sábado, 30 de janeiro de 2010

Os livros que não li
Povoam a minha alma
Em noites de solidão
Onde a dor de pensar
Se manifesta.

De que falarão?

Vejo os índices.
Os temas surgem
Em catadupa.

Tudo quero ler
Num instante
Como se o tempo passasse

E nada pudesse permanecer
Guardado na minha memória.

Se não os leio
Como preencherei
O resto do vazio do meu intelecto,
Sempre,
Insatisfeito?

Ali estão,
Os livros que não li,
À minha espera na estante!

Apelam-me!
Mas são tantos,
Ainda!

Isabel Rosete
30/11/2009
Há um Espírito errante que nos percorre
Cobre as nossas faces des-protegidas
Invade a nossa morada
Nunca a salvo de qualquer perigo.

Por entre a seiva da Vida
Corre o esgoto
Das mentes pálidas;

A podridão do horror
O enfado do tédio
A escuridão,
Cega e surda,
Das franjas deixadas pela inveja.

Despimo-nos do tédio
Enfrentamos as multidões dispersas
Invisíveis aos olhos maledicentes
Das bocas preservas.

Agoiros pronunciam,
Em nome do desespero egoísta
Que lhes corrói as entranhas.

Isabel Rosete

sábado, 23 de janeiro de 2010

Pensamento EnTre-Abimos

O poeta é um ser autofágico. As páginas dos seus livros e o Silêncio das suas palavras, voltam-se para dentro e devoram-lhe, demoradas: alma e olhar. EnTre eles, alguém espreita.

Vazio espelho do desejo de plenitude. Frente ao porto onde os barcos partem sem regresso para uma viagem sem ser. Uma viagem que nem isso é. Um estar. É enTre o algures desse nenhures que estamos.

As palavras batem no peito, cadentes. Sinos ecoam enTre as montanhas de pedra e as casas junto ao mar. Um coração vai ao encontro da noite e entra num porto sem sentido. Entrado no labirinto do Nada, tudo é Nada fulgurante.

Com uma estrela que fosse o negro mais ausente, és para a luz um nada, mas na luz que retorna iluminas o mundo, semeando-o divino. EnTre-Unviversos.

É o mistério, o sem existência e sem nome, que chamamos desesperadamente, quando o grito cai na água e não se ouve um único ruído nessa queda. É EnTre eles que subimos

Caíste no abismo de mim. Talvez tenha sido nessa absurda luz que nos não encontrámos. Como poderia isso ser? Um abismo a engolir um mesmo abismo? EnTre-Abismos

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Hans Küng, colaborador da ENTRE, sobre o diálogo inter-religioso, a ética global e a Igreja Católica



O Professor e controverso teólogo Hans Küng fala sobre a necessidade do diálogo inter-religioso e de uma ética global para a paz mundial, bem como sobre a situação da Igreja Católica. Hans Küng honra o número 1 da revista ENTRE com um inédito que já nos enviou.

arevistaentre.blogspot.com

Uma pequena história do não


Enrique Vila-Matas. Bartleby e companhia. Trad. Maria Carolina de Araújo e Josely Vianna Baptista. São Paulo: Cosac Naify, 2004.


Partindo de “Bartleby, o escrivão”, conto de Herman Melville, autor de Moby Dick, Vila-Matas fala de nomes menos ou mais famosos de todo o mundo, que sucumbiram ao que ele chama síndrome de Bartleby. Não o faz porém em um texto corrido, mas sob a forma de notas, que hipoteticamente pertenceriam a trabalhos sobre esses autores. Em todas essas notas, o espanhol Vila-Matas discorre sobre as razões que teriam levado tais autores a desistir ou renegar a literatura ou algum tipo de arte, depois de haver produzido uma obra promissora.

O próprio autor das notas, um personagem fictício, seria ele mesmo um adepto da literatura do Não. Seu texto, fragmentário e fissurado, compõe uma imagem física da hesitação e do desalento que levaram esses autores à desistência e à pura contemplação. Assim como acontece com Bartleby, eles parecem repetir “preferiria não o fazer”, quando por exemplo Kafka, em um domingo chuvoso de julho, “sente-se invadido por uma total paralisisa de escrita e passa o dia olhando fixamente para seus dedos, presa da síndrome de Bartleby”.  Ou quando, com a Segunda Guerra Mundial, “a linguagem ficou também mutilada, e Paul Celan pôde apenas remexer uma ferida iletrada, em tempos de silêncio e destruição”.

O “espanhol velho e corcunda” inventado por Vila-Matas para escrever esse livro sui-generis – e delicioso – tem uma longa nota sobre Jerome David Salinger, que deixou de escrever depois de publicar quatro livros “tão deslumbrantes quanto famosíssimos”. Comenta ainda o artigo de Borges a respeito de seu conterrâneo, o poeta Enrique Banchs, também autor de quatro livros – inclusive o famoso La Urna – publicados no início do século XX, após os quais silenciou durante 57 anos, até sua morte em 1968.


Até um dos heterônimos de Pessoa, o suicida barão de Teive, autor de um breve e único livro, A educação do estóico, “fala dos livros que teria escrito, não fosse o fato de ter preferido não escrevê-los”.  O barão se matou, e para isso parece ter contribuído “a descoberta de que até Leopardi (...) estava impossibilidado para a arte superior.” E pior, Leopardi fora capaz de escrever uma bobagem como “sou tímido com as mulheres; logo, Deus não existe”.  Para o barão, isso provava que, em matéria de arte, “não havia nada a fazer, apenas reconhecer uma possível aristocracia da alma”. Ou talvez tenha pensado: “somos tímidos com as mulheres. Deus existe, mas Cristo não tinha biblioteca, nunca chegamos a nada, mas ao menos alguém inventou a dignidade”.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

que os teus abraços abertos sugiram o voo
e que na brandura do sono a tua cabeça seja o ceptro
onde nenhum servo põe a mão,
pois só tu és águia na raiz do firmamento

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

36,5 ºC

Acaso
:fogueira rápida
antecedente à da boca
o fim na intimidade da intenção
Assim é que nada derrete
nada em nós
sofre
nada nem amolece
Socorre?


Um carro levando presa na roda
chuva não escanteada
silenciosa
enfim, há nas coisas do dia
alguma pura maldade

A vida a sério e a morte da (na) seriedade


“Nada há mais lisonjeiro para os amadores do génio do que conceber o génio como todo-poderoso senhor da vida dos homens. Mas quem zela mais a verdade do que os senhores homens de génio sabe que o génio ou é espírito ou nada é. Se é espírito, ele não pode conduzir, dirigir, guiar, coisas estas que o espírito ignora (o espírito verdadeiro mostra, não conduz). Muitos homens puseram, certamente, o seu génio a servir as próprias ambições. Eles quiseram conduzir, dirigir, guiar, acabaram por ser conduzidos, dirigidos, guiados para o que muitas vezes não esperavam, e não poucas vezes para a morte ou para a ignomínia. Os séculos volvem uns atrás dos outros e os homens de espírito vão atraiçoando a sua missão continuam a pregar que conduzem, que dirigem, que guiam. Ora quando todos os homens compreenderem o não-sentido disto e se convencerem de como cada um cumpre guiar-se a si mesmo, convicção que não seja mera convicção externa, mas que traga consigo o sentido da necessidade de transmutação profunda dos valores do sentir, saber e julgar nela implicados, o sentido do esforço pessoal e de incomunicáveis resultados a realizar para atingi-lo, começará a vida sobre a terra. Até isso só poucos vivem, até lá está-se na fase de preparação da vida, não na vida.”

|José Marinho, “Sociedade e rebanho”, in Ensaios de Aprofundamento e Outros Textos, INCM, 1995, pp.123-124.

"... é respeitando a diversidade em que tudo se manifesta, que podemos verdadeiramente afirmar a unidade para que tudo tende"

"O pensamento político tem como o religioso o grave escolho do dualismo. Mas há para além do pensamento dualista um pensamento unitário, como há para além do ser dicotómico um ser uno. No desenvolvimento da existência do homem singular ou do homem em sociedade se vão estabelecendo distinções entre alma e corpo, espírito e matéria, ideal e real, bem e mal, verdadeiro e falso, sábio e ignorante, governante e governado, nacionalismo e internacionalismo… Mas o homem que em cada uma delas se manifesta não está em qualquer delas inteiramente: assim numa ideia ou num sistema de ideias não está todo o pensamento do homem, assim num acto de amor ou numa vida de amor não está esgotado o amor.

Importa, pois, caminhar para além das opiniões, não por um desejo de que a unidade fosse, mas pela certeza de que existe. O sentimento de sermos implica unidade, mas uma é a unidade que nos é dada com o ser, e esta é obscura, precária, e para manter-se solicita o seu contrário; outra é a unidade pura e inalterável. Para ela a verdadeira vida é incessantemente caminhar, pois por ela tudo existe. Mas não é unidade absorvente, não é qualquer pálida e majestosa uniformidade. Realizamo-la não negando o que somos, mas procurando cada vez mais pura consciência do que tendemos a ser. E assim não há um partir para a unidade suprimindo a diversidade. Mas antes é respeitando a diversidade em que tudo se manifesta, que podemos verdadeiramente afirmar a unidade para que tudo tende"

- José Marinho, "Sociedade e Rebanho", in Ensaios de Aprofundamento e outros textos, Lisboa, INCM, 1995, p.127.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Nómada

Para a Isabel Santiago,

A Saudade

India 2005 - "Namasté! " - Fotografia de Teresa Lamas Serra

Pois que a saudade vence a irreversibilidade do tempo e a distância do espaço, efectua a síntese, ou mais a união do espaço e do tempo, anulando sua aparente diferença e desunião: e anulando-os finalmente como forças terrenas.
Se quisermos apontar na espiritualidade mundial outro princípio semelhante e inserto numa dada filosofia, lembremos o ioga na filosofia indiana. A saudade é, tal o ioga, na sua vera tradução, união. E ambos como dimensões específicas de duas grandes espiritualidades mundiais; situadas, uma num extremo atlântico da Europa, outra no centro da Ásia. E duas formas diferentes que tomou o mito da reintegração, o que está primordialmente na saudade e no ioga. E ambos como disciplinas de ascese, visando a perfeição do ser e estar no mundo, num estado de consciência superior.
Digamos ainda que a saudade, tal como o ioga, é uma experiencia metafísica e um método do homem ultrapassar seus próprios limites.
E ambos uma via tradicional da sua cultura, abrindo novas e insuspeitas perspectivas e possibilidades ao ser humano. Oposta no espaço terreno ao ioga na Índia, a saudade demonstra-se semelhantemente como meio de libertação do humano à medida cósmica. Mas, notável diferença, a saudade, pelo homem português, levou esse princípio à sua manifestação na História pela Descoberta da terra e do céu. Embora haja também no ioga esta dimensão cósmica, ela não se projectou num acto histórico realizado efectivamente na realidade. Na introversão da alma indiana e não-vontade de intervenção no mundo alheio, mas voluntariamente limitando-se sobre si, não houve essa outra projecção no plano histórico, tal como a nação portuguesa; uma concepção espiritual traduzida extrovertidamente num feito à medida universal, abrindo novo ciclo, a Idade Moderna.
Dizíamos que a saudade e o ioga, são duas vias tradicionais de suas culturas, pois ambos detendo raízes duma outra cultura arcaica, de povos indígenas, antecedendo a vinda dos indo-europeus: na Índia, dravidianos, na Galécia, lígures. Heranças pré-arianas, tal como seu culto comum da Grande-Mãe (…)

COSTA, Dalila Pereira da – As Margens Sacralizadas do Douro através de vários Cultos. Lello Editores, 2006, p.101.

Um Jardim na Neve

Quando anoitecia, a menina saía de casa, abria a porta, depois de ter fechado todas as janelas e ía ver anoitecer sentada na neve. Em cada dia de Inverno a menina, desde que houvesse neve, semeava sentada na neve os seus sentimentos mais fundos. A menina via o sol escurecer a neve como o carvão e fechava, como a luz do sol, os olhos. Fechava-os e chorava. Não se sabe por que chorava, nem o que pensava. Pela manhã, tudo estava liso no chão branco. No jardim nada revelava do que havia sido guardado naquele solo branco. E todas as noites a menina voltava, e sentada chorava. Chorava sem ruído. Pela manhã a neve estava branca e lisa. E a menina não pisava, quando saía, a neve onde estivera sentada. Rodeava o chão branco e havia até quem dissesse que voava. A menina regressava à neve desde muito pequenina, ali descansava e repousava o segredo que de dia a agitava. A menina repetia esse gesto desde cedo e por isso já todos julgavam que seria para sempre. Nesse sítio do jardim onde sentada chorava nunca nada despontara. Uma flor, uma erva, uma árvore de fruto. Solo infértil, solo de segredo e não solo de semente, ali a terra permanecia fechada e nada abria, nada se revelava para além do imenso silêncio da cor escura, da cor calada da terra desolada. Um dia um nómada, vendo o jardim tão florido, perguntou, quando passava, ao jardineiro da casa: “olha lá, por que razão nada há no meio do jardim?” O jardineiro respondeu, com uma rosa aberta na mão, “por causa do segredo de que a terra não quer abrir mão.” O jardineiro continuou: “deves estar bem habituado homem que anda de terra em terra, deves estar bem habituado a ouvir contar histórias assim, por isso, e se é segredo, nada perguntes, nada indagues. O segredo é aquilo que não pode ser depositado sequer na nossa mão. Queres pão dar-te-ei que comer, queres vinho, dar-te-ei de beber, tens frio, dar-te-ei de vestir, mas não te posso dar que contar o que não cabe na tua mão.”
O nómada aceitou o pão, o vinho e a roupa. Um capote parecido com o que havia num velho livro que um dia recebeu de uma menina que, para encher os dias de mérito e poesia, leu tudo o que havia para ser contado. Mas nunca tinha encontrado nada como aquilo. Um jardim sem centro, um jardim abandonado em torno de uma coroa de flores e de cheiros, de borboletas e pássaros cantantes! Que jardim seria aquele sem meio e por tanta beleza e abundância circundado? Tentou distrair-se com outras coisas da aldeia. Conheceu o moleiro, o pastor, o professor, as crianças, e de todos acabava por ouvir as mais belas histórias mas ninguém contava a razão de ser daquele jardim. Como estava a chegar o Inverno, e temendo ser apanhado nas montanhas altas que separavam a aldeia das outras aldeias, resolveu esperar. Dormia debaixo de uma oliveira que se curvava e exalava já o cheiro do seu néctar que ele tão bem conhecia das lamparinas de Inverno, quando à mesa recebia o acolhimento dos que naquele tempo ainda davam, a troco de nada, a ceia, a companhia, o tempo, a disponibilidade. Depois o pastor ofereceu a oficina onde guardava as ovelhas mais pequenas e a criança mais nova a sua casa pendurada na árvore. O nómada pensava que era bom ter tantas casas e não ter nenhuma, que era bom não ter nome em vez de só ter um, que era bom conhecer em vez de ser só conhecido. Pensava até que estava a aprender a distinguir o bem do mal. Os bons do mal. Talvez um dia quando encontrasse o que tanto procurava lhe pudesse dizer: eis o que foi amado sem rosto, o sem nada. O que foi amado e que era Ninguém. Nada tinha e tudo procurava.
Mas numa madrugada ainda de Outono, tendo arrefecido muito nessa noite e por isso tendo começado a nevar, viu levantar-se do chão a menina coberta de branco pelos ombros do centro fechado do jardim. Nada disse e ficou apenas a olhar. A Menina não chorava mas caminhava de olhos fechados. Os lábios continuavam em silêncio a falar, mas de nada adiantaria tentar escutar. Os lábios falavam uma língua sem som. Uma língua só com movimentos de quem tem um dom. Mas que dom seria o dela que a fazia chorar? Pela manhã viu-a sair de casa, coberta de roupa quente e sem chorar. A menina amava os meninos que chegavam sem pais ao orfanato. Como não se podia entrar por ali adentro, ninguém sabia ao certo o que fazia a Menina que chorava e semeava o seu sentir no chão branco da neve. Às vezes os meninos contavam que ela os amava de uma maneira sem igual. Que andava com eles ao colo até os ensinar a andar e depois lhes contava histórias para os ensinar a caminhar por dentro. Muitos anos depois quando voltavam, os meninos procuravam-na para lhe dizerem que eram felizes. A Menina recebia-os com o seu tom suave e pedia ao jardineiro que ensinasse a arte de construir um jardim. Os rapazes aprendiam a arte e partiam. Nenhum deles pode também semear o que quer que fosse no centro fechado do jardim. Como passou a seguir a Menina, de modo discreto e sem curiosidade ostensiva, o nómada viu chegar muitos meninos e partir meninos partirem muitos rapazes. Aprendeu ele mesmo, por detrás das sebes, a arte de semear e colher. Mas não aprendeu a semear na neve. Tentou um dia, já depois da Menina se ter recolhido, semear na neve rosas de cor carmim. Mas o tempo passou e nada ali despontou. As rosas não se manifestaram. Ficaram presas na terra. Que estranha Perséfone seria aquela? Que estranha beleza cativa daquele ritual seria aquela? Quem era esta Menina? Que nome o seu? Foi perguntando às crianças, aos mais velhos, ao sábio, ao sacerdote. Ninguém sabia o seu nome. Ela parecia ser da aldeia desde sempre. O sábio sabia que ela tinha vindo mais o jardineiro, mas não sabia ao certo quando, a data, o início. Nada sabia da chegada, da entrada. O nómada percebeu que a Menina era aquela que por onde passava apagava os nomes, por onde passava apagava o tempo, que onde se sentava apagava o espaço. O nómada sabia que ela só fundava o amor com gestos e histórias sagradas. Os meninos contavam que ela falava com o tom bíblico de uma voz esperada. Que ela nunca contou nada por si criado, nada que tivesse a ver consigo, nada de pessoal, nada de seu. Uma experiência, um desejo, uma memória, uma esperança. E, no entanto, diziam “fala de tudo o que a nossa alma sente e tem falta e sabe a morada dos nossos desejos, o sentido das nossas experiências, recupera as nossas memórias e activa as nossas esperanças. Havia quem dissesse que ela era Maria. Que ela era como Maria. Que Deus para ali enviara uma mãe para aqueles que não a tinham, que Deus enviara para a aldeia a mulher que ainda falava a sua linguagem. E só a linguagem de Deus. O nómada acolheu a ideia com alegria. Num certo sentido parecia que até ele estava mais próximo do que procurava. Que a ser verdade ele só ali permanecia por ser filho de Maria. Mas a ser verdade que esta Menina era Maria, que chorava ela na neve? Que língua falaria ela no centro puro e virgem da terra por onde nada despontava para além do enraizado silêncio de uma terra que não mostra, não dá a ver o segredo da sua potência, da sua bondade criadora e geradora? E assim, todas as noites de Inverno sentia as lágrimas da Menina, via-as na neve como cristais breves, efémeros e pedia: “dai-me senhor a sabedoria para escutar esta Menina!” Mas Deus não parecia escutar este pedido, não parecia acolher esta prece.
Depois de muito ter repetido este pedido e sem perceber a razão de ser desta recusa de Deus, de Deus que tudo lhe dava na abundância certa que pedia, na simplicidade extrema que requeria, não percebia o nómada por que razão Deus não lhe concedia a verdade da Menina.
Foi ela quem um dia respondeu a esta pergunta e não Deus.
Quando um dia e mais outro me segues, e perguntas a Deus o que queres saber Deus recusa-te a resposta. A verdade não nos chega pela resposta. A verdade vem pelo olhar. A verdade é aletheia. O nómada passou a olhar atentamente para a terra escura, para a terra branca. Mas nada descobria. Nada aparecia escrito ou tingindo de cor ou sombra para que pudesse ler, decifrar, ver, olhar.
Desalentado, mas não impaciente, foi acompanhando a Menina todas as noites. Era nas noites de neve que parecia estar guardado o seu mistério e o seu dom. Parecia tudo igual em cada noite. A Menina sentava-se, a Menina chorava, a Menina erguia-se ao fim de algum tempo e durante esse tempo em que estava sentada, a Menina parecia mexer suavemente os lábios como se recitasse algo inaudível. Mas onde lia ela o que recitava? Onde estava escrito isso que entoava? O nómada não encontrou resposta para as perguntas, e continuava, aliás, a perguntar. Mas ver o quê, para além desses movimentos suaves e lentos, demorados e quase indescritíveis? Esta já era, de novo, outra pergunta. Embaraçado no círculo do seu pensamento, nas zonas de sombra em que o mesmo se fechava não podia deixar de pensar na Menina fechada, também ela, no círculo da neve. A Menina pensaria? De facto, pensar é estar de olhos fechados e enraizado nisso que se pensa, num cenário branco e frio, porque pensar é estar arrefecido para o mundo. Nisto, reparou em algo que não conseguia deixar de ver, agora sim, pela primeira vez: os pés da Menina. Os seus pés, depois de enterrados na neve, vinham deformados, traziam atrás de si formas de gelo como se estivessem, quando imersos na neve, liquefeitos e em água. Reconquistavam a sua forma de pés, apenas e só à medida que o tempo passava e entravam em contacto com o ar, a temperatura ambiente, solidificando e reconfigurando a sua forma perdida. Só então a Menina se levantava e entrava na casa.
Nessa noite, reparara em alguma coisa que lhe tinha escapado das restantes vezes em que tentara ver e nada reparava de novo. Acalentado com a descoberta prometeu a si mesmo que na noite seguinte mais haveria de descobrir e tentar ver. Sentia que aquela poderia ser a noite em que aprendeu a ver e a pensar. O dia seguinte não foi fácil de passar. E, até se perguntou por que razão nunca ninguém falara da casa da Menina. Perguntou aos velhos e às crianças, perguntou ao jardineiro que tinha sementes na mão, “como é a casa da Menina?” Todos responderam não saber, menos o jardineiro. Esse sabia e só sorriu. O jardineiro sabia, e era o único que lá entrava. O jardineiro respondeu ao nómada que “não tardaria muito para que ao olhar para o jardim descobrisse a forma da casa, o seu cheiro, as suas cores e percebesse quem eram os habitantes da casa.”
O nómada esperou perto do muro das rosas. Elas floriam sem porquê, mas eram as mesmas. As mesmas desde que tinha chegado. Eram ainda as mesmas! Eram eternas as rosas. Aquele jardineiro, daquela casa, aquele jardineiro era o responsável por ensinar a todas as crianças que passavam pelo orfanato! Essa consciência tornou tudo muito mais ardentemente desejável. Muito mais próximo do sentimento que orientou a sua demanda, a sua passagem e impermanência pelas terras, pela Terra. O seu contacto com os Homens e o seu desejo de abandonar os caminhos que conduzem a parte alguma. O nómada tinha esquecido o nome do seu nome, a idade da sua idade, a sua origem e o seu destino. O nómada estava em errância e não à procura de si mesmo, ou de qualquer coisa para a qual tivesse nome, ou procurasse uma outra finalidade. Nesse sentido, as rosas eternas do muro e daquele jardineiro pareciam ser o sinal de estar mais perto desse sentimento vago e imperceptível nos seus actos, semelhantes aos de qualquer outro nómada. Esse sentimento sem acontecimento até esse instante, e todavia dava-se também conta da sua permanência dentro de si, encontrava algo afim fora de si, uma correspondência entre o sentimento interno e o real. Não um real qualquer, mas um real eterno. O nómada suspirou e ficou abraçado e enlevado no perfume das rosas e na correspondência entre parte de si e uma parte do real. Havia, e havia sobretudo que reconhecê-lo uma coincidência entre a eternidade daquelas rosas e uma eternidade dentro de si. Já ao final da tarde, quando a menina regressava do orfanato, e ao vê-la mover-se e voltar-se na direcção da Lua ainda encoberta pelas nuvens e pela claridade a rarefazer-se, percebeu que havia mais semelhanças entre a Menina e as rosas. A pele da Menina era da cor das pétalas do roseiral, a Menina tinha o mesmo perfume das flores e tinha uma saia com as mesmas dobras e pregas das rosas. “A Menina seria eterna?” – perguntou-se. Para logo de seguida se recriminar e dizer “não devo perguntar, devo ver!” A Menina não tem pés quando está na neve, porque como as rosas, se alimenta pela mesma água e pelo mesmo rio que corre debaixo da terra húmida. Já não se perguntou que rio. Intuitivamente percebeu que rosas eternas se alimentavam do rio da Memória e não bebiam água no rio da Morte. A Menina seria eterna. Descobriu e viu muito mais coisas nesse instante. E que instante tão fulgurante e quente dentro de si! Que felicidade sem alegria, que exaltação sem objecto, que agitação sem movimento, que fragrância sem limite o trespassou… e que frémito invulgar e irreprimível tocou as suas mãos para a escrita! Saltou o muro para dentro do jardim, esse jardim que sentia como extensão do seu pensamento, um reino que alcançou por ter aprendido a ver as relações invisíveis entre as coisas, por pensar pertencer ao seu ser, e estar em condições de o tocar com a dignidade que todas os corpos imperecíveis merecem. Aquele jardim era a casa do seu pensamento, e só o pensamento tem morada. Se tinha sido nómada até ali, devia-se exactamente ao facto de nunca o seu pensamento ter repousado num lugar em que se descobria e descobria a essência do [ser] descoberto. Aquela era, também, a morada do Amor. Mas isso o nómada ainda não sabia, não podia saber. O Amor só vem depois do reconhecimento, e o rapaz estava ainda e só tomado pelo entusiasmo das ideias poderosas que fazem o eu quebrar a sua vinculação com o vazio, o disperso, o indiferenciado e o anónimo.
Dentro dos muros, e vigiado sem perceber pelo jardineiro e pela Menina, fez com os dedos as seguintes inscrições na neve.

Quando os teus pés tocam a água funda da Memória
Tu sabes, ó Menina, o ritmo dos textos sagrados
Tu soletras a força dos textos ditados pelos lábios divinos
Para as tábuas imemoriais da escrita e das escritas,
Tu reconheces os alfabetos e as grafias múltiplas depois de Babel.
Tu ouves os deuses a forjar os nomes, o fogo a atear as relações entre as coisas e as palavras, tu perscrutas as pausas intermináveis e brevíssimas entre as palavras na leitura e reconstituis o sentido de tudo: da primeira à última das sílabas. Tu rasgas o véu opacizante do tempo e vês a juventude perene dos nomes e da árvore, da árvore cujos frutos são nomes. Nomes para o existente e para o inexistente, o presente e o porvir, nomes para o que se não pode esquecer e tu guardas. O que é semear na neve?

Tinha terminado com uma pergunta. Mas não se deu conta. O nómada adormeceu antes dessa consciência de ter violado a única regra que conduzia à casa. Nessa noite não acordou para ver nem a reacção da Menina, e muito menos se a Menina semeava na neve e nela chorava como nas outras noites e nas outras madrugadas de Inverno, no eterno Inverno daquela terra. Sobretudo daquele jardim.
Não pode assim ver, como afinal tinha desaprendido, o que aqui se revela. A Menina saiu de casa e abriu as portas da casa. Nela entraram todas as crianças e todos os velhos, e todos contemplaram os livros e livros sobre livros que naquela casa forravam as paredes. A Menina folheava para cada um o seu, os seus, e contava partes do que lá estava escrito e que os homens já não sabiam ler. Depois de todos terem ouvido parte de uma história que era a sua e não sabiam ter sido contada e embelezada por Alguém, a Menina sentou-os em circulo no jardim e foi colhendo rosas para oferecer a cada um dos habitantes da terra, daquela terra onde os homens não sabiam ler e não entravam em casas chamadas bibliotecas. As rosas colhidas não morriam e não secavam. As rosas colhidas deixavam outras atrás de si. O roseiral não ficou morto nem sem rosas. Cada uma dava lugar a uma nova rosa, a um novo botão.
Seguramente mais felizes do que nunca, por terem percebido que as suas vidas tinham sido contadas e nelas não havia a miséria que o silêncio e a ignorância podem significar no coração esvaziado dos homens. Todos sentiram necessidade de semear na neve, no manto branco que cobre o rio da Memória que os homens perdem mas a Terra não, e todos guardaram, no canteiro das suas casas, no pomar dos seus campos e nos recantos dos bosques e caminhos, todos guardaram, um circulo fechado para semearem rosas, as rosas da sua vida reproduzível, narrável e florescente. Os homens tinham percebido que nada do que é humano é silencioso e mortal. Tinham percebido que a Palavra é a rosa sem porquê, floresce para perfumar e lembrar que o humano está capacitado para o divino, para salvar as suas vidas do esquecimento e da perda. Da incomunicabilidade entre a vida interior e a vida exterior, entre a bondade da alma e a bondade dos gestos. Mas não tinham percebido aquilo que o nómada leu, quando reconstitui pelos sinais espalhados pela Terra, depois daquela noite de deslumbramento e natal, que os livros são rosas sem porquê, florescem porque florescem, porque são filhos de uma eternidade que nos atravessa e recompensa pelas perdas, dores, medos e sonhos irrealizados. Os livros são como as rosas, o perfume sem velhice e decadência, que transformam a ruína em luminescência, a experiência em ideia, o olhar em visão. E a Menina era, afinal, a leitora de todos os livros e por isso de todas as almas. Chamou, como se gritasse nessa e em todas as noites, pela “ME-NI-NA”, mas ela já não podia escutá-lo. A Menina só sabia escutar os que falavam a partir do branco da página e com os lábios fechados. Escutava livros e vidas que tinham sido deixadas emudecidas pela vergonha e pela culpa, por uma sempre consciência de que somos demasiado pobres para sermos contáveis pelo mistério da Palavra, peregrina contingente das nossas almas, talvez por estarmos demasiado habituados a ser contáveis pela necessidade do número que nos agrupa nas classes de toda a subserviência e determinação. A Menina era a leitora e Eva. A que nua se aproxima da árvore e aprende agora a vencer a serpente não pelo discurso, mas pela leitura. Essa é a sua arma para não trair de novo o Paraíso: enquanto a serpente a desafia, a incita, ela não desvia o olhar das folhas e espera pelo fruto que virá e não já pelo que despontou. Adia o desejo e lê os sinais. Atrai a si os nómadas que, tocados pela sua beleza e silêncio, abandonam a Terra em direcção ao Jardim de Deus. Porque Deus, o Jardineiro, não pode responder às nossas inquietações. Deus só pode cuidar daqueles, que como a Menina foram tocados pelo seu mutismo e o aprenderam a ler nas páginas brancas da vida que são alimentadas pela Memória.
O nómada, não obtendo resposta ao chamamento e ao grito, converteu-se ao mutismo e foi viver na casa que tinha sido da Menina. Estava a preparar-se para começar a iniciação. Pegou num livro e nunca mais adormeceu.