“A vida sem fim”
Conheci a poesia intensa de Ethel Feldman quando a sua paixão incendiária e luminosa visitou o meu blogue Serpente Emplumada e o da revista Cultura Entre Culturas. Porque a poesia de Ethel é isso: fogo e luz. Fogo de um amor cuja saudade o recria em tudo e luz de quem redescobre a eternidade dessa fusão a cada instante. Poesia de mulher total, que assume todas as possibilidades do feminino, da carne ao espírito, em seu âmago se celebra o encontro-beijo redentor que suspende a ilusão de haver dois:
“Sou a puta da esquina, sou a virgem Maria.
Se o teu tempo for só de um segundo será nele que inventarei a eternidade.
Se o teu tempo for de um compasso, que seja de pausa, porque urge o silêncio.
Se for um desenho que seja branco – tão intenso.
Eterno é o momento quando me beijas por dentro”
É esse o tempo “sem hora marcada”, o “tempo sem tempo” e por isso “com tempo de ser”, epifania que advém no seio da mais funda embriaguez, essa em que a amada se torna o vinho que o amante bebe, em versos cúmplices da atmosfera do grande Rumi:
“Dá-me vinho antes do amanhecer
Com o cálice a transbordar
Banha-me nele até que embriagada
Eu seja o vinho que agora bebes”
O beijo dos amantes culmina num “eterno abraço” que fulgura no “intervalo” do existir, vazio e espaçoso, “modo de ser sem ser”, pois esta poesia, de paixão e “fogo-posto” sob a pele, também o é de desprendimento, o sapiencial desprendimento da vida que, tal o poema, renasce a cada instante da própria morte e voa ainda para além de si, pela comunhão desse “presente” onde cessa todo o “enredo”:
“Como o poema que nasce em cada estrofe
Morrendo abro caminho à vida”
“Nascer e morrer no mesmo dia. Entre nascer e morrer – voar.
[…]
Qual é o enredo da vida quando se encontra o presente?”
Tal como a vida que há nela, também de si mesma esta poesia se evade, ciente de só se habitar o mundo a partir do tácito abandono das prisões do dizer:
“Se quiseres continuar a estar
Abandona a palavra que te prende”
Unindo o que visões mais estreitas separam, aqui é a própria paixão que conduz ao cume meditativo em que a presença do mundo se avoluma na consciência de como é “preciosa” essa “vida” que nas mínimas coisas se agiganta, pelos silêncios intervalares que as fazem cintilar na plenitude do vazio que entremostram:
“Parece que o mundo cresce dia após dia. Uma flor que nunca vi. Uma nota que passou desapercebida. A migalha de pão esquecida na mesa. Preciosa é a vida. Cada intervalo de silêncio ampliado até à plenitude deste imenso e fantástico vazio”
Tudo isto porque Ethel, ou quem por seu nome assina, vem de “Outras Paragens”, esse “lugar desconhecido” que afinal todos trazemos “mesmo junto do coração”. Se “em cada homem o universo se exibe inteiro”, este belo e comovente livro é também de cada um e de todos nós. Assim nos deixemos adubar da consciência disso, para que, como diz a poeta, em nossa mão também possa nascer uma “flor”, a flor de na sua leitura nos lermos, desencantando esse mais fundo sem fundo que em tudo sem tardar nos espera.
Obra cuja “façanha” é nascer do coração, bem entremostra toda a imensidade de onde tão singelas e fundas palavras brotam:
“Quem dera a vida nascesse do fim
E os que tudo esqueceram
Amassem quem nunca aprendeu
Quem dera a vida fosse
Um leve calafrio na espinha
Um beijo na boca
Um tímido ai
Um dia sem data
A vida sem fim”
A vida não é porventura senão isso, Ethel. E este Paladar da Loucura, tão “sem fim” como a vida que canta, confirma o que escreveu Platão:
“[…] o delírio, segundo o testemunho da Antiguidade, é uma coisa mais bela do que o bom senso: o delírio que vem de um Deus é melhor que um bom senso cuja origem é humana” (Fedro, 244 d).
Assim é. Assim seja.
Paulo Borges
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