segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Fernando Pessoa: Grandes mistérios habitam


O limiar do meu ser,
O limiar onde hesitam
Grandes pássaros que fitam
Meu transpor tardo de os ver.
São aves cheias de abismo,
Como nos sonhos as há.
Hesito se sondo e cismo,
E à minha alma é cataclismo
O limiar onde está.

Então desperto do sonho
E sou alegre da luz,
Inda que em dia tristonho;
Porque o limiar é medonho
E todo passo é uma cruz.

Fernando Pessoa, in Cancioneiro

Escultura Fugit Amor, de Auguste Rodin, 1884

Infinita fenda


Medo:
como o não
ter?
É por aqui
que fogem os filhos às mães
é por aqui que correm todos os rios que alguma vez secaram
é daqui que nascem os universos
e se incendeiam as estrelas.
É ainda aqui
que a forma das nuvens se separa
e o amor se repara.
É aqui que nasce
o sopro
a aragem.
Como não ter...
... coragem?!

Brevíssima


De singelo e brevíssimo modo, aqui faço saber que, por ponderado ditame íntimo - o de, sobretudo, preservar-me de mim mesmo -  deixarei, doravante, de colaborar neste blogue e no seu projecto. 

Essa interrupção é obviamente extensiva à condição de administrador deste espaço que, por cordial e gentil convite, Paulo Borges, seu criador, e mentor do projecto,  foi tendo a paciência de suportar-me. Extensiva é ela também ao blogue "Refundar Portugal"


Agradeço-lhe, penhorado, a amizade de sempre e a lembrança de mim, que de mim tendo a muito esquecer-me.

A todos quantos aqui vieram e vêm, sem excepção alguma, estendo o meu abraço fraterno, exprimindo neste momento a minha mais alta admiração e a gratidão profunda. 

Bem hajam.


Donis de Frol Guilhade



P.S.   
Seguem-me, "por inerência", neste desígnio, Damien e Lapdrey, que, pela sua parte, o mesmo farão nos blogues "Serpente Emplumada" e "Refundar Portugal". 

Conforme é sabido de muitos aqui, e alhures, fui, enquanto Damien/Lapdrey, discricionariamente excluído da qualidade de colaborador do blogue da revista "Nova Águia", sem qualquer explicação prévia e sem outra razão aparente que não a ausência de elevação e de carácter de uns tantos que se imaginam timoneiros de desígnios que estão inapelavelmente aquém e além da sua pequenez e estreiteza.

Mais uma vez, aqui agradeço a Paulo Borges o convite que, gentilmente, então me endereçou para colaborar quer no referido blogue, quer também na revista com o mesmo nome, o que fiz honrado e responsável, e da qual já tive oportunidade de desvincular-me também, bem como igualmente do projecto MIL.

reclamo (anúncio de mim mesmo)

Amanhã nada disto existirá

A bailar no veio translúcido do instante

A insuportável exsurgência da manhã

A distante evanescência das quimeras

De ter sido na imponderabilidade do vento

Nada disto consiste em querer ou ter ou poder

Uma fome alada que resiste

Na planície úbere do não ser

E viro a página

Estar vivo é só a possibilidade de perdição

E em ondas de luz que de cima me revelam

Só o que ficou o resto da alba que não houve

Tudo se precipita em abismos de lume

Na alvorada nova do esquecimento

O cheiro a creolina no charco de ter nascido

O aqui envolto em turvação

Ganha pé o mais ambárico dos vinhos

Não são de fiar as coisas demasiado perfeitas

Tudo vem de fábrica plastificado

E esterilizado

Já nada se gasta só por ser usado

A não ser a habituação a nós

Torna-se espessa e ganha um corpo subtil

De cave fechada repleta de inutilidade

Em fundo uma música quase ignorada

Dos codeine velvet club torna desculpável a decisão

De desfazer os baús na feira da ladra

Da escrita

Entre-caminho

sábado, 28 de novembro de 2009

o poema: inspira, expira

O que me inspira é a Vida
os coelhos nos seus regressos a casa,
a dona maria a sacudir as passadeiras
os pássaros bocejando visões
as gruas
os automóveis azuis
as árvores a chuva e o milho

Mas mais que gruas que levam homens ao céu
inspira-me as luzes que cegam os mortos
O sol umbilicalmente aos dias
nas marquises
nos frutos
nas formigas a construirem suas pátrias

É você aí desse lado que me inspira
a descobrir que o silêncio é um bosque
a somar à dor de parto com que fico

Depois
expiro a casa que guarda o nome e os ossos dos meus avós
a criança na sua dicotomia de crescimento
este deus hipócrita partido em quatro
mas que eu amo

E se tiver tudo isto tenho amor
tenho Obra
e manjedoura
e Nath King Cole a dar voz às manhãs

Ó mar faz de mim um bonito cadáver!

Portugal, Europa e Ocidente: o enigma do "olhar esfíngico e fatal" e o rapto de Europa



Ticiano, O rapto de Europa

“A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.

O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.

Fita, com olhar esfíngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.

O rosto com que fita é Portugal”

- Fernando Pessoa, “O dos Castelos”, Mensagem.

É com este poema que Fernando Pessoa abre a Mensagem, cujo nome cifra o dizer latino: Mens ag(itat) (mol)em – o pensamento/a inteligência/a mente impele/põe em movimento a massa(matéria)/multidão. O presente poema deve pois ser considerado como o primeiro momento disso que todo o livro pretende e anuncia ser: mover e orientar numa determinada direcção a massa passiva e inconsciente das coisas e/ou da mole humana, o que supõe nesta a potencialidade de deixar de o ser, despertando do sono que a equipara à matéria e pondo-se a caminho de um estado superior de consciência.

De quem fala o poema e o que diz? O poema fala da Europa, figurada, de acordo com as sugestões do seu mapa, como um ser, decerto feminino, que “de Oriente a Ocidente” se deita, apoiado “nos cotovelos”, “fitando”, ou seja, olhando fixamente para um alvo diante de si. Um dos cotovelos pousa na Itália e o outro na Inglaterra, sendo este que sustenta a mão “em que se apoia o rosto”, onde a moldura romântica dos cabelos evoca “olhos gregos”. Esse rosto, “o rosto com que fita”, “é Portugal”, o finistérreo extremo-ocidente europeu, voltado para o Oceano.

Recordemos a mitologia acerca de Europa, mulher fenícia de Tiro, cujo nome, do grego, sugere etimologicamente a imagem de um rosto ou visão amplos (ευρυ-, largo, amplo, e οπ-, olho(s), rosto). Nas duas versões acerca do seu destino, na mais conhecida é seduzida por Zeus transformado em touro, o qual, após haver conquistado a sua confiança, subitamente a rapta e leva pelo mar para Creta, onde se une com ela. Dessa união nascerá o rei Minos. Noutra versão, narrada por Heródoto, Europa é sequestrada pelos minóicos e levada igualmente para Creta.

Notemos que a Europa é, curiosamente, uma figura não indo-europeia, pois os fenícios, segundo Heródoto, provêm do Oceano Índico, enquanto que, segundo a moderna historiografia, procedem de uma região entre o Mar Morto e o Mar Vermelho. O seu nome significa em grego “vermelho” e pode provir da cor da sua pele (Agostinho da Silva refere-os como os “pele-vermelhas”. Foram uma grande potência marítima, um povo de viajantes, que fez um trânsito de Oriente para Ocidente. Quanto ao mito do rapto de Europa, sugere-nos a essência do seu destino como o de ser seduzida, descentrada, arrebatada ao seu lugar original por uma potência divina que a fecunda. Isto em Creta, lugar de mediação entre Oriente e Ocidente, entre as raízes arcaicas, matriarcais e não indo-europeias da futura cultura europeia, e o seu futuro bélico prefigurado nos invasores aqueus indo-europeus. Creta, lugar perigoso do labirinto, da errância por várias possibilidades de destino, mas com uma única saída salvadora. Lugar do risco de se ser devorado pelo Minotauro e da possibilidade de saída libertadora pelo encontro do fio de Ariana.

Portugal, com a sua larga costa voltada para o Oceano, sugerindo um perfil contemplando o infinito, é assim na verdade não apenas o rosto da Europa, mas esse mesmo “rosto” ou “visão” amplos que diz o nome Europa. Portugal é a essência da Europa, a essência que em si contêm e encerra as complexas possibilidades que no mito se entrecruzam e entremostram: a ponte e mediação entre Oriente e Ocidente, entre o arcaico e o novo, a sedução pela alteridade, o rapto, o arrebatamento e a fecundação pelo divino, a labiríntica errância entre perdição e salvação e o rosto/visão ampla que é, simultaneamente, limite e limiar, limite que se pode converter em limiar.

O que fita então esse rosto-Portugal/Europa e como o fitam os seus “olhos gregos”, que agora supomos serem cretenses? O seu “olhar esfíngico e fatal” fita “o Ocidente, futuro do passado”. Uma esfinge é um monstro, com um corpo misto de vários animais e rosto humano, como no Egipto e na Grécia, enquanto um “olhar esfíngico e fatal” é um olhar que expressa um enigma sempre letal, pois estrangula (sphingo) e devora quem não o decifrar, ao mesmo tempo que se suicida caso a decifração aconteça, como no Édipo Rei, de Sófocles. A mulher fenícia é então uma Esfinge e Portugal o rosto humano desse monstro, que se estende de Oriente a Ocidente contemplando fixamente o Ocidente/Oceano. O Ocidente, do latim occidens, entis, é o particípio presente do verbo occidere, o qual, se for intransitivo, significa morrer e, se for transitivo, significa matar. O Ocidente é assim o lugar onde se morre ou se é morto, como acontece com o sol que aparentemente aí declina e desaparece. Esse lugar é também o Oceano, o Okeanos que os gregos visionavam como o grande rio caótico e turbilhonante que corria circularmente em torno do mundo. Em qualquer dos casos, o Ocidente e o Oceano, para além da sua determinação geográfica, assinalam o aparente limite da terra firme do conhecimento e da vida, figurado na linha igualmente aparente do horizonte, cuja etimologia grega (orizón) designa “o que limita”. É isso o “futuro do passado” e é isso que a Europa-Esfinge, que “jaz […] / De Oriente a Ocidente”, amplamente “fita” com o rosto-Portugal.

Este confronto configura uma situação-limite, na qual uma das instâncias do confronto – Portugal, rosto-essência da Europa, e o Ocidente/Oceano, “futuro do passado” – não pode sobreviver. O rosto-Portugal fita, ou seja, foca unidireccionadamente, concentrando toda a energia do desejo numa visão intensa, isso que está diante de si, esse Ocidente/Oceano/Horizonte ignoto que é o “futuro” desse “passado”-Europa que Portugal ainda é, porém já na condição anfíbia de finistérrea ponta extrema, lançada para o alvo da alteridade absoluta, irredutível a qualquer identidade europeia, ocidental ou outra. Rosto humano da monstruosa Esfinge-Europa, que aqui pode figurar todo o próprio “passado” euroasiático da história do mundo, ou tudo o que ela mesma aspira a ultra-passar em si, Portugal figura o descentramento da história, da vida e da consciência europeia, e/ou da própria consciência, para o desenlace crucial do morrer ou matar que no Oceano/Ocidente se simboliza. Portugal incarna, no rosto/visão amplos descentrados para a alteridade infinita, a própria essência da Europa, ou seja, a sua sedução, rapto e arrebatamento jamais terminados e apaziguados, a própria condição da sua divina fecundação e criatividade.

Não esqueçamos que neste quadro da Europa que abre a Mensagem se destacam explícita e implicitamente os quatro momentos-figuras histórico-civilizacionais que Pessoa identifica nos quatro impérios “passados” e perecíveis cuja superação o Quinto Império simboliza: “E assim, passados os quatro / Tempos do ser que sonhou, / A terra será teatro / Do dia claro, que no atro / Da erma noite começou. // Grécia, Roma, Cristandade, / Europa – os quatro se vão / para onde vai toda idade. / Quem vem viver a verdade / Que morreu D. Sebastião?” (“O Quinto Império”). No poema inaugural da Mensagem, a Grécia está representada pelos “olhos gregos”, Roma e a Cristandade pela Itália e a Europa por si mesma e pela Inglaterra, que personifica o quarto império noutros textos, em prosa, de Pessoa.

O mais fundo enigma reside, contudo, no facto de Portugal ser o “rosto”-“olhar esfíngico e fatal” com que a Europa fita o Ocidente. O que quer dizer que o enigma mortal não está propriamente diante, no Ocidente/Oceano, mas antes nesse que os fita. Portugal, como rosto-essência da Europa, é o próprio esfíngico enigma que, numa inesperada inversão da situação aparente, é suposto ser também contemplado pelo Ocidente/Oceano. Quem levará quem à morte? Paralisará e devorará Portugal, rosto-essência da Europa, o Ocidente/Oceano, caso este não decifre o enigma que transporta? Porá Portugal, rosto-essência da Europa, fim à vida, caso o Ocidente-Oceano o decifre? Morrerá o futuro e a alteridade às mãos do passado e do mesmo ou serão antes estes a perecer perante aqueles?

Toda a lógica e intencionalidade da Mensagem e do pensamento pessoano apontam para a segunda possibilidade. E tudo se esclarece se considerarmos que em Portugal se figura a impossível coexistência das duas figuras e a encruzilhada crucial na qual uma tem de ser sacrificada. Talvez seja precisamente esse o enigma. Tudo depende do que vai predominar em Portugal - que Pessoa vê como a quinta-essência do complexo de possibilidades que é a própria Europa - e, a um nível mais fundo, na possibilidade universal do homem e da consciência que Portugal aqui figura (como Israel, a Cristandade ou o Islão nas respectivas culturas): ou a asfixia e deglutição da adveniente alteridade pela monstruosa mesmidade passada ou o autocolapso desta no desentranhamento e desvendamento do secreto fito a que no mais íntimo aspira - morrer e devir, autotranscender-se trespassando a linha do horizonte e revelando a sua mera aparência, converter e revelar o limite como limiar. Ou o quarto ou o Quinto Império, como consumação do íntimo fito da consciência europeia e da própria consciência, tanto mais comprovado quanto mais aparente e visceralmente o rejeita: ser, agora e sempre, divinamente seduzida, raptada, arrebatada e enfim fecundada.

Labirinto que é, talvez só nesse rapto, só nesse abandono e entrega à alteridade absoluta, possa encontrar o fio de Ariana que a resgate de morrer devorada pelo Minotauro, ou seja, autodevorada pelo próprio medo e desejo de segurança agressivos que este, tal como a Esfinge, personificam.

(texto em elaboração)

criança


sexta-feira, 27 de novembro de 2009

"O mundo é mais cheio de pranto do que tu és capaz de entender" - William Yeats



The Stolen Child - WB Yeats (Poem No. 1) from Lainy Voom on Vimeo.

Come away, O human child!
To the waters and the wild
With a faery, hand in hand,
For the world's more full of weeping than you can understand.

William Yeats, de "The Stolen Child"


(Dedico a Maria Sarmento, Isabel Santiago, Luiza Dunas e Inês Borges, quatro seres que este mundo desconhece, crianças roubadas de algum mágico lugar.)

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

o argonauta das sensações verdadeiras

'...com a qual choro o homem que foi para mim,como virá a ser para mais que muitos, o revelador da realidade, ou, como elle mesmo disse, « o argonauta das sensações verdadeiras» - o grande libertador, que nos restituiu, cantando, ao nada luminoso que somos; que nos arrancou á morte e á vida, deixando-nos entre as simples coisas, que nada conhecem, em seu decurso, de viver nem de morrer; que nos livrou da esperança e da desesperança, para que não nos consolemos sem razão nem nos entristeçamos sem causa; convivas com elle, sem pensar, da fatalidade objectiva do universo.
...

alegrae-vos, todos vós que choraes na maior das doenças da história!'

ricardo reis, in prefácio a alberto caeiro

à luta, porque a luta é a destruíção desta realidade.

EnTre os pioneiros de uma Filosofia da Saudade

"Os Portugueses são mais saudosos que outros povos, o que permite um sentimento único de Amor e Ausência - os pais da Saudade."
D. Francisco Manuel de Melo

"A saudade provém do coração, não provém do entendimento. É um bem que se padece e um mal que se deseja. Amarga e doce, triste e alegre. Na saudade fundem-se os contrários."
D. Duarte

combate mítico do herói consigo mesmo


quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Edmund Dulac's Tanglewood Tales














O Palácio do Xarajibe.

Eia! Saúda os meus lares, em Silves, ó Abu Becre
E pergunta-lhes se conservam memória de mim, como penso.
Saúda o Palácio do Xarajibe da parte dum donzel
Que perpetuamente suspira por esse palácio.
Morada de leões e de brancas gazelas
que ora parece um covil, ora um gineceu!
Quantas noites não passei, à sua sombra, divertindo-me
com mulheres de largas ancas e cintura delicada,
brancas e morenas que faziam na minha alma
o efeito de espadas refulgentes e de lanças escuras!
E a noite, deliciosamente passada, junto do açude do rio
Com a donzela cuja pulseira semelhava a curva da corrente…
Ela continuamente me embriagava, ora com o vinho dos seus olhares,
Ora com o da sua taça, ora com o dos seus lábios.
As cordas do seu alaúde, feridas pelo plectro, faziam-me estremecer
Como se ouvisse melodias de espadas nos tendões do colo inimigo.
Ao deixar cair o manto, descobria seu corpo, ramo de salgueiro
Brilhante, como quando do botão surge a flor
!

[Poema de al-Mu’tamid dirigido a Ibn Ammar, falando-lhe da bela Silves, em que este último residia, e onde viveram as suas juventudes livres e apaixonadas, como qualquer jovem vive ou sonha viver. Por enquanto, a amizade e o amor que existia entre um e o outro, era um elo difícil de fazer quebrar. Já o tempo, essa invariável linha de nascimento, se encarregou de o destruir, e as suas existências acabaram tão tragicamente como os momentos que as levantaram.]

Ponte 25

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Espelho


Pintura de Watterhouse
(Para Donis, de quem se diz que é Rey de seu mesmo reinar. EnTre-tantos Lugares...)
Plantámos uma vara no mar. No silêncio a regamos. Afundamos no lago os remos e deixamos seguir, na corrente, o espelho de argêntea vida, o belo rosto da mulher do lago. Uma flor de lótus, branca de sal no bordado manto. Uma gota de sangue no cristal do espelho: mercurianas vozes, sonhos de alguém debaixo de húmidas pétalas!
Quando vierem as primeiras chuvas, a água doce fará florir a cana de uma tal e tão subtil índia, como em sonho a sonhamos. Uma ferida, flor à cor da tarde que se estende em caminhos de ouro, sobre os verdes reflexos da água, dará dormida às aves, como uma gruta no rochedo, dentro do abismo do mar! Azul aberto! O sangue será o nódulo do peito a descer. Subido o rio ouve-se o murmuro canto da tristeza; o filho da Saudade entrado no castelo. Olha a flor que se afasta, trazendo dentro dela a voz de uma nova raiz, de um novo espelho. Essa vara florida, essa canção, será da cor da prata, e, repetida, repercutida no espaço e em todos os pontos do universo, a levará, a barca da lua, em seu arco de luz, em sua horizontal forma de silêncio.
Porque a lua lhe dará reflexos de poema e canto de encantado rio, ao tear de finos fios e penas e bicos de gaivotas, sobre o manto da terra, sobre as ondas do mar, se chegarão as criaturas de asas, as sementes de arroz e as bagas de romã. Sorriremos da tarde trazer essas vozes, essas figuras, para próximo dos brilhos das janelas do alto da casa das sombras e do choro de pedra das gaivotas. Cantaremos, então, como anjos em consertados, afinados e acertados cantos. Dizem que a sua voz, a voz da vara florida, será sopro, será texto e nome. Porque vibra em corda alta de sentido um nome para cada coisa, e nomear é cantar, ouvir do interior da semente, a voz da folha, o ramo que trará a pomba de regresso. A pomba que, em fios de várias cores, pelas noites entre paredes, vem poisar no vestido da dama de olhos cor de pasto de sal. Olhos vendados, cega, olhando o espelho, picando-se no espinho da rosa florescida no bordado do jardim.
Será um canto claro, em coração de bosque, verde e florido chão de nova e florida voz. O nome desse canto ensurdece. O seu nome dará no chão reflexo de espelho vivo, entornada voz! Não estranharemos os sons que ouvirmos no caminho. Vão por caminhos que são as suas asas, os ses cantos e as suas brisas, as asas e as brasas. Debaixo desse canavial salgado, que é o rio, uma corrente levará a voz numa barca para as paredes do castelo. Lê-se nos olhos vendados da jovem dama do lago. Será aí que uma espada levantará a luz de uma pátria sem definições, mais livre de emparedadas vozes; mais liberta de si, mais sem razão.
Ouve-se o eco da voz, na voz sem tempo de um aberto lugar, como uma estrela na fronte do rosto virado a ocidente, fitando o rio e o destino do mar.
Talvez seja por isso que o olhar se ergue ao céu, quando a lua crescente, como um barco, voga no escuro mar do vasto firmamento. Fitamos a lua e, por trás da escuridão, ouvimos a voz, o lamento da Senhora do lago da lua, a olhar-se no espelho branco do mar. Não chegámos a virar o olhar para Camelot, mas na torre mais alta do castelo que ainda hoje lá está, o pano bordado tece-se novas cores, novos sons acordam, e a vida tecida nesses fios será de lua e rosa e sangue, cristal e lágrima. Será conto e canto. Canto da distância, contos de acorde em lá. Lanças retiradas da pedra de moer distâncias, de fiar o linho, de plantar esperanças!

(des)organização

'a única saída dos homens está no devir-revolucionário, o único a poder conjurar a vergonha ou responder ao intolerável'

g. deleuze

por uma nova forma de organização revolucionária, por uma resposta directa ao acontecimento. não esperemos ordens!!!

"No-One Is There" - Sopor Aeternus



E se ... "enTre" não houvesse ninguém
Ou, melhor dito,  se houvesse ninguém?

"A noite é o exterior do dia e o dia o interior da noite" - Ibn Qasî

A noite é o exterior do dia e o dia o interior da noite...
Aquele que vem da escuridão que existe entre as duas auroras ou nas trevas que separam a luz em duas luzes, nesse não acreditará nenhum do seu povo e só um pequeno rebanho da sua gente o achará digno de confiança. 
São esses os sinais das negras trevas e as características dos escuros crepúsculos.

Ibn Qasî

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Um cientista é um cientista
Mas um poeta é um poeta!
... ... ... ... ... ...
um mundo feliz é composto por sol e água
... ... ... ... ... ...
Não desistas: cinquenta mil homens dependem de ti!
... ... ... ... ... ...
Troco poemas por cigarros e o gozo que isso me dá!
... ... ... ... ... ...
É com a cabeça dentro do poço que se escuta o avanço do mar
... ... ... ... ... ...
Se a noite é uma mulher como lhe pegar na cintura?
Que ilusionista tira o céu de uma cartola?
... ... ... ... ... ...
a noite é o espelho em que me demoro e retoco a farsa
para o dia de amanhã
... ... ... ... ... ...

Estou condenado mas canto
A guilhotina está pronta
As lâminas afiadas com um brilho genial
O carniceiro aquecendo as mãos
Não vá ele falhar o golpe
Peço um último desejo
Que é um Direito meu e está na Carta dos Homens
As crianças devem sorrir sem pagar mensalidade
Os banqueiros que não tentem!

domingo, 22 de novembro de 2009

"Para um novo universalismo baseado na interculturalidade". François Jullien

Publico aqui uma entrevista feita a um dos mais influentes pensadores contemporâneos, François Jullien, pelo investigador brasileiro Gunter Axt e publicada na edição deste mês da revista Cult. Jullien repensa toda a tradição filosófica ocidental a partir do seu conhecimento profundo do pensamento chinês. Mantenho a versão brasileira e agradeço a Rui Lopo o conhecimento deste texto, que introduz a alguns aspectos fundamentais de um pensador que leio desde há uns anos, incontornável para a compreensão do nosso tempo e do sentido do diálogo intercultural. Nesse domínio, está a par de Raimon Pannikar.
Como habitualmente, em Portugal não há um único livro traduzido deste autor, ao contrário do que acontece nas principais nações europeias. Já o tenho proposto a vários editores...

....

"Por um novo universalismo baseado na interculturalidade": íntegra da entrevista com o filósofo François Jullien.

François Jullien é um dos filósofos franceses mais em evidência na atualidade. Especializou-se em pensamento chinês e afirmou-se como um importante teórico do diálogo intercultural no contexto do mundo globalizado.
É professor na Universidade Denis Diderot, Paris VII, onde dirige o Instituto do Pensamento Contemporâneo. É membro sênior do Instituto Universitário da França, já presidiu o Colégio Internacional de Filosofia e a Associação Francesa de Estudos Chineses. Ele dirige atualmente a revista Agenda do Pensamento Contemporâneo, editada pela Flammarion. Desempenha também papel de consultor para empresas ocidentais que desejam se instalar na China. Seus livros estão traduzidos em uma vintena de países, inclusive no Brasil.
Nesta entrevista, concedida em Paris, François Jullien discute a sua opção por estudar a China, problematiza a diferença entre alteridade e exterioridade, entre universal, uniforme e comum, conceitos que considera fundamentais para compreender a dinâmica do diálogo entre as culturas. Jullien fala ainda sobre o pensamento chinês como um modo de coerência com características próprias e debate a China contemporânea, a Comunidade Comum Européia, o Brasil e o papel do intelectual na atualidade. Repensa, ainda, os limites dos Direitos Humanos e defende a necessidade de construção de um novo universalismo, baseado na diferença, mas refratário ao relativismo cultural.

Por que a China, por que fazer da China o sujeito de seu trabalho?

No início, fui helenista. Mas fui interessando-me pela China porque ela se constitui em uma exterioridade particularmente marcante em face da cultura européia. Exterioridade de língua, já que o chinês não pertence à grande tradição indo-européia; de História, já que os contatos da Europa com a China tornaram-se mais freqüentes apenas a partir do século XVI, na esteira das missões de evangelização, ganhando intensidade na segunda metade do século XIX, como desdobramento do processo colonial moderno. Apesar das diferenças, ambas, Europa e China, são comparáveis. Não se trata de buscar o exotismo da China, mas de se evidenciar o quanto ela é um caso particularmente tipificado e com forte exterioridade com relação à cultura européia. Minha abordagem é filosófica. Trabalho sobre um pensamento constituído e explicitado, com o objetivo de re-interrogar o pensamento europeu a partir de fora.
Qual é a diferença entre a exterioridade e a alteridade?
Sim, eu mencionei exterioridade e não alteridade. Por que a exterioridade é algo dado pela geografia, pela língua, pela História - se constata. Por sua vez, a alteridade é uma construção cultural. A China está alhures; mas em que medida ela se constitui em um outro? É o que Foucault chamava literalmente, em "As palavras e as coisas", de heterotopia da China, distinguida da utopia: as utopias confortam, as heterotopias inquietam.
Mais do que a diferença do pensamento extremo-oriental com relação ao europeu há uma indiferença nutrida tradicionalmente entre estes termos. O primeiro desafio é sair desta indiferença mútua, de maneira a que um possa visualizar o outro, numa mudança de enfoque que suscita o pensar.

Existem modos possíveis de coerência no mundo contemporâneo em paralelo à tradição judaico-cristã e ao racionalismo ocidental?

Contrariamente ao que pretende a história ocidental da filosofia, o Extremo Oriente não ficou em estado pré-filosófico. Ele inventou os seus marcos de abstração, conheceu uma diversidade de escolas e explorou outras fontes de inteligibilidade.
Há um benefício duplo deste percurso intelectual pela China. Além da descoberta de uma outra inteligibilidade, sonda-se até onde pode ir esta deterritorialização do pensamento. Mas este deslocamento implica também num retorno. A partir deste ponto de vista da exterioridade, trata-se de retornar aos pressupostos a partir dos quais se desenvolve a razão européia, pressupostos ocultos, não explicitados, que o pensamento europeu veicula como uma evidência. O objetivo aqui é remontar ao impensado do pensamento, captando a razão européia ao inverso, a partir de sua exterioridade.
Pensar na China é justamente sair deste grande movimento pendular entre Atenas e Jerusalém encarnado pela filosofia européia.
Na sua percepção, os chineses possuem noções do Ser, da Verdade e do Tempo diferentes daquelas consolidadas pela tradição ocidental?
Consideremos a noção de "Ser" a partir da qual, sabe-se, a Europa baseou seu pensamento, desde os gregos (desde Homero). "Ser" ou "Não Ser", no pensamento europeu, forma a alternativa dramática básica; do mesmo modo que a oposição entre o "Ser" e o "Devir" constitui nele a linha de separação a partir da qual se desenvolveu a Ontologia, o caminho expresso para a Filosofia. Ora, ao mesmo tempo em que não podemos pensar fora dessa dupla oposição do "Ser" (nossa mente se articula nela), estamos conscientes de que o termo "Ser" é empregado com "diversos sentidos", primeiramente os de "existência" e "qualificação" (ser isto ou aquilo, ou de certo modo). Convergem esses significados para uma só unidade, onde permanecem estranhos um ao outro, dando, por isso, margem a confusões? Mas, tornando precisa a questão, tratar-se-ia exatamente da "raça humana" e, sobretudo, não de algo grego, que "nós" herdamos na Europa? Quanto ao pensamento chinês clássico, diferencia ele entre o "existir" (you) e o "o estar" (wei) ou o "existir-estar", "existência-subsistência" (on he on), admitindo também a função da "cópula" (ye), isto é, o verbo que une o sujeito ao nome predicativo do sujeito. Mas entre eles, não se diz (não se pensa) em "Ser" como um absoluto: o "Ser" como um fenômeno do qual todos os outros devem participar para que se diga que "existam"; e tampouco a idéia do "Ser" como "Ser como Estar" (on he on), à qual devemos desde Aristóteles que a Filosofia se tenha feito Ciência. Ao pensamento chinês, portanto, não se colocou - ou não pôde se colocar - a questão que para nós, contudo, até aqui parece inevitável, a do ti esti, ou seja, "do que se trata"?
Para os gregos, uma relação entre o conhecimento e o "Ser" funda a filosofia, ao passo que na China não há qualquer Ontologia. Não se pretendeu construir uma aparência onde possamos viver, mas busca-se encontrar a diversidade de pontos de vista e sua anulação mútua, o que constitui o "caminho" comum da imanência (o tao).
A China pensou a "adequação" circunstancial, mas porque ela não a pôde apoiar no Ser, não a pôde estabelecer sob um plano de eternidade, não a pôde sustentar por um projeto puro de conhecimento (que tendeu como entre os gregos a assimilar a sabedoria à ciência, a sophia à epistémé), ela não produziu a Verdade, como visão maior da filosofia - não pôde visto aqui não como a expressão de uma falha, mas mais como a abertura para um outro possível. O termo em chinês antigo que melhor podemos traduzir por "verdadeiro" significa antes "autêntico" (zhen: no sentido dos sentimentos ou de uma natureza verdadeiros; o "homem verdadeiro" zhen ren é, notadamente no taoísmo, aquele que ascendeu a uma perfeita disponibilidade interior e não conhece mais os entraves ao desabrochar de sua existência). Os chineses manejaram bem o julgamento disjuntivo, mas eles cedo se desafiaram, desde a formação de suas escolas de pensamento, na antiguidade, sobre a perda fatalmente ocasionada - do ponto de vista da globalidade da sabedoria - do conflito (estéril) de posições. Isto significa que não necessariamente os chineses são incapazes de distinguir o verdadeiro e o falso, mas que não é sobre este ângulo, da pesquisa e da busca da verdade, que eles desenvolveram suas concepções. Enfim, os chineses não produziram uma fixação sobre a Verdade.
Noções que acreditamos serem gerais e invariantes, universais, não necessariamente se repetem na China. Para entrar no pensamento chinês, é preciso acompanhar o desenvolvimento de suas noções e de seus questionamentos internos, sem pressupor que seus modos de coerência concordam de golpe com os dos europeus.
Isto acontece também com a noção de tempo. Os chineses pensaram a temporada, o instante (momento - ocasião - circunstância: shi) e a duração (jiu), mas não a noção de tempo homogêneo e abstrato, destacado do curso dos processos, tal qual os gregos a pensaram a partir de uma física do movimento dos corpos e de seu deslocamento no espaço (Aristóteles), de uma ruptura metafísica com a eternidade do Ser (Platão-Plotino) ou de Deus (Santo Agostinho); e tal que nós a flexionamos de ordinário na conjugação dos diferentes tempos verbais - a língua chinesa não conjuga.
O tempo europeu é divisível em diversos tempos, mas as divisões não existem efetivamente: o presente não é mais do que um ponto de passagem, sem extensão, portanto, sem existência, entre o passado, que não é mais, e o futuro, que ainda não é. Quando os chineses e os japoneses encontraram a noção ocidental de tempo, ao final do século XIX, ao se defrontaram com o pensamento e a ciência ocidentais, a traduziram por "entre-momentos" (shi-jian, em chinês, e ji-kan, em japonês).
Restemos, portanto, vigilantes quando nos depararmos, em uma tradução do chinês clássico para uma língua européia, com termos como Verdade, Ser, tempo, ideal, etc...: uma assimilação já se consumou ali, bem intencionada, até, mas gerando indevidamente a ilusão da universalidade.

Quais são as conseqüências dessa sua compreensão para a percepção da China contemporânea?

Eu proponho a noção de "potencial de situação" para compreender a concepção chinesa de eficácia. Apanho-a aos estrategistas da Antiguidade, como Sun Zi e Sun Bin. Mais do que modelar uma fórmula ideal colocando-a como uma meta, o que implica em forçar a impregnação desta meta na realidade, aquilo que vem a ser eficácia na China se aplica a demarcar, a detectar, os fatores favoráveis existentes no seio da situação abordada. A idéia é fazer evoluir continuamente a situação em função dos fatores que podem ser revelados, de maneira que é da situação mesma que decorre o efeito. Assim, se hoje não é favorável, é preferível esperar, mais do que se destroçar enfrentando uma situação adversa. É por isto que prefiro para a China o termo "eficiência", mais do que "eficácia", pois permite compreender a continuidade de um desdobramento, ao mesmo tempo que a arte de captar sua imanência, sem evidenciar a imposição de um projeto.

Donde decorre uma segunda noção: a de "transformação silenciosa". Ora, diferentemente do herói europeu, que não apenas se estabelece uma meta, como ainda age de maneira a propiciar a forma ideal que traçou, um dos temas mais marcantes do pensamento chinês é o não agir, que não deve de forma alguma ser compreendido no sentido de passividade ou de ausência de engajamento. Se o estratego não age, ele transforma, faz lentamente evoluir a situação no sentido desejado, por influência. Enfim, a transformação se manifesta como o contrário da ação. Enquanto esta é local, momentânea e ligada a um sujeito específico, a outra é global e progressiva. Nós não a vemos, mas ela acontece. Como o envelhecimento de uma pessoa, que percebemos quando a comparamos com uma fotografia sua de vinte anos atrás. O pensamento chinês dissolve a individualidade do evento no processo.
A China, ainda hoje em dia, não me parece estar projetando um plano sobre o devir, perseguindo um fim dado ou divisado, mesmo imperialista; mas sim parece estar explorando da melhor maneira possível, dia após dia, seu potencial de situação. Quer dizer, tirar partido dos fatores favoráveis, seja no domínio econômico, no político, no internacional e em qualquer que seja a ocasião. É apenas agora que começamos, um tanto estupefatos, a constatar os resultados: que em alguns decênios ela se converteu na usina do mundo e nos próximos anos seu potencial crescerá inelutavelmente. E isto, sem um grande evento, ou ruptura. Deng Xiaoping, o "pequeno timoneiro", foi este grande transformador silencioso da China. Ele empurrou gradualmente a sociedade chinesa, alternando liberalização e repressão, do regime socialista ao hiper-capitalismo, sem jamais ter declarado uma ruptura franca entre os dois.
Vejamos, por exemplo, a imigração chinesa na França. Ela se estende de um bairro a outro, com cada recém-chegado trazendo, um após o outro, todos os seus primos. As celebrações chinesas ganham ano a ano mais importância. Mas esta transição é tão contínua que nós não a percebemos e não a barramos.
São necessárias ferramentas teóricas específicas para compreender a China contemporânea, com este regime hiper-capitalista sob uma redoma comunista apoiada em uma estrutura hierárquico-burocrática. O Partido Comunista Chinês já se transformou muito. A China renovou suas elites, de uma geração à outra, graças às temporadas de estudo e estágios no exterior. Mas ele permanece a estrutura de poder. Uma das minhas grandes admirações é perceber que a China jamais conheceu um outro regime que não a monarquia. Fala-se na China apenas do bom ou do mau príncipe, da ordem ou da desordem. E, mesmo, considera-se que um mau príncipe é melhor do que a anarquia. Há sim momentos em que o poder chinês fracassa, mas eu jamais vi aparecer o ideal de política, no senso das formas-modelo, que vemos sendo debatido por Platão, Aristóteles ou Montesquieu: que constituem regimes distintos, cujas qualidades intrínsecas nós cotejamos.

Como o senhor caracteriza e diferencia os conceitos de universal, de comum e de uniforme?

O universal exprime-se um conceito da razão, emergindo da tradição européia, e se reclama como uma necessidade à priori, confundindo-se com a elevação do pensamento e com a própria ciência. Assinala, assim, uma intransigência inegociável.
O uniforme é um conceito da produção, que se projeta não por necessidade, mas por uma comodidade. A única racionalidade que pode ser atribuída ao uniforme é a da gestão e a da economia. Enquanto o universal apóia-se na ordem da lógica e do prescritivo, o uniforme repousa sobre a imitação. Assim, se o universal suscita ostensivamente a rebelião, aquela da singularidade, o uniforme se contenta em acalmar as resistências ao seu redor e se funde à paisagem. Sua potência é cumulativa: quanto mais ele se propaga, mais ele se impõe. O uniforme produz a estandartização e, assim como o universal, pode ofender o individual ou o singular, chocando-se com a diferença.
O comum é político. Diz respeito àquilo que se compartilha. O comum não é o parecido. Ele é dado por uma noção de pertencenimento, que conforma comunidade, e pode se legitimar em progressão, por extensão gradual, como que delineando níveis sucessivos de comunidade aos quais um indivíduo ou grupo pode ser integrado. Trata-se, portanto, de um termo de dupla face, ao mesmo tempo inclusivo e exclusivo, pois ao incluir determinado perfil, ele pode excluir outro, por negação. A tendência histórico-filosófica do comum é mais forte no sentido de se descerrar do que de se fechar. O comum evolui de um espaço de inclusão e de convergência para um local onde as particularidades se diluem, onde os interesses privados e específicos brandem suas contradições em igualdade de condições, com transparência, possibilitando a emergência do diálogo e da política.

A Declaração dos Direitos do Homem está no plano do universal? Em sua opinião, quais as conseqüências disso?


É o universal que se afirma na Declaração dos Direitos do Homem. O Ocidente tenta impô-la a todos os povos do mundo, independente de sua cultura, como um dever, exigindo subscrição incondicional, padrão que já foi anteriormente forçado goela abaixo dos próprios europeus. A fabricação do "universal" foi excêntrica, nascendo de múltiplos projetos que culminaram na Declaração dos Direitos do Homem de 1789. Objeto de intermináveis negociações e compromissos, o texto final é uma associação de fragmentos, que ignorou os pontos de disputa. Apesar da pressa com que foi feito, alçou-se a um estatuto ideal e necessário, revestindo-se de aura mítica. Mas o fato de ter sido constantemente reescrito, da Constituição francesa de 1793 à Declaração da ONU de 1948, já mostra que a sua suposta universalidade não é um fato consumado. Impostos na época moderna, os Direitos do Homem promovem uma dupla abstração, tipicamente ocidental, que é fonte de contradição: dos "direitos" e do "homem". Ela isola o sujeito, privilegiando a emancipação, consagrada como fonte da liberdade, e, além disso, isola o Homem de seu contexto vital, estabelecendo as dimensões social e política como dependentes de uma construção posterior que garanta sua existência. A ereção do universal desvincula o humano de seu mundo, estabelecendo uma dramática contradição.
Na Índia, por exemplo, não se concebe uma ordem natural da qual o ser humano não faça parte. A integração é estabelecida até a partir dos animais, que para os indianos são dotados do poder de compreensão e de conhecimento e podem já ter sido homens antes de renascerem como bichos. Ali, o homem é tão pouco excepcional que sua vida e morte carecem de significado, sendo destinadas a se repetirem indefinidamente. Não se evidencia um princípio de autoconstituição política a partir das quais os direitos do homem devam ser declarados. Enquanto para o pensamento europeu a liberdade é a última palavra, para o Extremo-Oriente é a harmonia. E sob esse aspecto, a Índia se comunica efetivamente com a China por meio do budismo. Lá, é o Ocidente que produz uma exceção ao introduzir a ruptura que isola o Homem. E, no Islã, o medo do Juízo Final, elemento primeiro da fé, reduz os direitos humanos à insignificância. Claro que hoje a noção ocidental dos direitos humanos existe em países orientais como "enxerto" estrangeiro. Afinal, quando os jovens chineses da Praça da Paz Celestial mobilizam-se, sabem que tipo de mensagem estão transmitindo para o Ocidente. Mas por que os orientais foram praticamente forçados a aprender esse significado e os ocidentais, por sua vez, não compreendem a visão dos orientais?

A Comunidade Comum Européia está no plano do comum ou do uniforme?

Bruxelas é uma máquina de uniformização. Para começar, qual será a língua que falaremos na Europa? Como a Europa será inovadora se ela não levar em conta que boa parte de sua inventividade se deve à pluralidade das suas línguas e culturas? Foi por não cessar de se reinterpretar, de uma língua à outra, começando pelo grego e pelo latim, que a Europa se fecundou e se renovou. Pois este esforço permitiu não apenas a expansão de conceitos, como ainda a relativização de pressupostos de uma cultura a partir de uma externalidade. Foi assim que a filosofia, por exemplo, ganhou uma natureza translinguística, mas também teve acicatada sua criticidade. Na Europa, pensar é também traduzir. Se os filósofos são gregos, a filosofia nasce em Roma. A dispersão das línguas na Europa possibilitou à filosofia uma capacidade de auto-reflexão.
A uniformização, entre outros simulacros, produziu aqueles da concórdia e da paz. Acreditamos nela, porque ela silencia as divergências. Mas não nos enganemos sobre a sua verdadeira natureza: quando a uniformização não responde a fins de pura rentabilidade, é burocrática, absorvida por medidas anônimas, muito mais do que efetivamente democráticas. Uma Europa feita pela uniformização e pela redução das diferenças será estéril e incapaz de se mobilizar. Como empresa de homogeneização, ela relega à heterogeneização as forças mais pobres, menos fecundas, quais sejam, as dobras identitárias e as recusas teimosas daquilo que já não mais aparece como construção incontestável, como construção comum, como uma lógica da História.
Cada época tem a sua forma de resistência, ostensiva ou discreta. Definamos a nossa: o deslocamento, a diferenciação, é o conceito de uma resistência cultural ao mesmo tempo ética e política.
É possível a construção de um novo universalismo capaz de contemplar a diferença, mas sem se diluir na miragem do relativismo cultural?
Sim, e isto pode se dar pela inter-culturalidade, pelo diálogo efetivo entre as culturas. A chance de escapar à pretensão de universalismo aplastante, de um lado, e, de outro, ao abandono relativista das diversas culturas às suas próprias perspectivas singulares e aos seus destinos únicos, é a grande oportunidade da época em que vivemos. Somos a primeira geração à qual a mundialização permitiu viajar mais livremente entre as culturas, no sentido, justamente - em oposição à uniformização estéril -, de poder circular por inteligibilidades diversas para promover, através delas, uma inteligência comum - coisa que não tem nada a ver, bem entendido, com uma cultura única.
Voltemos, como exemplo, aos direitos humanos. Como conceito, como abstração separada da sua cultura de origem, eles podem ser comunicados aos outros povos. Como abstração, os conceitos podem ser manejáveis, identificáveis e transferíveis, tornando-se um instrumento privilegiado de diálogo. A radicalidade conceitual dos direitos humanos está em se apropriar do humano em seu estágio fundamental, enquanto recém-nascido. Esta concepção é transversal e emerge em outras culturas.
O filósofo chinês Mêncio estabelece a consciência da "piedade" como essencial ao humano. Qual homem assiste indiferente à cena na qual uma fera arranca dos braços da mãe uma criança de colo? Na piedade, um indivíduo identifica-se com o seu semelhante. Aqui, ao invés de intersubjetividade, existe transindividualidade, no sentido de que todos os indivíduos estão ligados a uma essência. Para todo o homem, portanto, existe alguma coisa que ele não faz e que ele não pode suportar que aconteça aos outros.
Conhecer o Outro é humanizar e ampliar a moral, restabelecendo a possibilidade de sua refundação e permitindo buscar uma moral que admite a crítica da suspeita.
Assim, como ferramenta de protesto, como instrumento insurrecional, os direitos humanos alcançam uma utilidade mais ampla, abrindo brechas numa totalidade satisfeita, acendendo ou reacendendo nela uma aspiração, dimensão que pode gozar grande utilidade para todas as culturas. Por esta razão, valeria a pena abrir mão da pretensão universal dada em benefício de uma perspectiva universalizante, que sinaliza para a idéia de que o universal está em curso e pode operar como agente promotor, adaptando-se às especificidades culturais. Assim, se deslocaria a questão do teórico para o prático, da verdade para o recurso.
Enfim, um humano desviado por suas diferenças e estabelecido na auto-reflexão não corre, ao contrário do que se poderia imaginar, riscos de se decompor. Pois se permitirá a emergência de um universal liberado dos universalismos instalados aos quais costumamos nos render, destravado das totalidades dadas, desfeito de seus revestimentos ideológicos. Um universal que não cessará de desimpedir renovadamente as condições de possibilidade de um comum sempre ameaçado pelo estreitamento. E, assim, o senso de humano não conhecerá mais limites para crescer e se desenvolver.

Como se processa o diálogo intercultural?

É sobre o plano cultural, mesmo entre os Estados-nação, que se jogam doravante os principais confrontos. A pretensão do Ocidente à universalidade o leva cada vez mais a entrar em conflito com outras civilizações, em particular o Islã e a China. O diálogo emerge aqui como opção e em oposição ao choque. Não se trata, portanto, de afirmar a noção de "identidade cultural" fundada sobre a diferença, e, sobretudo, sobre uma concepção simplista e reducionista que caracteriza as culturas com base em seus traços mais óbvios, o que é inevitável fonte de antagonismos, mas de reconhecer a fecundidade dos distanciamentos e das diferenciações culturais como fonte a ser explorada.
Samuel Huntington, assim, se vale de instrumentos rudimentares de determinismo cultural para alcançar conclusões reacionárias. Por que fundar, por exemplo, a pretensão de uma tradição européia sobre o Cristianismo e não, também, sobre o ateísmo?
Ao contrário, o pensamento contemporâneo está precisamente engajado num dispositivo de auto-reflexão do humano. O humano se reflete - no sentido de se visualizar e de se meditar - quando confrontado ao diverso. Ele se descobre por meio das facetas iluminadas e desdobradas pelas múltiplas culturas, na tradução de sentidos entre uma língua de partida e uma língua de chegada, na des- e na re-categorização de tradições de pensamento.
O diálogo é uma estrutura eficiente e operante que obriga cada uma das partes a re-elaborar suas concepções. Mas em qual língua se daria este diálogo? Digo, sem temer o paradoxo: cada um dialoga na sua língua de origem, mas traduzindo à outra. A tradução obriga a re-elaborar conceitos do Outro no seio de sua própria língua, portanto a reconsiderar seus próprios implícitos, para torná-los disponíveis à eventualidade de um sentido alternativo. Longe de ser uma deficiência, como obstáculo e fonte de opacidade, é a necessidade de traduzir que faz trabalhar as culturas entre elas mesmas. A tradução, a meu ver, é a única ética possível do mundo global que vem aí. É por isso que penso serem os tradutores profissionais-chave no mundo que estamos construindo.

Uma sociedade pode erguer-se a partir da espinha da inter-culturalidade?

Talvez o Brasil seja um país que não apenas faz permanentemente um diálogo intercultural com o exterior, como ainda tenha efetuado um diálogo intercultural interno. Ali as fronteiras entre a cultura popular e a cultura erudita parecem ser tênues. Da mesma forma, o país parece estabelecer pouca resistência às influências culturais exógenas, o que não implica numa descaracterização local ou numa vassalagem. Estímulos internos e externos parecem estar em permanente estado de fusão.

Qual a função do intelectual na sociedade contemporânea?

Na era da mundialização, o engajamento do intelectual não é mais o do posicionamento extremado, em busca de uma radicalidade de princípios, que conduz ao antagonismo de posições. Mas consiste em revelar por quais vias aquilo que parece ruim, ou mau, aquilo que conforma a alteridade, encerra fontes inexploradas ou invisíveis para a descoberta de uma fecundidade possível e cooperativa. E, ainda, num movimento inverso e complementar, em incentivar a diferenciação do pensamento, rearranjando as possibilidades do dissenso de forma a trabalhar ao encontro do consenso, no qual o pensamento, quando não inquirido, está sempre ameaçado de adormecer e de se estiolar.

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Gunter Axt nasceu em Porto Alegre, em 1969. Bacharelou-se em História pela UFRGS, onde também defendeu dissertação de mestrado, em 1995. Doutorou-se em História Social pela USP, em 2001. Desenvolveu pós-doutorado junto ao CPDOC da FGV-RJ e foi professor visitante na Université Paris VII, Denis Diderot. Foi consultor de várias instituições, dentre as quais o Poder Judiciário e o Ministério Público do RS, o Conselho da Justiça Federal e o Supremo Tribunal Federal. É pesquisador associado do Laboratório de Estudos da Intolerância (LEI), da USP. Escreve regularmente em revistas de cultura e política, de São Paulo e de Porto Alegre. Entre artigos, livros e capítulos de livros, publicou diversos títulos, tendo se especializado gestão cultural e em história política, econômica, judiciária e cultural do Brasil.

www.gunteraxt.com

Sonha-se-me o tempo e a memória

A Maria Sarmento, por nos sabermos vivos e unos.

Sonha-se-me o tempo e a memória, o espaço breve dos dias, de todos esses dias que foram lugar de tempo, de imensidão, de vício, de tremenda apatia pelas águas claras, na visão de pessoas e lugares. Como éramos ingénuos a pensar que era ali que começava a diferença… Como éramos simples ao olharmos as realidades com mãos de vagar… Como éramos crentes ao acreditarmos que os deuses tinham novos rostos e a nossa cegueira outra luz!...

Que é das memórias, que é dos vícios, que é dos instintos que sempre se nos segredaram nos dias e se prolongaram nos gestos, mesmo os menos nítidos, os desafiadores de sistemas e orgulhos, tanto quanto de realidades e presenças?!... Quantas vezes corremos de mãos dadas a caminho do nada, que era a realidade que se nos colocava à frente, e sorríamos quando nos apercebíamos que o lugar desse nada era o lugar da realidade onde procurávamos a razão e o mito?!…

Isso, isso mesmo. Que é do tempo e da memória que deixámos há muito tempo e nos entristece a recordar? Como se tivéssemos tempo de ter tempo!... Que a luz seja sempre o que nos anima as mãos e não tanto o que nos anima o olhar.
Mesmo na saudade!

sábado, 21 de novembro de 2009

Um poema de Fernando Pessoa, cantado por Mariza

A princesa e o ourives, de Rumi.

A Isabel Santiago, este conto fiado da memória.
Havia uma vez um rei que tinha uma formosa filha, luz dos seus olhos, esperança viva do seu coração, que subitamente caiu doente. Toda a corte sentiu um súbito obscurecimento, como se uma negra nuvem ocultasse o sol do gozo e o entendimento. O rei procurou os melhores médicos da corte e do reino mas sem resultados. O estado da princesa piorava, o seu pulso latejava irregular, o seu rosto perdia cor e a sua vida parecia fugir, inane e melancólica. Os doutores contemplavam impotentes o seu estado: poções, ervas e filtros pareciam acrescentar a doença da princesa. Aquela noite o rei compreendeu que em todo esse tempo tinha confiado unicamente nos seus esforços e nos dos seus médicos, esquecendo-se de dizer: Insh'Allah!. Se Deus o quiser! Quando o homem esquece a fonte da generosidade volta-se estéril e impotente. O rei, ajoelhado, chorando como uma criança pediu perdão com toda a sinceridade do seu coração. Essa mesma noite recebeu um visitante num sonho quem lhe anunciu que no dia seguinte apareceria um médico na corte, venerável ancião de cabelos de neve. Devia recebê-lo e facilitar-lhe tudo o que pedisse. E assim foi. O rei, inquieto, olhava desde o seu palácio os caminhos tentando distinguir um viajeiro insigne. E ali apareceu, tal e como tinha sido anunciado, o velho físico dos sonhos, dos sonhos... de um rei. Gentilmente foi recebido e, sem mais cerimónias, pediu que se lhe levasse perante a princesa. Houve uma hesitação pelo que parecia um exceso de precipitação e os cortesãos clamaram ao céu quando o médico pediu ficar só com a princesa. O rei aceitou a condição do ancião mas podia sentir os murmúrios de desaprovação que o rodeava. O velho médico sorria com gentileza e graça, e o seu vivo olhar parecia desterrar qualquer dúvida. Ele simplesmente olhou para os murmuradores e eles sentiram que tinham que calar-se. Quando unm homem é realmente um homem não precisa explicar-se muito. A princesa estava inconsciente no seu leito. O médico, na sua solidão, podia distinguir apesar da sua doença, a beleza das suas facções. O sábio começou a falar suavemente, com a sua grave voz, com uma cadência envolvente e serena. Os olhos da princesa abriram-se mas a sua lassidão não a abandonava. Um médico mais, pensou! Tomando o seu pulso o médico começou a lhe fazer diversas perguntas sobre a sua vida, a sua infância, as suas viagens. Subitamente quando menciounou a cidade de Samarcanda o médico notou como o coração da princesa se acelerava. Comprendeu, então, que tinha que seguir essa pista. Falou dos bairros da cidade, dos seu lugares, dos seus homens e mulheres até que desvelou o segredo. A princesa estava fortemente apaixonada de um ourives de Samarcanda. O sábio convenceu o rei de que era absolutamente necessário que o ourives fosse trazido à corte. Com dor de coração, mas confiado na recuperação da sua flha o rei enviou uma carta solicitando a presença do ourives no seu palácio. O ourives, estimulado pela codícia, acudiu rapidamente abandonando a sua mulher e os seus filhos. A princesa e o ourives viveram uma paixão intensa. A princesa recuperou a saúde e o ourives começou a mostrar as suas verdadeiras qualidades: tratava ao rei com arrogância, mostrava actitudes indolentes e era um déspota com os servidores. O rei era infeliz e chamou ao velho sábio:
 - Que podemos fazer, ó velho amigo! Que desgraça assola ao meu reino?. Como posso entregar a minha filha a um meio homem, criado na baixeza e na insolência, na petulância vulgar? Não sou responsável da triste situação da minha filha? Ajuda-me, amigo. 
 - Tudo tem o seu tempo para alcançar a maturidade. É o momento da medicina, disse o sábio enigmaticamente. A partir de então o sábio começou a introduzir na bebida do ourives uns pós que começaram a ter uns estranhos efeitos. A cada dia que passava o ourives perdia o seu cabelo, envelhecia e o seu carácter piorava, voltando-se colérico e obsessivo. A princesa começou a rejeitá-lo primeiro e a sentir nojo mais tarde. Finalmente o ourives foi deixado às portas do palácio como um mendigo, pelos caminhos do mundo. O ancião, pelo contrario, sofreu uma estranha transformação. Cada dia era mais novo, os seus cabelos recuperaram o negro azulado e os seus olhos profundos iluminavam de jovialidade e vida o interior dos seres. A princesa reparou nele e apaixonou-se “do velho”, mas desta vez sentindo o despertar do profundo amor que emanava do sábio como uma estranha força da natureza. O sábio desposou a princesa e o rei foi imensamente feliz até o resto dos seus dias. E acaba Rumi: O amor que é só pelo corpo não é amor, é uma vergonha. Se a história te parece cruel em algum ponto reflecte bem e pensa que os actos de Deus estão além da crítica humana.

Asas de Rilke - Em redor de "O Canto dos Seres"

Fonte da Imagem - Google - Fractal
O intervalo é que nos define. Uma folha de papel branco é uma asa que nos voa na palavra que ganha a distância. O que nos arrebata é o trémulo e crescente ruído de asas, como se um anjo deixasse cair pó fino e colorido, sobre a face surpreendida das folhas, à velocidade da palavra sobrevoando o papel indimensionado do texto. Toca-nos um rio na face. Um rio iluminado é uma líquida procissão de estrelas. O poeta é uma oração. A face é um semeado de férteis sombras das árvores e das flores de cores e perfumes. Um fogo alquímico arde. Estrelas escurecidas ou pedras em fogo fitam-nos súbitas e rápidas. As árvores acenam-nos, benevolentes. Despedem-se dos corpos com sopros de ar no canto das folhas. Os pássaros são o espelho da lembrança de voar. Do esquecimento e do desejo.
Rilke traz um anjo que vestimos de gaze para não cegar com o brilho da chegada à eterna luz cega dos dias: o caminho para todos os lugares. Para cobrir a vertigem, enrolei as asas ao tecido da noite em fios azuis de linho. Cobri a minha face. Revelamos a dor e o canto: tu e eu e o anjo de Rilke. Para ouvir o rumor, o gesto antes da partida, desapareço com a face encostada à humidade do papel, reflecte as letras através da lágrima, as palavras perdidas. Atravessamos através dessas palavras-asas o alto e grande mar. Uma palavra, pena à solta de mim sobrevoa a casa na montanha. E cobre o texto com um manto de céu. O tecido rompe o ar e um pássaro entra pela abertura do tecto do mundo. O pássaro revela-se poema e o choro é uma brisa nos dedos inspirados e crentes do construtor de asas. O lume crepita e o fogo que queima as asas é um corredor para a queda impossível no mar. Uma palavra tecida nas imensas asas do céu é uma estrela que brilha na impossível saciedade do infinito.
Caminhamos com os pés azuis, porque nos dói o espaço vasto do firmamento que contempla o chão do poema. A raiz que aí segrega palavras líquidas e expressões de uma coloração terrena vêem-se no espelho da lua, como se invertida a imagem, descêssemos por um fio de luz regressado ao labirinto. Um canto inaudível nos puxa as asas para cima do labirinto. Sonha-nos, matéria ardente, metal ardido no fundo chão do mundo; sonha-nos uma asa solta na vertiginosa subida: o apelo da luz que quer ser poema. Voltará em expressão de flor e semente à Origem da Saudade, ao firmamento sem regresso que como a nuvem se move, no azul indimensiondo do real florido do mundo. Uma árvore em que as raizes estão plantadas no azul, e são, no final sem fim eterno do movimento eterno a sua água de mar e de céu, a subir na descida do chão azul das nuvens.