terça-feira, 2 de março de 2010

Aos pedaços



Sofrimento que ninguém descreve,
como um peso na alma [...]
é a dor das águas que o moinho mói, é a
dor que não sabe onde é que dói.

Dante Milano



Nosso tempo é de fragmentação cultural e subjetiva. Um tempo em que a dor, a morte, o amor, a alegria, o sucesso e o fracasso das pessoas que a mídia e o mercado escolhem, para melhor vender seus produtos, são tratados como peças de um jogo de proporções globais. Às vezes voluntariamente exposta pela busca da celebridade, outras vitimada ou incensada por alguma espécie de notoriedade que a torne colunável, uma pessoa ganha caras diferentes e até contraditórias segundo o veículo e o comentarista.

A intelligentsia-classe-média representada pela mídia de “bom nível” (leia-se a que tem mais recursos e poder) toma conta dos assuntos e manipula opiniões. Podemos dormir tranquilos. Afinal, quem somos nós pra pensar diferente? As polêmicas se resolvem quase sempre a favor da opinião dominante na mídia de maior ibope. Veste-se a opinião alheia como quem veste uma roupa de segunda mão e fica-se “de bem com a vida”. A coisa é tão bem feitinha que até pensamos ser nossas as ideias que nos implantam pela raiz dos cabelos e pelos poros.

Armado o jogo, vilões, mocinhos, princesas, bandidos, vítimas e algozes ficam nítidos e fáceis de entender. Podemos então acompanhar o movimento das peças, todas com seus papéis devidamente definidos e objetivos simplificados. E o que seria drama e dor alheia, na notícia pungente da primeira manchete, ganha um colorido atraente, confortável, divertido até.

Ninguém pode se queixar da mídia; temos sempre os olhos e os ouvidos cheios de notícias: Michael Jackson morreu; o rosto aparece como uma horrível máscara mortuária num jornal pop – assunto para muito papo, a mídia é um milagre; mostra-se a cerimônia fúnebre sem corpo, um show e tanto, que arrasta multidões. Mas ninguém sabe do defunto; então, Michael não morreu; aparece o retrato dele de óculos escuros, enfiado numa espécie de burka. É mentira? A mesma que contaram de Elvis, de Lennon, Jim Morrison e tantos outros? Mas ainda há quem insista no boato, que fica em cima do muro e não sabe mais se é boato ou revelação sensacional – que seria muito mais interessante, vamos combinar.

Mas que graça tem saber/não saber isso ou aquilo, dar ou não dar ouvidos às fofocas?

Pode ser a graça de não ter que se definir; de não deixar tempo nem espaço para ideias próprias ou para refletir pela própria cabeça. Ninguém mais se lembra por exemplo da moça que vegetava (será mesmo que vegetava? Alguém pensou e sentiu com o cérebro dela, percorreu as terminações nervosas de seu corpo, experimentou as sinapses que ainda funcionavam nela?), e que foi eliminada aos olhos do mundo, sem ao menos gozar da paz e da privacidade necessárias a quem vai morrer. Notícia irada, tanto mais que passou rapidinho e deu lugar a outras também sensacionais e de vida igualmente curta. Porque essa coisa de parar num assunto é um tédio.

Pode ser que as imagens formatadas para o consumo, travestidas de informação, sejam um bom suporte para a projeção das dores de cada um. Talvez assistindo vidrados ao show dos problemas alheios o tempo passe mais depressa e nos poupe de nossos problemas. Assistindo ao espetáculo das penas de figuras virtuais esqueço um pouco das minhas. Não faz tanto mal que tenha problemas reais, se tenho um anestésico tão poderoso. Melhor assim, sofro menos sendo parte da imensa multidão resignada que acha que nada vai mudar mesmo, e embarca na idolatria dessas imagens misteriosamente belas, mágicas, que merecem retratos coloridos e sorriem sempre.

2 comentários:

Serafina disse...

É, cara Dade, assim se desfaz "aos pedaços" o que de melhor há no humano. Não nos apercebemos, mas essa fuga da dor e da insatisfação - dor e insatisfação que deviam nos empurrar para a frente - rasga-nos mesmo a alma.
Abraço,
Laura

Ana Rodrigues disse...

Texto de grande lucidez...Contudo, parece que outras "visões" alternativas estão a ter cada vez mais adesão.