sexta-feira, 26 de outubro de 2012


Minha cara não é feia
Minha mão não tem peçonha
Se eu não me casar
Não é uma pouca vergonha?

Sempre achei que esta era a estrofe seguinte ao poema da batatinha. Depois do jantar, meus pais sentavam-se no sofá da sala de estar e esperavam que eu recitasse. De frente para eles, enquanto declamava passava minhas mãos pela cara, abria os braços e perguntava convicta:
- Se eu não me casar não é uma pouca vergonha?
Então, meus pais batiam palmas e eu tinha a certeza que eles gostavam de mim.
Podia dormir descansada, porque em todos meus sonhos, os príncipes existiam como nos contos de fadas.
O Visconde de Sabugosa, a Emília, o Pedrinho e a Narizinho eram meus fieis companheiros. De dia ou de noite, bastava cheirar o pó de pirlimpimpim, que ganhávamos asas para outras viagens. As madrastas feias eram derrotadas e o mundo podia voltar a sorrir.
Quando aprendi a ler, minha professora deu-me um livro francês, que contava a história de uma baleia azul. Escreveu uma dedicatória dizendo que um dia eu também poderia contar histórias. Durante muitos anos, folheei o livro, adivinhando o enredo através das imagens.
Ficou a vontade secreta de que um dia eu escreveria numa língua em que todas as crianças do mundo reconheceriam. Uma língua que não precisaria de tradução, porque os sons seriam amigos. Abraçariam o coração, fariam cócegas no corpo , ririam e chorariam na cadência das histórias bonitas.
O livro da baleia azul ainda mora comigo. Sei de cor a sua história. Corre pelo meu corpo, agora, a caminho de outra infância.

Batatinha quando nasce
Espalha a rama pelo chão
A menina quando dorme
Põe a mão no coração
...
Se eu não me casar
Não é uma pouca vergonha?

No final da primária, senti uma dor aguda chamada despedida. Eu iria morar longe e nenhum dos meus amigos, nem daqueles por quem eu estava apaixonada seguiriam comigo. O pó de faz de conta, não acalmou a dor.
Na varanda, deitada na rede, ouvindo o mar eu cantava baixinho:

Quem parte leva saudades de alguém que fica chorando de dor
Por isso eu não quero lembrar quando partiu meu grande amor
Ai, ai, ai ai, ai ai ai,está chegando a hora
O dia já vem raiando, meu bem, eu tenho que ir embora

O meu amor eram tantos que juntos eram só um, e era tão intenso o que eu sentia que meu pai ensinou-me que esse vazio tão cheio se chamava saudade.

Disse ainda que umas vezes dói, outras acalma por dentro e nos faz sorrir.

Foi assim acolhendo o dia que aprendi a gostar do tempo que nasce e morre em cada manhã, como se fosse o poema que um dia prometi escrever numa língua em que todas as crianças entendem. Não tem gramática, nem acordos. Conjuga todos os verbos no presente sempre na primeira pessoa do plural, porque nela nos reconhecemos todos.

Enquanto minha mãe toca piano, meu pai ensina-me outro poema.
Este, que mora no intervalo de cada palavra esquecida.

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