quarta-feira, 10 de novembro de 2010

O gato, o lobo, o menino e Mary Sarojini e seu mainá



Um texto de João Pereira Coutinho, na Folha de São Paulo de 31 de março do ano passado, fez-me lembrar O filho eterno, de Cristovão Tezza, e A ilha, de Aldoux Huxley, relido em março último.
O tema de Coutinho, aprender dos animais, trata de nossa fuga sistemática ao presente, que diluímos entre a bagagem da memória e a ansiedade pelo futuro, deixando para o momento que se vive apenas um naco de atenção e a quase impossibilidade de ser feliz. Explicar isso equivale a dizer que é impossível ser feliz no passado ou no futuro, porque felicidade, queridas pessoas, ou se vive agora, ou não se vive. Existem, sim, a nostalgia da felicidade e o desejo de ser feliz, mas nenhum dos dois pode ser considerado felicidade propriamente dita.
“(...) compre um gato”, preconiza o colunista. “Ele não espera nada, ele não deseja nada. A felicidade, para ele, não existe por adição (...). Mas por repetição: ele repete as experiências que são significativas. E, em cada repetição, existe a certeza da mesma felicidade.” Mais adiante, Coutinho relata a experiência do professor inglês Mark Rowlands, que comprou um lobo, domesticou-o (depois de ver destruída metade de seus móveis e objetos) e conviveu com ele durante 11 anos, levando o animal até para as aulas na universidade. O relato está em “O filósofo e o lobo: lições do selvagem sobre amor, morte e felicidade”, livro ainda não traduzido por aqui, e segundo a crônica “uma longa meditação sobre a natureza da felicidade humana. Ou, se preferirem, sobre a sua impossibilidade.”
Mas se o texto de Rowlands envolve um viés metafísico, no caso do romance premiadíssimo de Tezza o assunto fica restrito a uma experiência existencial, em que seu filho, portador da síndrome de Down, recebido como empecilho a uma dinâmica de vida e trabalho normais, termina por “ensinar” ao pai o significado desse presente sem misturas de que falava Coutinho. Nada fácil, nada a ver com autoajuda. Aqui se trata de uma pessoa humana, que por uma deficiência neurológica está impossibilitada da constante referência ao passado, assim como da construção inesgotável de planos e projeções que a tirem do presente.
Em comum com o gato e o lobo, há um presente “puro”, isento de elementos que o fraturem; mas diferente dos animais, há uma sensibilidade a ser trabalhada e a educação da atividade motora, visando conseguir alguma autonomia física, além de uma afetividade peculiar, que precisa ser atentamente orientada. É um conjunto de métodos e dedicação que busca ajustar o menino a seu meio: repete indefinidamente as experiências que o levarão a adotar o melhor modo de agir, e nisso a família e os instrutores têm um papel fundamental. Não há superproteção, mas estímulos continuados sem descanso. Em outras palavras, o condicionamento não acontece simplesmente por uma compensação fisiológica à la Pavlov, como com os animais, mas por uma série de experiências que não privilegiam a memória, e sim todo o corpo; uma repetição constante que afinal o levará a agir de modo socialmente aceitável e a assimilar alguns conhecimentos de que irá precisar na vida adulta. Do fundo de seus limites, ele não entende, mas vive essa felicidade do momento, e é por ela que se abre caminho para a aceitação familiar e social.
Os personagens de Huxley, em A ilha, agem na linha do psicologismo, mas de um tipo que reforça o papel psicanalítico da terapia da palavra. Logo no início, quando a menina Mary Sarojini e seu irmão encontram Will, o protagonista e narrador do romance, muito ferido e taumatizado, ela põe em prática a cura pela palavra – uma chimney-sweeping, como a chamava Ana O., a paciente histérica de Freud. O procedimento da menina – uma “análise selvagem”, por assim dizer – pretende, e consegue, livrar o navegador dos traumas por que passou com o naufrágio de seu barco e a escalada pelas pedras, ferido e aterrorizado por serpentes ameaçadoras. Ao fundo, um mainá, pássaro da ilha, repete sem parar “Atenção”, “Vamos, rapazes, é agora”. Mary o faz repetir sem parar o que havia acontecido, até que tudo seja relegado ao passado e Will se liberte da desgraça passada para poder seguir o conselho do mainá e viver o presente, que a rigor é o tempo que precisa de toda a atenção disponível.
Acho que a conclusão lógica desses exemplos todos é a de que, excetuando os crentes extremados que preferem se abster de muitas experiências terrenas em favor da vida eterna no Paraíso, continuamos interessados basicamente em conseguir a felicidade durante esta vida. É em torno desse desejo – e em contraponto da morte – que giram nossa razão, nossas pesquisas e a busca de conhecimento.
O pensamento contemporâneo continua correndo atrás das condições que nos permitirão viver a vida de modo mais pleno, e portanto ser mais felizes, quando surgir uma chance de ser feliz. Não acontece todo dia. Nem é tão simples assim. Mas pode-se falar disso de outra vez.

1 comentário:

Leôncio Orégão disse...

Muito bem dito!
Não que esteja completamente de acordo, mas parece-me ser de um realismo indispensável e faz-me lembrar o Nietzsche:
«[...] o Homem, que olha para o Animal do alto da sua humanidade mas nem por isso deixa de invejar a sua felicidade [...]», pergunta-lhe, como se esperara que ele o ensinara: «[...] porque não me falas tu da tua felicidade? O Animal bem que queria responder e dizer-lhe que a felicidade lhe vem do facto de que se esquece sempre do que ainda há um instante queria dizer - mas logo esquece também esta resposta e permanece mudo [...]».
in KGW III 1, p. 244.
E, a propósito, temos também o Pessoa:
«ter a tua alegre inconsciência e a consciência disso mesmo»..:
eis o contraditório desejo humano, que é também, na verdade, o de alguns outros animais...