À porta do prédio, Helena espera-me, como sempre, com mais um poema.
- Vê lá, se gostas deste.. É o que ando a fazer agora. Não leias, se estás cansada, mas se queres esquecer o teu dia, embrenha-te nele. É o que ando a escrever. Não sei que horas são...
- Já passam das seis da manhã. Acho que vou ler depois de dormir...
Devolve-me um sorriso. Responde-me sempre assim. Ela é a minha vizinha do r/c. Não sei o que faz, para além dos poemas que me ofecere a cada manhã.
"Edito a vida de quem não tem vida, todos os dias", diz a caminho de sua casa.
Se Helena matasse o vizinho do segundo esquerdo, teria um editor. Seria notícia em todos jornais: “Poetisa estrangula vizinho, ao raiar da manhã...”. Em pouco tempo teria um livro publicado com todos os seus poemas. Tenho certeza que seria um best seller.
Augusto é um velho militar reformado. Toca uma corneta desafinada ao raiar de todas as manhãs. Helena está convencida que o homem terá sido galo numa vida passada.
Quando chove, a poeira vira lama. Na mesa da minha sala de jantar, amontoam-se fotografias. O passado ganha contornos de presente. Desenho com os dedos cada traço como se nesse gesto, a velhice fosse somente um breve pesadelo. Deixo que os espelhos ganhem pó e com o tempo se distraiam de mim.
Helena parece não ter idade. Enquanto envelheço a cada manhã, ela parece sempre a mesma com um sorriso que não consigo definir. Os seus poemas moram com as minhas fotos, como se fossem amantes inseparáveis.
Antes de me deitar, em vez de pedir a Deus desculpas por todos os meus pecados, leio. Os poemas de Helena são como a noite morna que aconchega meu corpo.
Dormir de dia, é como andar em contra-mão. O corpo pesa e reage descompassado.
Depois de um banho quente, sento-me a ler o poema de hoje:
“Tudo que nasce é gerado na sombra,
A morte acolhe a semente de uma nova vida”
Doce é esta dor que abraça o meu coração antes de adormecer. Um casal de grilos canta na minha janela.
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