D. Sebastião
Sperai! Caí no areal e na hora adversa
Que Deus concede aos seus
Para o intervalo em que esteja a alma imersa
Em sonhos que são Deus.
Que importa o areal, a morte e a desventura
Se com Deus me guardei?
É O que eu me sonhei que eterno dura,
É Esse que regressarei.
O segundo poema que tem como título “D. Sebastião” é o primeiro dos cinco “Símbolos” que abrem a terceira parte, “O Encoberto”, da Mensagem de Fernando Pessoa. Nele o poeta volta a dar voz a um rei que – falando sempre como esse ser “que há” e não “que houve”, ou seja, como imortal já dotado da “grandeza” de ser livre da “Sorte” [1] - exorta a que esperem pelo seu regresso aqueles que ainda permanecem escravos da comum condição mortal e humana, reproduzindo a sua submissão ao Destino enquanto cadáveres adiados que procriam [2]. D. Sebastião continua a ser aqui, numa coerência rigorosa, a figura de um rei-Outro, de uma consciência livre e desperta que exorta os que esperam o seu regresso ao mundo dos homens a que não esperem que regresse o mesmo que partiu. Efectivamente, tendo-se convertido No que se sonhou, tendo-se tornado Naquele que se desejou, um ser emancipado do Destino, e sendo isso “eterno”, não pode senão ser “Esse” que regressará. Não faz sentido assim que o esperem com uma expectativa adequada ao que foi e já não é nem poderá jamais tornar a ser, não faz sentido que o esperem com a predominante expectativa sebastianista sobrevivente à possibilidade de regresso físico do rei desaparecido em Alcácer-Quibir e convertida num paradigma da mentalidade portuguesa em épocas de profunda crise e insatisfação, fruto da laicização da esperança messiânica: a expectativa de que surja um mero líder político, redentor da pátria oprimida e decadente, restaurador da ordem e estabilidade ameaçadas e condutor da nação em períodos de incerteza a respeito da identidade e sentido da sua vida histórica. O D. Sebastião de Pessoa exorta a que o esperem, mas não como o Mesmo, antes como Outro: não como mortal, antes como imortal.
D. Sebastião exorta ao fim do sebastianismo comum, recordando que o seu fracasso humano, pessoal e histórico não foi senão o reverso do divino dom de uma oportunidade superior a todo o triunfo bélico e a todo o poder e glória mundanos e temporais, necessariamente fugazes. Caindo “no areal e na hora adversa”, segundo a percepção mundana e exterior, D. Sebastião na verdade acedeu ao “intervalo” da imersão da “alma” “em sonhos que são Deus”, concedido pelo divino aos “seus”, ou seja, aos que o buscam acima de tudo, aos seus amigos [3].
O que são este “intervalo”, esta imersão e estes “sonhos que são Deus”? “Intervalo”, do latim intervallum, é o espaço ou distância entre dois pontos ou lugares, que etimologicamente são duas paliçadas ou trincheiras (vallum), também com o sentido de baluartes, defesas, protecções. O “intervalo”, ainda segundo um dos sentidos da palavra latina, sugere-se assim como o repouso ou descanso da “alma” em algo que não a (pré-)ocupa com a construção de limites e muros autoprotectores, o repouso ou descanso da “alma” a respeito de toda a (pré-)ocupação - mental, emocional, verbal ou física - com a separação entre uma coisa e outra, a divisão entre si e o outro, a indiferença, a defesa e o ataque, a dualidade, o medo e a (in)segurança. Livre de tudo isso, é no intervalo disso tudo, na pausa (outro sentido do intervallum latino) de toda essa agitação, que se pode abrir e absorver plenamente “em sonhos que são Deus”. Ou seja, no contexto da Mensagem, viver a “loucura” daquela ânsia de “grandeza” trans-mundana e transcensão de toda a “Sorte” / condição mortal que se converte nisso e é já isso mesmo a que ardentemente aspira. O desejo veemente dessa “grandeza” insuperável é já a vibrante e imanente epifania do divino. Como escreve Pessoa no poema dedicado a D. Fernando: “E esta febre de Além, que me consome, / E este querer grandeza são seu nome / Dentro em mim a vibrar”. É isso que torna o sujeito “cheio de Deus” [4] e é isso, e apenas isso, que o pode ressuscitar, já em vida, de ser a “besta sadia” e “cadáver adiado que procria” [5], vergado pelas indomadas “forças cegas” ao triste contentamento com a vida doméstica e vegetativa. É isso, e apenas isso, que o pode ressuscitar do tempo dos quatro impérios e operar a sua superação no Quinto, a “verdade” pela qual “morreu D. Sebastião” [6], que obviamente já nada tem a ver com qualquer domínio mundano, seja temporal e político, seja de língua e cultura (o que confirma que o Pessoa da Mensagem vai muito mais longe que o dos textos em prosa sobre Portugal e o Quinto Império). Do mesmo modo que em D. Sebastião o ser “que há” transcende o “que houve”, assim também o Quinto Império transcende o plano onde decorre e se dissipa o sonho dos quatro períodos civilizacionais referidos – Grécia, Roma, Cristandade, Europa - , já não podendo propriamente dizer-se que venha temporalmente após eles, enquanto símbolo de uma possibilidade que transcende o tempo e o espaço e que é a própria possibilidade do homem ou da consciência despertar e se imortalizar.
A alma de D. Sebastião está pois “imersa / Em sonhos que são Deus”. O que é, todavia, “Deus”? A palavra procede da raiz indo-europeia dei, que significa “tudo o que brilha”, donde vem o sânscrito deva (deus), o iraniano daeva (demónio) e o português dia [7]. Deus indica não um ser ou um ente, algo que exista e possa ser objecto ou sujeito perante objectos, algo que possa ser visto por alguém ou que veja alguém, mas antes a própria luz invisível que torna todas as coisas visíveis, em termos inteligíveis ou sensíveis, o ilimitado espaço luminoso que é matriz de todas as possibilidades de manifestação e consciência, o fundo sem fundo de todos os fenómenos, o nada inerente ao aparecimento de tudo [8]. É aí que verdadeiramente cai, imerge e reside o D. Sebastião transfigurado, que realiza a suma potencialidade de todo o homem. É nisso que se guarda, baluarte sem defesas e assim inexpugnável pela derrota no “areal”, “a morte e a desventura”. É Isso, afinal, que se sonhou e tornou, num sonho / desejo / imaginação criadora (ou desveladora) que converte o amante na coisa amada, ou seja, que, “por virtude do muito imaginar” (Luís de Camões), realiza isso que imagina, em tudo distinto daquele sonho ilusório e irreal que preside à história do mundo e dos homens e à sucessão dos quatro impérios mundanos, histórico-civilizacionais [9]. “O” que se sonhou, esse “Deus”/matriz intemporal de toda a manifestação, transcende a consciência temporal e a sua ilusão intrínseca, sendo da ordem do eterno. É só “Esse” que D. Sebastião pode regressar, não o rei humano morto ou desaparecido no areal, ou um seu substituto, mitificado pelo sebastianismo e esperado pelos sebastianistas de todos os tempos, mas o sujeito transfigurado em Deus, dei-ficado, ou seja, iluminado. Desperto e livre, em nada se distingue desse espaço primordial, anterior a todas as coisas e de todas envolvente como a matriz que as possibilita, mas que, na experiência mundana e condicionada, apenas se abre nos inter-valos entre uma coisa e outra, entes, pensamentos, palavras e acções.
Cabe a este respeito recordar um fundamental poema inglês de Pessoa, “The King of Gaps”, “O Rei das fendas / brechas / aberturas / hiatos / lacunas / vazios / intervalos / abismos”, que muito ajuda a compreender o “intervalo” em que está imerso o D. Sebastião pessoano. Este “rei desconhecido”, senhor de um “estranho Reino dos Vazios” com o qual coincide, figura isso que há “entre” uma “coisa” e outra “coisa”, o intervalar e não entificado espaço vazio que se desvela entre as entidades, o fundo informe onde as formas se recortam e definem, bem designado como “entre-seres”. Se num sentido parece assumir a função de um Mesmo indiferenciado, perante o qual tudo o que nele se delimita surge como as múltiplas formas da sua alteridade, ou se noutro sentido podemos pensá-lo como o Outro enquanto transcende e envolve todas as formas do mesmo, num outro sentido podemos reconhecer-lhe uma transcensão mais radical, tanto do mesmo como do outro, tanto do idêntico como do diferente, na medida em que estes se constituam no âmbito de uma relação mútua entre formas e entidades que só se torna possível por haver esse espaço não-entitativo do “estranho Reino dos Vazios” que permite a constituição e o reconhecimento da relação e do relacionado. Não-ente que se entremostra no intervalo dos entes, ou seja, das definições do isto e daquilo, “todos pensam que ele é Deus, excepto ele próprio” [10].
[1] Cf. Id., “D. Sebastião, rei de Portugal”, Mensagem, Obras, I, p.1152.
[2] Ibid.
[3] Usamos o termo no sentido que tem na tradição espiritual e mística ocidental: cf. Jean Tauler, Aux “amis de Dieu”, Paris, Le Cerf, 2001; Bernard Gorceix, Amis de Dieu en Allemagne au siècle de Maître Eckhart, Paris, Albin Michel, 1984.
[4] Cf. Fernando Pessoa, “D. Fernando, Infante de Portugal”, Mensagem, Obras, I, p.1151.
[5] Cf. Id., “D. Sebastião, rei de Portugal”, Ibid., p.1152.
[6] Cf. Id., “O Quinto Império”, Ibid., pp.1161-1162.
[7] Cf. Odon Vallet, Petit lexique des mots essentiels, Paris, Albin Michel, 2007, pp.63-64.
[8] Cf. Jean-Yves Leloup, “Notre Père”, Paris, Albin Michel, 2007, pp.173-174. Agostinho da Silva designa-o como “nada que é tudo” – Quadras Inéditas, s.l., Ulmeiro, 1990, p.88. Cf., entre outros estudos, Paulo Borges, “Mestre Eckhart e Longchenpa: do fundo sem fundo primordial como nada e vacuidade”, in AAVV, A Questão de Deus na História da Filosofia, I, organização de Maria Leonor L. O. Xavier, Sintra, Zéfiro, 2008, pp.567-579.
[9] Cf. Fernando Pessoa, “O Quinto Império”, Obras, I, p.1162.
[10] Cf. Fernando Pessoa, Poesia Inglesa, I, edição e tradução de Luísa Freire, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000, p.280.
Paulo Borges, in Uma Visão Armilar do Mundo, Lisboa, Verbo, 2010.
1 comentário:
Belíssimo!
Muito interessante a ideia intervalar, do entre não identitário que é o Vazio onde cai o Rei que não volta o Mesmo, o eterno Outro. É esse que regressará. Pois que na abertura entre as coisas que existem e que são do mundo, no vale desse mesmo não-lugar, o "Desejado" ilumina o Dia, eterniza a Hora em que nem rei nem império mai são precisos para o Deus que não se sabe Deus, por isso é, a Luz de poder sê-lo, sem o poder e o querer glória ou outra grandeza que a de sonhar-se.
O Sonho que é eterno, mito para além de Deus. Deus sem limite de forma ou de Tempo. Um Deus intervalar.
Muito bem explicado. Até eu compreendo!
:)
Gostei.
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