Igreja: uma leitura teológica
08/08/2010
Nos artigos anteriores refletimos sobre uma questão particular, a do poder na Igreja, centralizado no clero e no Papa, de cariz absolutista. Alguns ficaram chocados, mas a verdade é essa mesma. Agora cabe uma reflexão de cunho teológico, quer dizer: considerar as realidades divinas subjacentes à Igreja, entendida como comunidade que se forma a partir da fé em Jesus como Filho de Deus e Salvador universal.
Notoriamente a intenção primeira de Jesus não foi a Igreja, mas o Reino de Deus, aquela utopia radical de completa libertação. Tanto assim que os evangelistas Lucas, Marcos e João sequer conhecem a palavra Igreja. É somente Mateus que fala três vezes de Igreja. Mas não se realizando o Reino devido à execução judicial de Jesus, foi a Igreja que entrou em seu lugar. O Novo Testamento transmite três formas diferentes de organizar a Igreja: a sinagogal de São Mateus, a carismática de São Paulo e a hierárquica dos discípulos de Paulo, Timóteo e Tito. Esta prevaleceu.
Antes de mais nada, a Igreja se define como comunidade de fiéis. Enquanto comunidade, ela se sente ancorada no Deus cristão que também é comunidade de Pai, Filho e Espírito Santo. Isto significa que a comunidade é anterior às instâncias de poder cujo lugar é no meio dela, como serviço de animação e de coesão. O amor e a comunhão, essência da Trindade, são também a essência teológica da Igreja.
Esta comunidade se sustenta sobre duas colunas: Jesus Cristo e o Espírito Santo. Jesus aparece sob duas figuras: a do homem de Nazaré, pobre, profeta ambulante que pregou o Reino de Deus (em oposição ao Reino de César) e que acabou na cruz; e sob a figura do ressuscitado que ganhou dimensão cósmica estando presente na matéria, na evolução e na comunidade, como antecipação do homem novo e do fim bom do universo.
A segunda coluna é o Espírito Santo. Ele estava presente no ato da criação do cosmos, sempre acompanha a humanidade e cada pessoa, e chega antes do missionário. É ele que suscita a espiritualidade: a vivência do amor, do perdão, da solidariedade, da compaixão e da abertura a Deus. Na Igreja ele mantém vivo o legado de Jesus e é responsável por sua contínua atualização com carismas, pensamentos criativos, ritos e linguagens inovadoras. Santo Irineu (+200) disse bem: Cristo e o Espírito são as duas mãos do Pai com as quais nos alcança e nos salva.
Cristo, por ser a encarnação do Filho, representa o lado mais permanente da Igreja, seu caráter institucional. O Espírito representa o lado mais criativo, seu caráter dinâmico. A Igreja viva é simultaneamente algo estruturado, mas também algo mutante como as inovações que fogem ao controle da instituição.
Diz-se também que a Igreja concreta, como comunidade e como movimento de Jesus, possui duas dimensões: a petrina e a paulina. A petrina (de São Pedro=Papa) é o princípio da Tradição e da continuidade. A dimensão paulina (de São Paulo) representa o momento de ruptura, a criatividade. Paulo deixou o solo judáico e partiu para a inculturação no mundo helênico. Pedro é a organização, Paulo a criação.
Pedro e Paulo se encontram unidos na figura do Papa, herdeiro e guardião das duas vertentes, simbolizadas pelos túmulos dos dois apóstolos em Roma. Ambas se pertencem mutuamente. Mas nos últimos séculos predominou a dimensão petrina, quase afogando a paulina. Tal desequilíbrio deu origem a uma organização eclesiásatica centralista, com o poder em poucas mãos, conservadora e resistente a novo, seja vindo do interior da Igreja mesma, seja da sociedade. O atual Papa é quase exclusivamente petrino, avesso a toda modernidade.
Hoje se impõe recuperar o equilíbrio eclesiológico perdido. A Igreja deve manter a herança intacta de Jesus (Pedro) e ao mesmo tempo renovar as formas de sua realização no mundo (Paulo). Só assim supera seu conservadorismo e mostra sua criatividade na comunicação com os contemporâneos. Ela não pode ser fonte de águas mortas, mas de águas vivas.
1 comentário:
Escrita a partitura, falta a orquestra para fazer soar a música.
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