domingo, 28 de fevereiro de 2010

Eu não sei o que sou / Eu não sou o que sei




"Eu não sei o que sou
Eu não sou o que sei:
Uma coisa e não uma coisa:
Um ponto ínfimo e um círculo"

- Angelus Silesius, Peregrino Querubínico, I, 5.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

"O tempo é a substância de que sou feito"



(Jorge Luís Borges, 1951, por Grete Stern)

"O tempo é a substância de que sou feito. O tempo é um rio que me arrasta, mas eu sou o rio; é um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre; é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo"

- Jorge Luís Borges, "Nova Refutação do Tempo", Obras Completas, II, p.144.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Entrevista dada por Isabel Rosete ao "Diário de Aveiro"

Realrosete

“A Filosofia devia ser um dos pilares da política”

Isabel Rosete, cuja vida tem sido dedicada à Filosofia, é autora de várias obras poético-literárias, preparando-se para publicar outras três em breve

Carla Real

Com 45 anos, Isabel Rosete, de Aveiro, possui um mestrado em “Estética e Filosofia da Arte”, é doutoranda na mesma área. Professora de Filosofia, é também responsável pela publicação de várias obras poético-literárias e de cariz científico.

Porque decidiu enveredar pela área da Filosofia?
A Filosofia tornou-se uma verdadeira paixão (eterna), desde o meu 11.o ano. Tive a sorte de me ter cruzado, nessa altura, com dois professores extraordinários, que, até hoje, recordo como autênticos modelos do que é ser, de facto, professor de Filosofia: sabiam o que é a Filosofia, qual a sua real utilidade e como a ensinar, devidamente, aos adolescentes em formação pessoal e social continuada.
Mostraram-me como a Filosofia é absolutamente imprescindível na vida quotidiana, porque só fala do que é e de quem é o Homem, do seu ser e do seu estar consigo mesmo, com os outros homens, com a Natureza e com o Universo; que é essa radical e abrangente área do saber que mostra todas as coisas tal como são na sua autenticidade, rompendo os ignóbeis véus das aparências, sem preconceitos de qualquer espécie, quais cancros que minam, cada vez mais, a sociedade presente, lamentavelmente afastada das lides filosóficas.
Demonstraram-me que a Filosofia é, primeiro: a própria vida em todas as dimensões, e que, por conseguinte, viver sem ela, não é propriamente viver, mas, tão-só, sobreviver de olhos cegos e ouvidos surdos; e segundo: o maior e mais nutritivo alimento do espírito, do pensamento, a que, afinal, nós, Homens, nos reduzimos, sem esses abstraccionismos linguísticos ou conceptuais que lhe costumam atribuir.

E a Psicologia? Quando aparece?
A Psicologia surgiu por arrastamento, embora como um complemento integrante e indispensável da própria Filosofia, sempre com ela interseccionada. Esta outra paixão (também eterna e em crescendo), surgiu quando frequentava o 10.o ano. E, tal como a paixão pela Filosofia, intensificou-se profundamente enquanto cursava a licenciatura de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde tive o privilégio de ser aluna de grandes mestres, de conviver com verdadeiros professores, igualmente modelos de docência, a quem devo tudo o que sei e sou hoje.

A Isabel destaca-se pela forma peculiar como aborda a cadeira de Filosofia, muitas vezes considerada “monótona” pelos alunos. Como faz para os cativar para essas matérias?
Transmitindo-lhes o entusiasmo, plenamente vivo e sentido que, em mim, a Filosofia fez emergir, pela sua irredutível necessidade e utilidade permanente. A Filosofia, que só deve ser leccionada pelos profissionais portadores da convicção do ser filósofo e não por aqueles apanhados pelas negras malhas que regem o docente-funcionário público, “cumpridor” de programas para as estatísticas, é um bálsamo para as novas mentes em formação, e não mais uma actividade supérflua ou um conjunto de ideias abstractas reservadas a uma determinada elite.
Esse cliché de que a Filosofia é “abstracta” surgiu daqueles que subverteram a sua essência em virtude de uma leccionação “monótona”, resultante, não da Filosofia em si, mas de um mero e terrível papaguear de conhecimentos exclusivamente a partir de um manual escolar, sem criatividade de materiais e de estratégias didácticas que estimulem os alunos para o crucial acto de pensar.
O Portugal de hoje é um exemplo, “claramente visto”, da ausência desta atitude nos políticos que nos (des)governam. Esta é uma constatação convicta da real e urgente necessidade da Filosofia como um dos pilares fundamentais onde a política deve alicerçar-se.
O verdadeiro professor de Filosofia é, por essência, um pedagogo, um guia, um orientador que auxilia os alunos nos respectivos partos intelectuais, que os estimula a parir ideias que, nas suas mentes, estavam em estado de latência e que, por esta forma de amor à sabedoria, são espicaçadas e, então, brotam para o estado manifesto.

Descreva, sucintamente, as obras poético-literárias que publicou até agora.
São obras de cariz eminentemente filosófico. Aliás, devo confessar-lhe que foi justamente a Filosofia, assim sentida e vivida, que me abriu o caminho para a poesia, para a prosa poética e para a literatura. Estas sementes começaram a germinar com mais visibilidade aquando da feitura do curso de mestrado em “Estética e Filosofia da Arte” e, sobretudo, durante as investigações realizadas para a tese de Doutoramento em curso, dedicada – a partir do pensamento de Martin Heidegger – à poesia e ao canto dos poetas, perspectivado ecologicamente.
Concebe-se a poesia enquanto forma privilegiada da arte se dar (para Heidegger, e para mim também, toda arte é poesia), como a forma explícita de salvaguarda da Terra, como o grande grito universal do pensamento contra as investidas do projecto da ciência-técnica modernas que minam e corrompem a Natureza, provocando constantes desequilíbrios eco-sistemáticos. E, deste modo, como meio de alerta para a necessidade de se redimensionar e reestruturar uma outra humanidade, cujo pensamento não seja mais inconsciente e calculista, e cujas mãos não sejam mais exterminadoras.
Cada obra minha publicada em antologias poético-literárias nacionais e internacionais, exprime estas preocupações, esta minha forma de auscultar o mundo humanamente e em plena harmonia com a Natureza, onde me integro ou não, completamente, quer me refira a “Vide-Verso”, “Roda Mundo 2008”, “Poiesis” ou “Roteiro(s) da Alma”.
Nelas, pode ler-se, entre outras, “Quantos são os mistérios da escrita”, “Nas montanhas do coração” (ensaio sobre o poeta alemão Rainer Maria Rilke), “Advém o turbilhão dos sentidos”, Ouso ousar o tudo”, “Abomino o egocentrismo”…

Qual o tema dominante na sua escrita?
Movo-me por vários temas e autores, de âmbito muito diverso. Tanto escrevo sobre Heidegger, Nietzsche, Kant, Platão, Freud ou Piaget, no âmbito da Filosofia /Psicologia, ou sobre Vergílio Ferreira, Fernando Pessoa(s), Padre António Vieira, Rainer Maria Rilke ou Holderlin, nos domínios da literatura e da poesia.
Talvez por influência dos assuntos centralmente abordados por estes autores, que venho estudando ao longo de todos estes anos, escreva, com particular incidência, sobre a vida e a morte, sobre o estado actual da Humanidade e da Natureza, sobre a linguagem, o pensamento e o acto de escrever, sobre o amor, o mistério, a criatividade, a arte ou a identidade, a hipocrisia, os preconceitos e a inveja, que muito me atormentam…

Como caracteriza a sua próxima obra “Vozes do Pensamento – Uma Obra para Espíritos Críticos”, cujo lançamento está previsto para o próximo mês?
Esta obra, a primeira individual que publico em Portugal, composta por duas partes, “Interiores” e “Versões de Mundos”, exterioriza, precisamente, e como o próprio título indica, as vozes que há muito ecoam dentro do meu pensamento, que viaja, por vezes, hiperbolicamente, por todos os lugares, nessa eterna busca pela verdade e pela sabedoria, pelas essências das coisas que, amiúde, se nos ocultam. Talvez esteja a fazer Filosofia através da poesia, como sugerem alguns dos meus leitores.
São pensamentos dispersos, vividos e por viver, projectados, sonhados ou recordados, sobre temas que o meu pensamento foi ditando e as minhas mãos escreveram.
Trata-se de um desabafo da minha alma e do meu corpo sobre mim mesma, e sobre o mundo, tal como ele é e se me apresenta em todas as suas dimensões que, quiçá, corresponde a muitos desabafos da grande generalidade dos seres humanos.
É um livro intimista, onde podem ler-me, integralmente, na mais pura transparência do meu (vosso!?) ser e existir, pensar e sentir. Também altruísta, onde os actos ignóbeis dos homens são condenados, dos pontos de vista ético, social e político, e os seus nobre feitos celebrados.
Nada mais vou adiantar sobre este livro, para que os meus eventuais leitores (espero que sejam muitos), adolescentes, jovens e adultos, descubram, por si próprios, o espírito que o percorre e, quiçá, nele se vejam ou revejam, como num espelho, e se redescubram, sem narcisismo.
Estas “Vozes” ainda não se silenciaram. Far-se-ão ouvir, ainda mais alargadamente, nos meus próximos três livros, já no prelo: “Entre-Corpos”, “Fluxos da Memória” e “Mundos do Ser e do Não-Ser”.

LEGENDA DR: “Lamentavelmente, a sociedade actual está afastada das lides filosóficas”

FIM

Cultura ENTRE Culturas: uma revista diferenTre (a sair em final de Março)




Matriz

A revista Cultura ENTRE Culturas assume-se como matriz dialogal enTre experiências e razões, culturas e saberes, religiões e espiritualidades, tradições e civilizações, bem como enTre elas e o indizível que as possibilita e transcende.
O nome exprime a vocação de suscitar ou desvendar pontes, elos e armilas enTre domínios ilusoriamente distintos e afinal intimamente ligados, convertendo fronteiras em pontos de passagem, termos em mediações, limites em limiares.

Cultura ENTRE Culturas, lugar do não-lugar, vislumbra-se um ponto de equilíbrio/desequilíbrio entre os modos oriental e ocidental de percepção e vivência do real: algo enTre a diversidade evolutiva ocidental e a instantaneidade intuitiva oriental que a uma e outra reúna no trânsito para além/aquém de ambas. Lugar insituável do inter-valo entre isto e aquilo, nele tempo-eternidade, espaço-vacuidade, palavra-silêncio, discurso-percurso respiram e singram de mãos aliadas.

Estruturada sistemicamente, tal clareira de reflexão holónica e integral, a revista é um organismo vivo que evoluirá plasmando o que da realidade em cada momento se desvela e re-vela, pois a verdade se dita pelo olhar sobre ela lançado.
Cultura ENTRE Culturas terá periodicidade semestral e alternará entre ser predominantemente dedicada a temas e autores. Incluirá cada número estudos e ensaios sobre espiritualidade, filosofia, arte, literatura e ciência, prezando-se a publicação de autores nacionais e estrangeiros, bem como de inéditos. Haverá ainda um ou mais cadernos onde conviverão poesia e fotografia, porventura as linguagens de mais despojada e depurada apreensão, vivência e transfiguração do real. Não se trata de poesia + fotografia, mas antes de entender tais linguagens como duas possíveis asas da "theoria" e da "pragmática" do real, qual o vemos e recriamos, rasgando os limites de cada domínio de linguagem para o ilimitado que lhe subjaz.

O real não tem linguagem e nesse sentido nem real é. Somos nós que o lemos/criamos através da diversidade de modos e códigos por que a linguagem o/se configura. Nisso o/se faz presente-ausente nesse algo indizível que nos visita tanto quanto se nos furta. É enTre essa presença e ausência, no hífen que une-cinde presença-ausência, que Cultura ENTRE Culturas habita: terra de todo o mundo-ninguém, sempre virginal e fértil matriz onde entrelaçado tudo germina, floresce e frutifica e aonde tudo entrançado regressa e repousa: indivíduos, povos e nações, cultos, culturas e civilizações, saberes, artes e espiritualidades.

Propósitos

Cultura ENTRE Culturas elege-se pelos seguintes propósitos:

1. Contribuir para o desenvolvimento de uma consciência-experiência integrais, multidimensionais, inter e trans-disciplinares do real e do que possa haver além-aquém do que como tal se designa, enriquecendo criativamente a vida e a existência mediante a compreensiva realização das suas supremas possibilidades.

2. Explorar antigas e novas possibilidades espirituais, mentais, éticas, artísticas, científicas, educativas, ecológicas, comunicacionais, sociais, políticas e económicas, alternativas à crise e declínio do paradigma civilizacional ainda dominante e que obedeçam ao soberano critério do melhor possível para todos os seres sencientes, humanos e não-humanos.

3. Promover o conhecimento e diálogo entre culturas, civilizações, religiões e espiritualidades, bem como entre estas, o ateísmo e o agnosticismo, no espírito da mais ampla imparcialidade e universalismo.

4. Contribuir para a harmonia e a não-violência na relação do homem consigo, com a natureza e com todos os seres sencientes, ou seja, capazes de sentir dor, prazer e emoções.

5. Despertar e orientar para estes fins a cultura e a sociedade portuguesas, bem como a comunidade lusófona, valorizando e promovendo as tendências nelas latentes que mais apontem neste sentido.

Reclamando-se desse sempre insituável enTre cada coisa e cada outra, enTre cada coisa e tudo/nada, este projecto vislumbra essa terra de todo-o-mundo-ninguém que é a pátria dos anjos do real, evocada por Sophia de Mello Breyner – a pátria daqueles que, nada almejando para si, passam pela vida dando o que a si mesmos ultrapassa e não pertence.

EnTre os muitos anjos do real planetários estão, insuflando as velas da nossa cultura, homens como Luís de Camões, Padre António Vieira, Antero de Quental, Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra, Fernando Pessoa, Almada Negreiros, José Marinho, Agostinho da Silva e Vergílio Ferreira, decenário de Anjos do Real em vida, respiração e dádiva tão diversas quanto unas. Eles nos inspiram e movem, enTre tantos outros.

EnTre a lusofonia, que em abertura ao universo nos congrega, e a luso-fania que a cada um e todos pode libertar, se faz a viagem do presente projecto. Porque não nasceu de si, também em si se não esgota. Parcerias poderão acontecer, tornando mais fértil e diversa a disseminação do paradigma que aqui germina.

Um paradigma Armilar, como a Esfera que se entrelaça e tremula numa das muitas bandeiras do mundo, simbolizando todas e nenhuma.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

"...português, na sua plena forma brasileira"

"Claro que sou cristão; e outra coisas, por exemplo budista, o que é, para tantos, ser ateísta; ou, outro exemplo, pagão. O que, tudo junto, dá português, na sua plena forma brasileira"

- Agostinho da Silva, Pensamento à Solta, in Textos e Ensaios Filosóficos II, p. 175.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

neste quarto alugado sinto a pulsação dos prédios, o crescer dos muros para o ceú, as borboletas que não aguentam a distância de um anão. e caem sobre a terra como limões secos e vazios. eu olho e penso que nada existe para lá do chão, que água e fogo são alucinações. são deuses mascarados. ou até mesmo resíduos de paixões. ou pode ser tudo isso numa só jarra que mais tarde beberemos. santa é a minha vontade de renunciar o mundo. de me ferrar enquanto escrevo.

lembro: eu era uma casa assombrada. nela não havia nada. nem pó nem flores nem esqueletos nem nada. talhei nas paredes a minha psicobiografia e vi a extensão do meu grito. escadas que desciam e não se subia, roupas de inverno a esperar que venham corpos. e tomara à minha cabeça ser uma tocha iluminada para entender essas roupas de inverno. como um incrédulo renasci. fundei a minha habitação, os meus monges, as minhas coisas belas e profanas.

nasci num quarto às escuras igual ao interior de um fruto. a minha mãe tinha um ventre bem arquitectado, poderoso como uma transparência e nele percorri cidades inteiras, provei leguminosas e sismei com verdes andorinhas. quando crescer evitarei remédios para a calma, lerei poemas e pronto: um riacho progride na dor da minha encosta, e eis-me: absoluto, tal boi puxando a paisagem para dentro da moldura.

A Recepção do Budismo na Cultura Europeia Oitocentista



- Paul-Élie Ranson, "Christ et le Bouddha" (c.1880)


No próximo dia 25 de Fevereiro, pelas 17h, Rui Lopo, investigador do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, dará uma prelecção subordinada ao tema: "A Recepção do Budismo na Cultura Europeia Oitocentista" (Anf.IV, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa)

Paul-Élie Ranson, "Christ et le Bouddha" (c.1880)

O Homem e o Violoncelo

Um corpo pousado no colo do homem, violoncelo, espigão ligado à terra, voluta-céu, o homem precisa de um arco-alma para o tocar, para lhe ouvir a voz, a alma do violoncelo é de abeto, perfeita, perfeitamente posicionada, aguarda o movimento do corpo macio, vibração transmitida ao fundo da luz, as cordas enroladas em prata anseiam as crinas de cavalo do arco de pau-brasil adormecido, não pode tocar-lhe com os dedos, o homem, com os dedos pode apenas tocar-lhe no pescoço, a mão acaricia a voluta e cai, o corpo precisa do arco, o arco precisa da alma do homem para existir, o homem não consegue despertar o arco, que lhe pende da mão, inerte. Só, tão só, o homem agarra o violoncelo e chora, nú.


Pintura de Wayne Roberts, Austrália

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Hiroshima Meu Amor


"Tu n'as rien vu a Hiroshima!"

Este é um dos melhores filmes de sempre. Com um argumento fabuloso de Marguerite Duras, envolve o espectador num clima de nostalgia e de exploração da intimidade da personagem feminina, interpretada por Emmanuelle Riva que acaba por ser um mergulho de chofre nas contradições da alma humana.
Um factor que nos induz à estranheza é o facto das personagens não revelarem o seu nome, acabando por assumir, no fim do filme, o nome das suas cidades natais. Cidades muito afastadas no tempo e no espaço, mas onde cada um dos dois amantes foi vítima dum cataclismo avassalador: ele (interpretado por Eiji Okada) quando regressou da guerra encontrou Hiroshima destruída pela primeira bomba nuclear usada na História numa situação real, uma cidade pulverizada que sepultou toda a sua família. Ela, natural da cidade de Nevers, viveu aí, aos 18 anos, um romance com um soldado alemão que morreu nos seus braços, vítima dum tiro oportunista no dia em que a cidade estava a ser libertada pelos aliados. A festa da libertação veio descobrir a condição trágica dos amantes que em tempo de guerra preferiram o amor ao ódio e acreditaram num mundo onde a paz poderia ser possível, para além das dilacerações políticas, étnicas, históricas, dum mundo em convulsão que nunca mais voltaria a ser o mesmo.
Morto o seu amante, a jovem cai nas mãos duma população sedenta de vingança que encontra nas mulheres que dormiram com o inimigo um bode expiatório mesmo à mão de semear.
E dá-se a queda na loucura, a reclusão numa cave imunda, até que a razão pudesse emergir de novo e, com ela, o regresso da rapariga à vida. Depois, a fuga para Paris para se refugiar no esquecimento da sua identidade esmagada pelo amor, pelo ódio, pela morte. Chega a Paris no dia em que Hiroshima é devastada pelo terror nuclear. Apesar disso a destruição de Hiroshima é vivida à distância como uma promessa de Paz, como o fim da guerra e a possibilidade dum recomeço.
A grande intensidade do filme resulta em parte do facto da acção se passar num período muito curto, de cerca de 24 horas, o que nos aproxima da tragédia clássica. Dois desconhecidos encontram-se e vivem uma relação intensíssima, condenada à efemeridade, porque ambos são casados e não querem, ou não podem, romper com as suas vidas. No fundo é como se situassem no começo do mundo, ao ponto de se assumirem como personagens de um drama universal, ele reconhece-se no soldado alemão morto, ela assume-os como o mesmo Amante, o Amante Eterno, para quem não há nascimento nem morte, ou, dito de outra forma, em função do qual os nascimentos e as mortes se sucedem como vagas insubmissas do Esquecimento. Porque a memória, mesmo a mais funda e excelsa reminiscência, é sempre uma traição, um querer mais que bem querer.
E no centro de tudo, Hiroshima. Reduzida à ubiquidade, presente em ausência e impossibilidade de redenção, nas margens do Loire, onde a luz é mais doce, porque pertence à infância e à adolescência da mulher abissal, a mulher impossuível que, em 24 horas transborda as margens do rio Ota, cujo caudal de posterioridade se junta ao caudal do Loire da anterioridade impreterível ,para submergir o mundo.
E o espectador não sai imune deste filme porque é as suas vísceras que Marguerite Duras expõe num dos textos mais duros e mais belos que o cinema conheceu até hoje. E no fim deste exercício de esplancnomancia ou nos descobrimos vivos nos interstícios da morte, da separação e da memória, ou nos desconhecemos mortos e a vida continua como sempre. Seja como for o nosso nome não é auto-referencial, é sempre um indício de estranhamento.
Poucos filmes nos colocam nessa situação.
Embora alguns tenham revisitado a ambiência escatológica (reveladora) de Hiroshima, ficaram-lhe sempre na periferia, como nas duas obras de Richard Linklater Before Sunset (2004) e Before Sunrise (1995), nas quais uma dupla de actores, Ethan Hawke e Julie Delpy, procura reencarnar o par dramático de Hiroshima, meu amor, mas um história eterna só se (re)vive/encena uma vez. Mas Before Sunrise vale bem por si. O que já não é mau.
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(Para ver todo o filme basta ir clicando nas partes seguintes).


Emudecimento e acção




"O meu conceito de um estilo e de uma escrita sóbrios e ao mesmo tempo altamente políticos é o seguinte: conduzir até aquilo que é negado à palavra; somente onde essa esfera do averbal se abrir numa potência indizivelmente pura, poderá a centelha mágica passar da palavra à acção movente, onde a unidade das duas for igualmente efectiva. Somente o intenso direccionamento das palavras para o interior do núcleo do mais íntimo emudecimento alcança o verdadeiro efeito"

- Walter Benjamin, Briefe, I, p.127.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Reflexão e multimédia: em busca de um outro modo de Pensar

Por reflexão e, consequentemente, por capacidade ou raciocínio reflexivo, entende-se «a volta atenta do pensamento consciente sobre si próprio que, tanto sob um ponto de vista psicológico como ontológico constitui a sua principal manifestação» .
Compreendida num sentido puramente psicológico, a reflexão consiste no abandono da atenção ao conteúdo intencional dos actos para se voltar sobre os próprios actos. De acordo com esta perspectiva, a reflexão apresenta-se como uma espécie da direcção natural dos actos, criando-se, deste modo as condições necessárias para a reversão completa da consciência e a consecução da consciência de si mesmo.
Extrapolando-se, a este nível, as fronteiras estritas da Psicologia, ligamo-nos a uma compreensão de pendor gnoseológico, por nos permitir, embora sempre em conjugação com a perspectiva psicológica, uma análise mais completa das questões concernentes aos actos propriamente reflexivos.
Uma vez que o predomínio da visão e da linguagem da imagem têm proporcionado o desenvolvimento substancial da intuição empírica em função de um certo detrimento da intuição racional, torna-se notório que a capacidade reflexiva das novas gerações é cada vez mais diminuta: a esfera do imediato e do instantâneo têm vindo a substituir o domínio de um pensar autêntico, por atrofiar, em certa medida, essa capacidade essencial da mente humana de penetrar no interior das coisas e de captar a sua essencialidade, de perscrutar o sentido mais profundo das múltiplas significações que o universo ontológico, linguístico e conceptual nos oferece a cada momento.
Talvez encontremos, por intermédio de uma análise conjugada destes três conceitos em análise, a explicação que nos permita compreender porque é que os alunos de hoje não são mais capazes de interpretar (tendo presente o sentido genuinamente hermenêutico que atribuímos a este termo) um simples artigo de jornal sobre um qualquer tema comum, embora apreendam, de imediato, o desenrolar da história de um banda desenhada ou as funcionalidades de um jogo de computador; porque são incapazes de interpretar um dos textos mais “elementares” da literatura contemporânea, embora descodifiquem facilmente um “slogan” publicitário.
A imediatez que esta civilização multimédia tem feito despoletar, a um ritmo verdadeiramente frenético, coarcta a emergência efectiva da capacidade de abstracção que permite chegar ao conceito, aos domínios do universal e do essencial, em prol do instantâneo e do superficial.
Urge a edificação da consciência de que a imagem, o “slogan” publicitário, a banda desenhada, o cinema, o vídeo, o jogo de computador… também são texto e, como tal, devem ser sempre sujeitos a um rigoroso exercício hermenêutico, resultante de um determinado tipo de aprendizagem no âmbito das regras do saber-ler, que a escola e o professor devem promover a cada momento.
Em virtude da instalação definitiva da cultura visual, a linguagem oral e escrita é secundarizada por um outro tipo de linguagem que a imagem eficazmente produz: a icónica. Esta requer, naturalmente, um outro tipo de aprendizagem ao nível dos processos mentais e dos conteúdos que a imagem por si mesma encerra, a qual deve ser dialecticamente articulada com a aprendizagem da linguagem oral e escrita, igualmente considerada no domínio dos processos mentais e dos conteúdos nela imbricados. Esta é a realidade mais evidente do quotidiano escolar perante a qual a educação jamais se poderá alhear.

Isabel Rosete

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Renascimento do Jornal Milénio com amplo destaque dado ao Manifesto Refundar Portugal / Movimento Outro Portugal



O Jornal Holístico Milénio renasceu no dia 14 de Fevereiro com uma forma mais actualizada e apelativa. Convido-vos a visitarem-no em http://jornalmilenio.com e a deixarem a vossa opinião. Todos são convidados para deixarem os seus artigos ou reencaminharem noticias que considerem relevantes com vista a uma maior consciência colectiva.

Luís Resina

......

Agradeço ao Luís Resina o amplo destaque que dá no Jornal Milénio ao Manifesto Refundar Portugal / Movimento Outro Portugal.

Português, Língua Oficial da Guiné Equatorial

A Guiné-Equatorial é um país da África Ocidental, dividido em três territórios descontínuos: um continental e os restantes insulares. A norte, no Golfo da Guiné, a ilha de Bioko é o território mais importante e alberga a capital do país, Malabo.

O país vizinho mais próximo é os Camarões, a nordeste, seguindo-se a Nigéria, a noroeste, Mbini, a sueste, e São Tomé e Príncipe, a sudoeste. O segundo território é a parte continental do país, Mbini, encravado entre os Camarões, a norte, o Gabão, a leste e sul, e o Golfo da Guiné, a oeste. Partes deste território estão mais próximas de São Tomé e Príncipe do que de Bioko.

Finalmente, a sudoeste, a pequena ilha de Pagalu completa o país, tendo como vizinhos mais próximos São Tomé e Príncipe, a nordeste, e o Gabão a leste.

O presidente da Guiné-Equatorial, Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, decretou que o português seria uma das línguas oficiais, ao lado do espanhol e do francês, condição prévia para poder entrar na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).

O país deseja ainda o apoio dos oito países membros (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste) para difundir o ensino da língua portuguesa no país, para formação profissional e acolhimento dos seus estudantes pelos países da comunidade lusófona.

http://www.observatoriolp.com/
http://groups.google.com/group/observatorio-lp/web/portugus-lngua-oficial-da-guin-equatorial?hl=pt-PT.

in, dialogos_lusofonos@yahoogrupos.com.br

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

"O diabo é idêntico à língua" ou o pensamento nómada de Vilém Flusser




"A língua materna forma todos os nossos pensamentos e fornece todos os nossos conceitos. É ela a responsável pela nossa cosmovisão e pelo valorizar que sobre ela fundamentamos. Em outras palavras: a língua materna é a fonte do nosso senso da realidade. Com efeito: amor pela língua materna é sinónimo do senso da realidade. Mas de que realidade se trata? De uma realidade relativa. A pluralidade das línguas o prova. Toda língua produz e ordena uma realidade diferente. Se abandonamos o terreno da nossa língua materna, se começamos a traduzir, o nosso senso da realidade começa a diluir-se. [...] O diabo é idêntico à língua. A língua é aquele tecido de maia que se estabelece como véu na superfície da intemporalidade. A realidade ou as realidades que a língua cria é justamente aquilo que temos chamado, até agora, de "mundo sensível". Passaremos, doravante, a chamá-lo de "mundo articulável". E rectificaremos, igualmente, a nossa definição operante do diabo. Temos dito que ele é o tempo. Agora podemos precisar melhor esse termo "tempo". "Tempo" é o aspecto discursivo da língua. E definiremos o diabo como "língua". O amor pela língua materna é a sublimação mais alta da luxúria, porque é a luxúria elevada até ao nível da realidade do diabo"

- Vilém Flusser, História do Diabo, São Paulo, Annablume, 2006, pp.91-92.

Realizar-se-á um Colóquio Internacional sobre Vilém Flusser, em 3 e 4 de Maio, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, organizado por Paulo Borges e Dirk Hennrich. Flusser é um originalíssimo pensador checo que escreveu algumas das suas obras maiores em português do Brasil. O presente trecho está vertido em português de Portugal, não castrado pelo acordo ortográfico.

A nova revista ENTRE publicará um estimulante inédito deste pensador genial.

A espiritualidade no Oriente cristão



Centro Nacional de Cultura
18 de Fevereiro de 2010 - 18h30

ENTRADA LIVRE

Para além do diálogo ecuménico a nível do dogma e das instituições, cujo desenlace de resto tarda sobremaneira..., o importante é o conhecimento recíproco entre os vários membros do mesmo Corpo crístico, susceptível de proporcionar o enriquecimento mútuo e a comunhão profunda.

Uma das “revelações” do cristianismo oriental aos olhos dos ocidentais, sejam eles católicos ou protestantes, é a sua dimensão espiritual e mística. Os povos ocidentais no seu conjunto sentem a falta dessa dimensão nas suas igrejas e culturas. Daí o tão badalado sucesso do “mercado das espiritualidades e religiões exóticas”. Mas os crentes cristãos do Ocidente hodierno olham antes para os seus irmãos na fé integrados em igrejas e tradições orientais, mais próximas porventura das origens do cristianismo.

Como é que vivem e interiorizam a sua fé? Quais são os ritos, as instituições e as doutrinas que abrem os seus corações à espiritualidade e transcendência de que tanto carecem as nossas sociedades modernas? Em que medida esse caminho nos aproxima da essência da mensagem evangélica?

Adel Sidarus (Évora)

continente perdido

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Verdade convencional e verdade última

"O homem comum tem por última a verdade convencional, enquanto o sábio tem por convencional a verdade última"

- Bodhidharma

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Antepassados oradores



Na serra perdem-se os caminhos
saltam-se muros
pelas pedras avança o rio
que é o céu correndo destinos

por entre musgos e minérios
as árvores são outonos
no coração o tesouro
de falos em flor os patronos

no templo, forno, gruta, anta
se alquimizam rostos sem rasto
a escuta dá-lhes o negro e o abrigo
e no denso nocturno cada gesto é oração
e do fundo onde é fundo irradia o Abismo.


Convento dos Capuchos, ao Entardecer

domingo, 7 de fevereiro de 2010

IDENTIDADE

Assumir, convictamente, a Identidade…! Seguramente o maior esforço de todo o ser humano sobrevivente neste Mundo de falsas identidades ou de identidades camufladas, fundeadas no espaço camaleónico das diferenças não aceites, da imposição de um padrão comum de rótulos pré-determinados, do estereotipado, onde não lugar para o ser-si-mesmo, nesta sociedade do “parecer-ser”, em nome de um tal “bem-estar” comum que, na generalidade, não passa de uma mera utopia demagógica.

Vigora, por entre os espíritos dis-persos, a mais deslavada hipocrisia anulativa das dissemelhanças, da diversidade, que faz a singela Beleza intrínseca à essência do Universo físico e humano, a que não pertencemos mais.

Adulterámos as Leis da Natureza. Instaurámos o caos cósmico. A isso, chamamos progresso! Mas, que progresso? O da rarefação da camada de Ozono? O do efeito de estufa ou do degelo dos oceanos? O do des-equilíbrio dos ecossistemas? O da miséria das crianças sub-nutridas? O dos Povos famintos? O da infelicidade dos Homens que clamam o Paraíso perdido?

O “progresso” da irracionalidade, das mentes inconscientes, dos pensamentos corroídos pelo ódio, instaurou-se, definitivamente, no seio desta massa humana, indefesa, des-norteada, que hoje somos.

Coitados dos homens! Tão potentes e tão frágeis, ao mesmo tempo! Meras peças soltas do grande puzzle, do puzzle universal, onde já não se encaixam mais.
Somos mero pó, cinzas dispersas, em incandescência dissonante. Brilho(s) opaco(s) dos restos do lixo cósmico, em degeneração total.

Corremos pelos leitos de todos os rios, que, no mar, não deságuam mais. Perdemo-nos de nós mesmos! Não nos encontramos mais! Rodopiamos num círculo imperfeito de esferas des-encontradas, de espaços sem intersecção, indefinidos, incertos, indeterminados, mas, ao mesmo tempo, “extra-ordinários”, libidinais, irascíveis e concupiscentes.

Erramos, navegamos… pelos espaços infindos da imaginação. Buscamos o Infinito, o Eterno, o Imutável. Projectamos um futuro outro, apenas existente no mundo ficcional de todos os nossos sonhos: do “princípio da realidade” se afastam, para erguerem, sempre, o “princípio do prazer”.

Velejamos por todos os mares. Pairamos por todos os espaços siderais. Percorremos todos os caminhos da Floresta, sempre paralelos, sempre descontínuos. A escolha não é mais possível!

Esmagamos um Ego desesperado, descentrado de si mesmo, tão narcísico quanto paradoxal. E, no entanto, ainda somos aves de rapina, predadores universais, dominadores de todas as possíveis presas, dissimulados num habitat, que já não é mais natural.
Percorremos todos os atalhos e edificamos uma nova ordem: a da caoticidade global. E, no entanto, ainda somos apelidados de “animais racionais”!
Que racionalidade é essa, criadora de um tempo de infortúnio? Que racionalidade é essa, geradora de todas as misérias? Que racionalidade é esta re-veladora da massa indigente das gentes vagueantes, bicéfalas, sem Identidade?

Isabel Rosete

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Emoções em pé de guerra

A norte que aí vem granada!!
Que sorte ser soldado raso.
Em guerra o instinto é alimento,
E a vida converte-se ao acaso.

A arma que se leva ao peito,
No ataque/defesa de existir,
Pesa mais na consciência,
A pátria que é servir.

Guerreiro sou-o continuamente.
De minha guerra sou responsável,
O homem que matei era provável,
Serem gritos na minha mente.

Não há guerra para lá de nós.
A guerra interior alheia-se exterior,
Se por dentro sofrendo oiço essa voz,
Por fora certeiro, o tiro no usurpador.

Diogo Correia

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Aviso (poema de Sylvia Beirute)

















AVISO

se tiver sintomas de poema, aguente,
não resgate o orgulho, guarde, quando falar
com os outros, uma distância
de, pelo menos, um metro,
fique em casa, não vá trabalhar, esqueça
rotinas graves, monólogos de rupturas,
a periferia de uma lição integral de intimidade,
não consulte o oráculo, des-
frequente-se a si mesmo, não vá à escola, evite
locais muito populosos e com densidades intrínsecas,
evite cumprimentar com abraços,
beijos, apertos de mão.
se tiver sintomas de poema, apenas informe
o silêncio, que ele saberá o que fazer:
esperará que o poema levante a cabeça
e o decapitará. sem uma palavra.

inédito
A morte assoma
Sem aviso,
Sem nada!
Apenas dói!
E como dói até os interstícios da Alma,
Abandonada,
Lançada aos grilhões do corpo
Violada pelas suas ardilosas artimanhas,
Em labirinto,
Sem saída possível…

Mais vale a morte!
Que a Morte venha,
Sem escrúpulos,
Mesmo que à Morte não se perdoe!

Tirando-nos a Vida
Lança-nos nos redutos
Do pó e da miséria
A que, afinal, nos reduzimos!

Vida para além da Morte?
Não sei! Não sei mesmo!
Não insistam mais!
Já disse: NÃO SEI!

E Vós, sabeis?
Claro que não!
Ainda ninguém foi e veio
Do reino dos mortos para no reino dos vivos
Para tais pressuposições tecer...

Nem mesmo Orfeu
Que avista, ao longe,
A tênue e esfumada sombra
Da sua amada,
Para sempre perdia,
Por um simples olhar para trás!

As fronteiras da Vida e da Morte
Não se distinguem mais!
Não se iludam!

Isabel Rosete

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

- Por que levas o livro debaixo do braço, ó pastor se, pelo que dizem, nem sequer sabes ler nem escrever?

- Se assim for, porque levas tu, ó homem,  essa mulher pelo braço se, pelo que dizem, não sabes amar?

Dinâmica do saber




Imagem Daniel Garber.



A ciência, a filosofia e qualquer outro ramo de saber demoram anos e décadas para conseguir avançar em suas conquistas. Nem sempre se percebe de início o lado útil e pragmático de uma descoberta. Um pesquisador e um estudioso têm que ser antes de tudo pessoas pacientes, de uma persistência acima da média. Há dados intermediários, dos quais dependem outros e outros. Há dados enganosos, que fazem perder tempo ou invalidam conquistas anteriores. A vocação da pesquisa é árdua e exige dedicação integral.

Dedicação no entanto subentende outros aspectos dessa maratona. É preciso antes de tudo que haja motivos de ordem subjetiva bastante fortes, que haja prazer no que se faz. Não é novidade. Em qualquer área de atividade humana, a busca da perfeição envolve satisfação e bem-estar que justifiquem infindáveis horas de trabalho e até, como no caso dos Curie - ou do Aleijadinho, em outra área - sacrifícios físicos que no entanto não os impediram de trabalhar sem esmorecimento.  Esses motivos constituem o próprio impulso, a razão de alguém se lançar pelo caminho das pedras rumo a um resultado.

Explicar esse impulso é tarefa temerária. Freud o atribui à busca de satisfazer pulsões que, de outro modo, poderiam responder por comportamentos desastrosos do ponto de vista social. Dá a esse fenômeno o nome de sublimação, às vezes interpretado como a procura da perfeição ou do sublime no sentido do belo. Na verdade, hoje se acredita que o processo não envolve necessariamente essa intenção, mas apenas dá uma utilização digamos produtiva à satisfação das pulsões inconscientes.

Gaston Bachelard vê, na origem do interesse pela pesquisa e investigação científicas, a imaginação, o sonho, o devaneio. A visão dele tem a ver com a primitiva explicação de Freud, embora a localize em sua própria área de trabalho, sem fixar sua origem e sem a generalização feita pelo pai da psicanálise. Para Bachelard, isso se explica porque toda hipótese responsável por uma pesquisa está enraizada no processo criativo e livre pelo qual se imagina ou fantasia alguma coisa.

Existe até uma teoria, defendida por Jean Rancière e alguns adeptos ilustres, que explica o aprendizado como exercício do desejo do aprendiz e não como uma distribuição fragmentária do saber maior de um mestre por seus alunos, como acredita a visão tradicional da pedagogia. O livro de Rancière chama-se O mestre ignorante, onde o autor conta o episódio de um mestre que apenas orientou – não “ensinou” – os estudantes para que aprendessem outro idioma e pudessem compreender ideias que ele próprio não dominava de todo. Pensando bem, faz sentido, já que o maior obstáculo ao aprendizado é o desinteresse do aluno.  

Uma outra face da questão está em que, em qualquer disciplina, o saber ético visa sempre explicar e/ou mudar a vida das pessoas para melhor. Se não for assim, é um saber que vira a cara à realidade. Pode produzir apostilas, ensaios, monografias, livros e artigos em publicações especializadas, anais de congressos e seminários. Se ninguém no entanto precisar desses dados para melhor compreender alguma coisa que tenha cheiro de gente e seus correlatos, eles serão certamente consumidos pelo fogo frio da inutilidade que arde em milhares de estantes, bibliotecas e depósitos de papel esquecidos pelo mundo. No pior dos casos, podem mesmo servir a ideologias destruidoras e mesquinhas, como a teoria posta a serviço da inexistente superioridade genética de certas “raças” humanas.


Ao contrário do que imaginam os desavisados, o verdadeiro saber não pretende ser instrumento de poder para poucos, não é arrogante e não exclui ninguém de seus benefícios. Quanto mais se domina um ou vários assuntos, mais claro se percebe a fragilidade humana e a finitude da qual ninguém escapa. O prazer que o conhecimento propicia é íntimo, simples e irresistível. Muito parecido com uma paixão, ele aquece e faz caminhar, leva sempre a quebrar limites, estende para mais longe o horizonte e dá novas razões de viver.  Títulos e diplomas podem existir para efeito externo, podem ser úteis para a vida profissional, mas provam muito pouco. Fundamentalmente, o conhecimento é uma luz sempre acesa, a certeza de um sentido para a vida, uma garantia de não estagnação.


segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Sophia de Mello Breyner: Este é o tempo

Este é o tempo
Da selva mais obscura

Até o ar azul se tornou grades
E a luz do sol se tornou impura

Esta é a noite
Densa de chacais
Pesada de amargura

Este é o tempo em que os homens renunciam.


Sophia de Mello Breyner Andresen in Mar Novo, 1958

«SETE ANOS NO TIBET»


Um homem, Heinrich Harrer, legendário explorador, missionário no cume das mais altas montanhas que a Terra alberga, eterniza a visão mais que perfeita do Infinito, celebrando a transparência, o alvo mais puro da brancura da neve por onde o Sol espalha, limpidamente, a luminosidade dos seus raios, sem fim visível.
A luz, as nuvens, a neblina, o cinzento e, ainda, a escuridão dos espíritos alienados, mesclam-se com aquela sensibilidade divina, nua, que faz desejar a Eternidade. O aprisionamento e a alforria acompanham Harrer (Brad Pitt), assim como a necessidade da escrita, qual via privilegiada do registo memorial de todos os tempos e de todos os lugares.
A Imensidão, o Interminável, a Paz das lonjuras de uma Alma intranquila à procura da sua própria atmosfera espiritual, bem distante do vazio da fútil materialidade das mentes empobrecidas, prolonga-se por todos os espaços reais, possíveis, imaginários, virtuais... A grandeza do Mundo e a extensão ilimitada do Universo, a conquistar ad eternum, movem-se em todos os rumos e direcções, ora determinadas, ora in-distintas.
Um Olhar claro, clínico, de um azul celeste inconfundível, irrompe por entre a névoa. Um Pensamento de horizontes incomensuráveis, os Sons da Vida e da Morte, em todos os seus estados de Graça ou de (des)graça, incessantemente se erguem. A Escuta – silenciosa, atenta, profunda – dos mais ínfimos pormenores e a beleza singela e eterna das coisas-simples, sempre se manifestam na sua máxima plenitude, hoje perdida, sabe-se lá onde.
E o Amor? Tantas são as formas de Amor re-veladas nestes Sete Anos (no Tibet), símbolos, sinais, de todos os anos de todas as nossas Vidas! O Amor por si próprio, mas, não narcísico; o Amor pela Natureza, na sua diversidade magistral, onde a Identidade e a Diferença co-habitam; o Amor pela Verdade, constantemente procurada e nem sempre encontrada ou perdida; o Amor pela luta das nobres causas em que, de facto, se acredita; o Amor de um homem e de uma mulher, não mais viável, quando tais valores se erguem, imperam, multiplicam…; o Amor dos encontros e dos des-encontros de duas Culturas, tão distantes quanto próximas, entrelaçadas em choque e harmonia; o Amor pela totalidade e pela unicidade do Autêntico, onde há lugar para tudo, excepto para o que não tem, naturalmente, lugar, porque não tem sentido, porque é perverso, porque é ignóbil.
A Solidão, necessária, absolutamente necessária à meditação antecedente a toda a acção, é um marco fulcral desta meditação em andamento. O Pensar e o Fazer unem-se, incessante e umbilicalmente, de tal modo que um jamais é sem o outro. Que grande lição, para nós, homens hodiernos de meras intuições sensíveis, imediatas, irreflectidas…!
A Esperança impera ao lado do desassossego. Porém, nunca agoniza. Nem perante a maior das atrocidades, impiedades ou selvajarias, porque, afinal, a salvação ainda é possível. Aliás, é sempre possível! Rastejando, fugindo, correndo ou vagueando, é iniludível que ela está lá, algures, em parte incerta. Todavia, está lá. Este é o maior desafio. Este é o grande estímulo. Este é o motor de todas as possibilidades.
Todos os caminhos – nesta marcha que é a da própria Humidade, mesmo que concebida metaforicamente – sempre se bifurcam; todos os atalhos sempre conduzem, aos que os trilham com veemente convicção e merecida glória, às veredas autênticas da essência do humano, em devir perpétuo. E o Mundo? O Mundo, seja ele qual for – o nosso, o de todos os outros – com todos os seus vícios e virtudes, gira e avança, sem mais!
Gentes dis-persas se encontram por todos os lugares no pequeno-grande Tibet, uma das maiores Pátrias espirituais do Oriente (e, quiçá, do Ocidente). Também gentes alienadas, ex-tasiadas pelo poder que corrompe, corrói e destrói. E a Guerra, sempre a Guerra, a Intolerância, a Incompreensão, as garras do Fogo de Prometeu, na refulgência da sua destruição.
A Humanidade – a nossa humanidade ou (des)humanidade - espelha-se em toda a sua magnificência e efemeridade imutável. Similarmente, a busca incessante da Felicidade, da Identidade, da Autonomia e da Liberdade do Ser, do Estar e do Pensar, consagram «Sete Anos no Tibet» como o filme de todas as eras, como o filme de todas as idades.

Isabel Rosete
Páscoa: Morte e Re-nascimento de Cristo

Não há propriamente uma data determinada nem para o morrer, nem para o re-nascer de Cristo – essa ex-traordinária e iluminada figura que a História nos doou, como uma benção – para além das convencionadas no calendário católico/religioso.
Não obstante estarmos bem perto de comemorar o re-nascimento desde judeu amaldiçoado pela vileza dos homens e, por extensão, a Paz, a Solidariedade, a Luz, a Verdade, o Bem, o Amor, a Justiça..., não devemos esquecer que o Mundo continua a sofrer, a ser martirizado e crucificado como Cristo o foi, um dia, pela histeria colectiva das multidões enfurecidas, alucinadas pela sede do sangue, fresco e quente, de um Homem que tinha tão-só por missão salvar a Humanidade de si mesma e dos seus próprios perigos e erros
Iludir a realidade a reboque das comemorações convencionais, só porque são convenções (cada vez mais minadas pelo exacerbado consumismo que nos esgota as bolsas e a alma) não faz, jamais, a Humanidade crescer, pensar ou reflectir sobre esse sofrimento, físico e psíquico, de que ela mesma é vitima, a partir das suas próprias mãos maculadas, amiúde, pelo sangue jorrado das Almas e dos corpos inocentes.
Enquanto uns estão à mesa a confraternizar com as suas famílias (mesmo que sobre as franjas da hipocrisia, todos o sabemos!), em serenidade e alegria, deliciando-se com o mais requintado dos manjares, especialmente organizado para a Páscoa celebrar (mas que Páscoa!? Mas que celebração!?), outros morrem de subnutrição, aí mesmo ao nosso lado, espalhados por esse mundo imenso, sem dó, são vítimas de balas perdidas, da má fé, das guerras infundadas e da violência gratuita.
O tormento, a amargura, dessas gentes vexadas na sua humanidade pela malvadez, pela violência, pela crueldade... não se exaure pelo simples facto de o dia de Páscoa estar quase a chegar, não se extenua durante uns escassos momentos de tréguas. Lamentavelmente, tudo permanece do mesmo modo, em alguns casos, camufladamente, noutros claramente visíveis, apenas ocultos para aqueles que, por conveniência, não querem ver.
Recuso-me, por conseguinte, a ludibriar a realidade; recuso-me a compactuar com a hipocrisia dos homens, que só se lembram que há mendicantes, crianças e velhos, moribundos e desamparados, povos em guerra…, quando a Páscoa é, oficialmente, solenizada.
A memória dos homens, seja a curto ou a longo prazo, não deve continuar minguada; a memória dos homens não deve somente ser testada, assim como a sua humanidade (ou pseudo-humanidade), quando o socialmente instituído é festejado.
Torna-se óbvio que o Espírito da Páscoa jamais se deve restringir ao dia de Domingo, pelo calendário determinado. O Espírito da Páscoa deve, ao invés, estar presente, sempre, em todas as mentes e em todos os dias das nossas vidas, tão efémeras quanto a de Cristo.
O tinir do sino, que pelas ruas e praças difunde o seu som de apelo, anunciando a chagada, a cada casa, da cruz de Cristo, nunca é capaz de eliminar ou de abafar o som da miséria humana, pelo menos para aqueles que escutam todos os ecos, para além dos ensurdecedores ruídos, que enxergam mais longe, para além das aparências, dos convénios, dos pré-conceitos, ou do chamado politicamente correcto (odeio esta expressão!).
Urge abanar as consciências, incitar as mentes à mais profunda reflexão; é imperativo fazer renascer, em todo o seu fulgor, o Espírito Crítico, por detrás de todas as máscaras, de todos os discursos vazios de conteúdo, meramente convenientes para uma escassa minoria.

Isabel Rosete

“A PAIXÃO DE CRISTO” REVISITADA


Se atentarmos nas passagens da Bíblia em que Gibson se inspirou para realizar "A Paixão de Cristo", é isso mesmo que se sente, vê, escuta e vivencia: violência, crueldade, muito sangue derramado, inocentemente.
Todos os relatos da época confirmam, sem reservas, essa atrocidade, essa des-humanidade, essa insensata histeria colectiva, movida pelo gosto da agressividade e pelo prazer do ódio.
O realizador, frisemo-lo, não enfatizou ou empolou a contextura epocal, como sustentam os espíritos menos esclarecidos. Apenas a mostrou, na sua plena autenticidade.
A humanidade é assim mesmo: bárbara, violenta, vil... Toda a História o mostra. Só que nem sempre o vemos. Nem sempre o queremos ver. Ou, simplesmente, não convém que o vejamos. É mais cómodo compactuar com o regime, mesmo que, literalmente, o abominemos.
Cristo foi tão-só mais um, entre tantos outros, mártire dessa bestialidade, insensibilidade e leviandade exacerbada dos Homens.
Cristo não convinha ao sistema instituído. Foi um revolucionário. Um verdadeiro rebelde. A sua Filosofia, obviamente contestatária. Naturalmente, teve de ser morto, como também o foi Gandhi, por razões idênticas, só para dar mais um exemplo histórico da Intolerância des-medida.
Assim é a postura de todos os regimes políticos totalitários, os de ontem, os de hoje, os de sempre! Dogmáticos, inflexíveis, intocáveis, pretensos donos da verdade absoluta, não admitem, outras verdades, outras visões do mundo, ou, apenas, uma outra ordem.
É preciso mostrar a todos os olhares dis-persos, do modo mais realista possível, o que o Mundo é na sua essência, sem pré-conceitos, sem falsos moralismos. Este Mundo – o de Cristo e o nosso – não é um mar de rosas, mas, sobretudo, uma imensidão de espinhos, camuflados por belas, cheirosas e aveludadas pétalas.
Devemos observá-lo, clara e distintamente, por detrás de todos os véus, de todas as máscaras que ludibriam as mentes ex-traviadas. Devemos pensá-lo, profundamente; analisá-lo, criticamente, com os olhos da razão, que ultrapassa a vulgaridade das opiniões comuns.
Urge não esquecer que vivemos, tal como o experienciou “O Messias”, minados pelo fingimento, pela dissimulação, pela inveja, pela violência gratuita, pela guerra, entre alguns escassos momentos de paz e de enaltecimento dos valores que efectivamente devem prevalecer no coração dos homens: a Verdade, a Honestidade, o Bem, a Solidariedade, a Tolerância, o Respeito pelas Diferenças fundamentais e pela Liberdade essencial de todos os Povos, Estados, Nações…, independentemente dos credos religiosos, das facções político-partidárias, das cores, das raças, das religiões ou das dissemelhanças culturais. Assim o consagrou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, só em tese, aceite, porque raramente cumprida pelos pretensos detentores do poder.
Urge, ainda e sempre, re-nascer, para uma Outra Idade, para um outro Mundo, onde a Racionalidade paute os pensamentos e as acções do Homens, onde o Bom-Senso impere, definitivamente, para além de todos os paradoxos ou contra-sensos.

Isabel Rosete
Impressões sobre «O Passeio de Deus»

Ao Ângelo Rodrigues,

Sou particularmente grata pela gentileza de me oferecer, tão prontamente, «O Passeio de Deus». O Dele, o seu, também o meu e, quiçá, de mais meia dúzia de criaturas incógnitas, espalhadas, perdidas… por este Mundo, nem sempre com rosto próprio.
A hipocrisia acobarda as mentes das gentes pequenas, sempre com medo de erguerem as suas vozes; o "politicamente correcto" (odeio clichés) cala o dizer aberto dos tachistas por mero compadrio.
Ângelo Rodrigues mostra-se como o arauto des-construtor desta farsa boçal, bastarda e brejeira, que é o Mundo, que naturalmente escapa, que é obviamente invisível aos olhos míopes, aos ouvidos ensurdecidos dos espíritos adormecidos pelo convencionalmente imposto, aos espíritos castrados por um dito puritanismo que, claustrofobicamente, lhes esmaga a possibilidade de uma respiração oxigenada.
Ângelo Rodrigues, no seu «Passeio de Deus» (ou com Deus), é a mais perfeita antítese desta miserável constatação de uma humanidade terrivelmente apática, incapaz de rodopiar nas franjas do seu próprio círculo, imperfeito; de uma humanidade que sobrevive na latência de uma consciência que, a si mesma, já não se conhece.
Ângelo Rodrigues pega o toiro pelos cornos, com a nobreza de todas as pegas de caras. Jamais se emaranha nas labirínticas teias da dissimulação ou do dizer demagógico. A sua Alma epifaniza-se na transparência do seu próprio pensamento astuto, redondo, sem pré-conceitos, e no seu dizer sem freios.
Todas as palavras, que para o papel em branco transporta, estão, sempre, no seu devido lugar, sem eufemismos, sem rodeios, sem intenções en-cobertas.
A Verdade des-vela-se nos seus poemas e nos seus aforismos, bem à maneira heideggeriana, por mais "absurda" ou "risível" que seja.
Há, na escrita deste homem, a mão de Diónisos, a embriaguez catártica do deus que co-habita nas entranhas Terra, que promove, apologeticamente, o instintivo, o visceral, o libidinal, na sua clareza absoluta, "para além do bem e do mal", afastando a censura tirânica do Supre-Ego, a ilusória beleza e pseudo-perfeição das formas de Apolo, que ludibriam o território dos simples mortais, bi-céfalos.
Também eu aceitei o convite de me tornar "argonauta", embarcando, sem receios, na nave que «mostrará os novos universos poéticos criados pelo autor». Assim, estou lendo «O Passeio de Deus».

Isabel Rosete

A obra: Ângelo Rodrigues, «O Passeio de Deus» (Poesia & Aforismo), Editorial Minerva, 2007

Da cultura como ilusão à cultura do despertar de todas as ilusões

Publico o início do texto para o próximo número da "Nova Águia", numa versão ainda provisória:

Da cultura como ilusão à cultura do despertar de todas as ilusões

Procurando pensar a natureza da cultura, iniciamos a reflexão com um notável parágrafo d’A Origem da Tragédia, transcrito para comodidade do leitor:

“É um fenómeno eterno: sempre a Vontade insaciável, pela ilusão que derrama sobre as coisas, encontra um meio de ligar as suas criaturas à existência e de as forçar a continuar a viver. Este deixa-se fascinar pelo prazer socrático do conhecimento e pela ilusão de poder sanar com ele a eterna chaga da existência; aquele sente-se fascinado pelo véu sedutor da beleza que a arte deixa flutuar diante dos seus olhos; outro deixa-se, por sua vez, seduzir pela consolação metafísica de que, sob o turbilhão das aparências, a vida eterna prossegue o seu curso indestrutível: para não falar das ilusões mais comuns e mais fortes ainda que a vontade é capaz de suscitar a todo o instante. Estes três graus de ilusão são, de resto, reservados às naturezas mais nobres, nas quais o peso e a miséria da existência suscitam um desgosto mais profundo, mas que podem fugir a tal desgosto escolhendo estimulantes adequados. Com tais estimulantes se constituiu tudo o que designamos por civilização: de acordo com o seu doseamento obteremos, preferencialmente, ou uma cultura socrática, ou artística ou trágica, ou melhor, se formos buscar exemplos à história, teremos então ou uma cultura alexandrina, ou helénica ou budista” [1].

Sem avaliar o rigor e justeza desta identificação histórica das formas de cultura, que nos parece problemática, em particular no que concerne a “budista”, interessa-nos fundamentalmente a ideia de que a morfogénese de todos os tipos de cultura (Kultur) obedece a “estimulantes” (Reizmitteln) que permitem iludir o desgosto (Unlust) perante “o peso e a miséria” da “eterna chaga” (ewige Wunde) de uma “existência” (Daseins) à qual os sujeitos são eterna e renovadamente ligados pela “ilusão” (Illusion) que a “Vontade insaciável” (gierige Wille) “derrama sobre as coisas” (Dinge) [2]. Os vários aspectos da cultura, dos mais elaborados e eruditos – filosofia, ciência, arte e religião – aos mais comuns que constituem toda a civilização humana, correspondem assim a vários “graus de ilusão” (Illusionsstufen) onde os homens procuram enganar-se a respeito da sua condição ou ocultá-la a si mesmos, camuflar e esquecer a ferida trágica que os constitui na cisão, na dor e na mortalidade (o verbo hinwegzutäuschen, traduzido aqui como “fugir a”, tem o sentido de enganar alguém a respeito de alguma coisa ou de ocultar alguma coisa a alguém). A cultura e a civilização surgem assim como produtos dessa “ilusão” que a insaciável vontade de viver lança continuamente sobre “as coisas” e como anestésicos desse “desgosto”, ausência de gozo ou desejo (Un-lust) que constitui a natureza paradoxal e autocontraditória da própria vontade de viver. A cultura e a civilização, em todas as suas manifestações, revelam-se assim como um sistema de estímulos, a bem dizer estupefacientes, de cuja ilusão ficam dependentes os sujeitos que neles buscam evadir-se da dor inerente a essa inconsciente e ávida vontade de viver que continuamente os propulsa na ex-istência. Uma embrionária toxicodependência mental/emocional desvela-se assim a natureza íntima da cultura e da civilização que, em busca de se evadir do “mal-estar” que a habita, pois inerente à “vida”, naturalmente segrega múltiplos paliativos, dos mais subtis e internos aos mais grosseiros e externos, socialmente aceites ou não. A droga e a embriaguez seriam inerentes ao processo cultural e civilizacional [3]. Como escreveu Freud: “A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la, não podemos dispensar as medidas paliativas. […] Existem talvez três medidas desse tipo: derivativos poderosos, que nos fazem extrair luz de nossa desgraça; satisfações substitutivas, que a diminuem; e substâncias tóxicas, que nos tornam insensíveis a ela. Algo desse tipo é indispensável” [4].
Se a influência de Schopenhauer é evidente na Origem da Tragédia, a maturação em Nietzsche de um pensamento próprio mantém-no fiel à ideia de que “vivemos num mundo de ilusão”, inerente às meras “perspectivas” interdependentes a que se reduz toda a suposta objectividade das categorias conceptuais que fizeram fortuna na tradição filosófica ocidental: número, tempo, espaço, alma, substância, indivíduos, morte, vida, sujeito, objecto, activo, passivo, causa, efeito, meio, fim. Vivemos assim “graças ao erro” [5], mas “naufragar-se-ia se se quisesse sair do mundo das perspectivas”: “abolir as grandes ilusões já completamente assimiladas destruiria a humanidade” [6]. Segundo o pensador, a “vontade de saber” filosófica e científica volta-se contra essa mesma ilusão vital que é a condição de possibilidade de todo o conhecimento, cujo “grau ínfimo” exigiu o nascimento de “um mundo irreal e erróneo: seres que acreditassem no durável, em indivíduos, etc.”. É apenas sobre o ilusório “fundamento” de um “mundo imaginário”, contrário ao “eterno escoamento”, que se pode construir qualquer “conhecimento” que seja, o qual pode discernir “o erro fundamental sobre o qual tudo repousa”, mas não o pode dissipar senão arrastando nisso a “vida”, pois “a verdade última que é a do fluxo eterno de todas as coisas não suporta ser-nos incorporada; os nossos órgãos (que servem a vida) está feitos com vista ao erro”. “Querer conhecer e querer errar são o fluxo e o refluxo” e “o homem perece” se um deles domina absolutamente. Daí o programa de “amar e favorecer a vida, por amor do conhecimento, amar e favorecer o erro e a ilusão, por amor da vida”. A “arte” deve ser posta “ao serviço da ilusão” [7] vital. Pese a reinterpretação da vontade de viver como vontade de potência, a afirmar e não negar, permanece a recriação schopenhauriana do indiano “véu de Maya” como esse engano originário inerente à vontade e a todas as suas criações [8].
A cultura nasce assim sob o signo da melancolia, como notou Aristóteles a respeito dos “homens de excepção” na filosofia, política, poesia e artes [9], o que nos reenvia ainda para Nietzsche que, como vimos, considera estarem os “graus de ilusão” mais elevados – filosofia, ciência, arte e religião – “reservados às naturezas mais nobres”, mais profundamente desgostosas com “o peso e a miséria da existência”, dos quais se buscam evadir mediante os “estimulantes” mais sofisticados [10]. Como diz Walter Benjamin, “a meditação profunda (Tiefsinn) é sobretudo própria de quem é triste” [11] e a Melancolia apresenta-se, num poema por si citado, como “mãe de sangue denso (schweren Bluts), fardo podre (faule Last) da Terra” [12], cujos termos são muito próximos da descrição nietzschiana do “peso e miséria da existência (Last und Schwere des Daseins)” [13]. O ser-aí, o ex-istir, o ser algo ou alguém numa dada situação no mundo, é melancólico – quer na exaltação, quer na depressão - e a melancólica condição de toda a cultura, que diríamos oscilar na dialéctica maníaco-depressiva entre a ânsia de levitar de todas as condições e o afundamento nessa gravidade íntima ao ex-ist-ente.
(texto em elaboração)

[1] Friedrich Nietzsche, A Origem da Tragédia, 18, tradução, apresentação e comentário de Luís Lourenço, Lisboa, Lisboa Editora, 2004, p.152.
[2] Friedrich Nietzsche, Die Gebürt der Tragödie, 18, Werke, I, edição de Karl Schlechta, München, Carl Hanser Verlag, 1966, p.99.
[3] Cf. Ernst Jünger, Drogas, Embriaguez e Outros Temas, tradução de Margarida Homem de Sousa, revisão de Rafael Gomes Filipe e Roberto de Moraes, Lisboa, Relógio d’Água, 2001.
[4] Sigmund Freud, Das Unbehagen in der Kultur, 1930; O mal-estar na civilização, tradução de José Octávio de Aguiar Abreu, Rio de Janeiro, Imago, 2002, p.22.
[5] Cf. Friedrich Nietzsche, La volonté de puissance, texto estabelecido por Friedrich Würzbach e traduzido do alemão por Geneviève Bianquis, tomo II, Livro III, 584, pp.216-217.
[6] Cf. Ibid., 594, p.220.
[7] Cf. Ibid., III, 582, p.216.
[8] Cf. Id., A Origem da Tragédia, 1, pp.66-67.
[9] Cf. Aristóteles, L’Homme de génie et la Mélancolie. Problème XXX, 1, edição bilingue, tradução, apresentação e notas de J. Pigeaud, Paris, Éditions Rivages, 1988, p.83.
[10] Cf. Friedrich Nietzsche, A Origem da Tragédia, 18, p.152.
[11] Cf. Walter Benjamin, Origem do drama trágico alemão, edição, apresentação e tradução de João Barrento, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004, p.147.
[12] Tscherning, “Melancholey Redet selber”, in Ibid., pp.155-156.
[13] Cf. Friedrich Nietzsche, Die Gebürt der Tragödie, 18, Werke, I, p.99.

"Ética Global: uma perspectiva intercultural" - a visão budista



Agradeço ao António Moura o filme que fez desta minha intervenção, em representação da União Budista Portuguesa, no painel "Ética Global: uma perspectiva intercultural", nas Conferências Democráticas que ainda decorrem na Sociedade Portuguesa de Geografia, organizadas pela Associação Portuguesa de Ética Empresarial.

Uma bela iniciativa, inspirada nas propostas de Hans Küng e nas Conferências do Casino! Recordo que a nova revista ENTRE publicará a última conferência de Hans Küng, feita em Dezembro de 2009 na Suíça.