio e o Homem. O homem toca a brisa de uma escuta, dorme sob o peso do violoncelo. Mudo.

(Laura, agradeço este texto e esta imagem, que desenha o infinito do avesso, ligado à terra, a música... sem asas, despertando sopros, desatando nós...)

Isabel Santiago disse...

A solidão é a nudez e a nudez é musical. O corpo é só e a alma anima-o de uma música que vem de antes do tempo, por isso, às vezes, ele dança, outras perpetua-a em silêncio e enrolado à vibração mais primiordial. Enrolado ao novelo e ao fio do violoncelo, ao fio do tempo que fica extático, o homem nú, o homem que sente o frémito originário, ouve agora este texto e desenrola-se para fora do tempo. A solidão também pode ser uma forma do corpo tocar a eternidade. E só a eternidade nos despe de nós. Texto maravilhoso para nos lembrar e fazer sentir, para além dele, o que ele desarmanetemente expõe. É um texto absolutamente nú, como a pintura. Os dois enrolados ao fio extático do tempo...

Serafina disse...

Como posso agradecer à Maria e à Isabel as belas palavras que aqui deixam?
Parece que a alma do violoncelo despertou.
Abraço às duas,
Laura

Unknown disse...

Não há nada para agradecer...há um sorriso que "aqui" só se mostra com palavras, à autora. Agradece sempre o leitor a dádiva. Este texto foi um rasgar redentor, eu agradeço. Eu sorrio.