quinta-feira, 21 de outubro de 2010

"É preciso ter-se separado de muitas coisas que nos pesam, que nos entravam, nos mantêm curvados, nos tornam pesados, a nós, europeus de hoje"



- Caspar David Friedrich, O viajante acima dos nevoeiros, 1817-1818.

"Fala o "viajante" - Para poder examinar de longe a nossa moralidade europeia, para a medir pelo escalão de outras moralidades passadas ou futuras, é preciso fazer como um viajante que quer conhecer a altura das torres de uma cidade: para isso, deixa essa cidade. Para reflectir nos "preconceitos morais" é preciso, sob pena de emitir novos preconceitos, colocarmo-nos fora da moral, subir, trepar, voar até qualquer ponto de vista para além do bem e do mal, na ocorrência passar para além do nosso bem e do nosso mal e libertarmo-nos da totalidade da "Europa", devendo esta Europa entender-se como uma soma de juízos despóticos que nos entraram no sangue. [...] É preciso ser extremamente leve para poder levar tão longe a vontade que se tem de conhecer, para a levar de qualquer forma acima do seu tempo, criar olhos cujo olhar possa abraçar milénios e que neles reine um céu claro! É preciso ter-se separado de muitas coisas que nos pesam, que nos entravam, nos mantêm curvados, nos tornam pesados, a nós, europeus de hoje" - Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência, III, 380.

4 comentários:

Paulo Borges disse...

Teremos ou desejaremos ter esta leveza?...

Leôncio Orégão disse...

«Ah quem tivesse a força para desertar deveras!»
Álvaro de Campos

Paulo Borges disse...

Sim, desertar. Fazer-se deserto, espaço vazio, livre e selvagem!

Leôncio Orégão disse...

Eu estava mais a pensar em abandonar a formação militar, ou em sair da linha de produção em série, ou em não fazer fila à entrada dos museus nem à saída da baixa para os subúrbios... Mas sim, vazio também: não como destino da viagem (, embora tal seja a morte), mas como bagagem, como um meio, recorrentemente necessário e nunca completamente possível (em vida), para encher-se de novas coisas: e até para carregar, por alguns momentos, enquanto fizer sentido, com elas. Se andarmos sempre muito carregados com as mesmas coisas, vivemos uma vida muito pobre, muito limitada e muito repetitiva, ao ponto de já não sentirmos bem, à força do hábito, o que vivemos: e isso é que acaba por ser uma vida exclusivamente vazia e um deserto no sentido de infertilidade. Bem, mas se nada jamais nos pesar, se não nos carregarmos, de preferência voluntariamente, então também não vivemos: "hábitos breves", dizia o Nietzsche na Gaia Ciência, e cada um deles vivido como se fosse o último e o único, vivido com todo o rigor, até que pelo próprio desenvolvimento da lógica do rigor (, como nos místicos medievais), se o transcenda, ou supere (, não em Deus em si mesmo, o que seria uma superação absoluta e um final da história, mas sim em outro hábito breve, em outro ritual). A liberdade serve é para se fazer coisas com ela, como sabe o professor muito melhor do que eu.
Abraço