quinta-feira, 30 de agosto de 2012

O maior medo que cada um de nós em si transporta é o medo de si mesmo

O maior medo que cada um de nós consigo transporta é o medo de si mesmo, o medo dessa região tenebrosa ou sombria dissimulada atrás de cada um dos nossos instintos, emoções, pensamentos e sentimentos, o medo desse pouco confessável ou ignoto território que, por falta de coragem para o afrontarmos face a face, nos condiciona numa contínua fuga para diante de onde resulta toda a avidez e violência, mas também todas as aparências de virtude e santidade, todos os disfarces de amor e compaixão, todos os projectos de salvação universal, com que impregnamos e iludimos o mundo, a começar por nós mesmos. É nessa treva ou sombra que se oculta o infinito luminoso que somos, o fundo comum e os confins sem fim de todos os seres e coisas. Ter a coragem de atravessar e iluminar essa floresta escura, com mais monstros do que todas as mitologias planetárias, numa jornada solitária e nua, sem armas, escudo ou armadura, com o propósito de libertar o universo da nossa ignorância e um dia regressar para incitar os outros à mesma empresa, é a maior realização a que podemos aspirar. Comparada com ela, a história das civilizações, as conquistas tecnológicas e as viagens espaciais são meros e fúteis jogos de crianças adultas.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Reza Mohsenipour: Progetto Masnavì con Shahrokh Moshkin Ghalam,Improvvisazione

“Um espírito verdadeiramente forte e culto não se preocupa de ser nacional ou estrangeiro"


“Um espírito verdadeiramente forte e culto não se preocupa de ser nacional ou estrangeiro, de se parecer ou não parecer com os outros: busca ser o mais profundo, e largo, e alto, e nobre, e sincero e humano que lhe for possível: se assim resultar parecer-se com qualquer outro, aceita o facto; se resultar não parecer-se, aceita também”.

- António Sérgio, Carta a José Osório de Oliveira, 1932
(publicada por Rogério Fernandes em 1981)

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Relincha quando a raiva, toma conta da palavra. 
Coisas da vida que nenhuma escola ensina. 
Na estrada, um eucalipto, desfaz o asfalto. 
Na vila, uma escola vai ser encerrada. 
Tempos ausentes, perdidos no tempo.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

"(...) nunca como agora foi universalmente pressentida a exigência de se privilegiar o vivo perante o totalitarismo do dinheiro e da burocracia financeira"


“Encontramo-nos, no mundo e em nós mesmos, numa encruzilhada de duas civilizações. Uma acaba de se arruinar esterilizando o universo debaixo da sua gélida sombra, a outra descobre, nos primeiros vislumbres duma vida a renascer, o homem novo, sensível, vivo e criador, frágil ramo duma evolução em que, doravante, o homem económico passou a ser um ramo morto, e apenas isso.
Nunca o desespero de termos de sobreviver em vez de vivermos atingiu no tempo e no espaço existencial e planetário uma tensão tão extrema. Também nunca como agora foi universalmente pressentida a exigência de se privilegiar o vivo perante o totalitarismo do dinheiro e da burocracia financeira.
Nunca, em suma, tantas populações e seres particulares foram presa de uma desordem em que se misturam a mais amedrontada servidão voluntária e a tranquila resolução de destruir, sob as vagas do prazer e da vida, os imperativos mercantis que emparedam o horizonte.
- Raoul Vaneigem, A Economia Parasitária, tradução de Júlio Henriques, Lisboa, Antígona, 1999, pp.9-10.

domingo, 5 de agosto de 2012

Águia Cobreira



Nas noites quentes de verão, Robin desenha a lua no pátio. Em silêncio conta as estrelas. 

- Vou pedir à 'águia cobreira' que me leve até ao céu. Quando chegar no limite das nuvens, salto entre as estrelas cadentes até conseguir encontrar uma que me abrace. De longe verei o mundo pequenino. Os homens que hoje me assustam serão tão minúsculos que não me perturbarão mais. Vou cantar alto de braços abertos e dançar como se o céu fosse parte de mim. Entre as nuvens serei mais uma que se dilui na chuva, até ser nuvem de novo. Nas noites frias escondo-me do outro lado do mundo onde o sol vive todo ano. Se a saudade apertar meu peito, desenho um poema até que a dor seja apenas a lembrança do sofrimento. 
De vez em quando, peço à 'águia cobreira' que me leve ao oceano e fique comigo até que eu canse meu corpo e queira regressar ao céu antes do sol raiar.

- Este ano a águia não apareceu. Tens de esperar que o mato seja aparado e as cobras fiquem a descoberto. A águia precisa de as ver à distância. Voar com destreza até que as cace inteiras. Umas são vermelhas e pretas, outras tão verdes que nem a cobra as distingue. Quando a terra estiver castanha elas mudam de cor. Temos de cortar o mato, descobrir as cobras, antes que elas nos mordam as pernas e nos envenenem por dentro.

- A águia vai aparecer. Faz parte da vida dela, esteja o mato aparado ou não. Por isso é a águia cobreira. Depois quando o perigo não for senão o perigo, voarei com ela…

- Anda agora, que a noite é quase manhã e a águia foi-se deitar. Amanhã aparo o mato, dou-te um abraço apertado, escuto teu coração e te beijo com amor, para que possas voar em liberdade…

Nas noites de lua cheia choro a saudade que tenho dele. Não sei se foi a águia que o levou, se foi o mar que o abraçou.

Nota: A expressão 'águia cobreira' foi inventada por um amigo pequenino de 6 anos, que me explicou que ser uma águia que caça cobras.

sábado, 4 de agosto de 2012

Para uma cultura da profunda idade

Ou da profundidade.
Partamos do mais baixo, o tapete.
Sacudamo-lo para que se liberte do pó que por debaixo lhe escondem.
Liberta-se o tapete do pó e sacode-se à janela a poeira.
Já está mais perto de ser um tapete voador. Basta uma mais forte aragem.
Mas lá está o estore, o guarda da saída que não lhe permite altos voos.
Conforma-se o tapete à entrada ou à saída.
Sonha-se voador, como nas estampas das histórias da infância. Também teve infância, o tapete.
Como a vassoura, quando voava sob bruxas.
É curioso este padrão do imaginário de culturas aparentemente opostas, como são a ocidental e a oriental, para pôr a voar os que no chão têm o destino ou a vocação. Vassoura e tapete.
Voadores exímios.
Quando no chão, varre a vassoura o tapete e às vezes para debaixo dele. Porque os objetos são comandados pelas mãos.
Afundo-me então nas mãos. Olho o tapete à janela e imagino mãos pequenas, magras, franzinas, talvez sujas, operando nos fios. Homens, mulheres, crianças, agachados sobre um chão sem tapetes tecem o tapete que agora sonha voar, talvez pela memória dos pequenos artesãos tecendo e sonhando com tapetes voadores.
Que longe estamos desta realidade? A exploração de uns pelos outros é coisa de países subdesenvolvidos? Que memória fraca temos! Que olhar de superfície adotámos!
Aprofundemos o olhar no chão, para lá do tapete, mais fundo, muito mais fundo, e ver-nos-emos.