Não nos enganemos. Os males do nosso tempo não vêm da destruição deste planeta. A extinção exponencial das espécies, a poluição, as alterações climatéricas, o depauperamento dos recursos naturais, a voracidade da insaciabilidade do desejo com freio nos dentes... tudo isso é consequência, não causa.
A causa poderemos chamar-lhe, numa linguagem cientificamente rigorosa, a sociabilidade merdosa. É verdade que todos os homens, todos os viventes, nascem para obrar. Mas uns querem ser mais obrosos que os outros. Querem-se em pedestais e em bufetes de bem pensantes que esganaram o que havia de mais lúcido em si, de mais luminoso...
Não há homens que consigam ser maiores que um sequer dos outros, homens ou viventes. E esse deveria ser um ponto de partida, uma alvorada ética nas consciências: não devemos ter direito de vida ou de morte sobre qualquer vivente. Nem devemos arrogar-nos a indecência de desconsiderarmos seja quem for. Há seres humanos sem currículo que fazem mais pela humanidade do que qualquer tiranete auto-erigido. Jesus Cristo é um exemplo. Não consta que tivesse biblioteca. Nem que achasse esta vida uma seca.
Mas isso são contas dum rosário que daria pano para mangas.
O que é urgente, para quem se considerar sempre na alvorada duma nova era (mas essa é uma ilusão de óptica que acompanha a humanidade desde que alguns deram para se meter com a História, essa inexistência que lustra todas as parvónias que se querem o centro do universo) é amar. Um barco no mar, como cantava Eugénio de Andrade e desfazia Agostinho da Silva, o menos obroso dos homens que fizeram obra, ou seja, que viveram. O que vem por acréscimo pode ser um sinal de superabundância. Mas isso não se escolhe, há uma prodigalidade da vida quando vivida com um sentido sublimante, mas isso não se compreende nem se adquire, é um dom do sem nome.
Por vezes dou comigo a mirar obras, com peso, autênticos calhamaços, sobre 'a psicologia dos portugueses'. Coisa ridícula: a Psicologia já de si é uma ciência num instável equilíbrio epistemológico, é uma abstracção que diminui o seu objecto ao estatuto de coisa pensada, analisada, dissecada, por uma Razão que é sempre pretérita. Mas não lhe abanemos o fundamento vacilante: o que é que um homem nascido em Portugal pode ter de tão diferente em relação a qualquer membro da espécie? Hoje que se sabe que há poucas diferenças entre os humanos e os antropóides superiores (e esta superioridade é ela própria questionável porque antropolátrica). E que 'portugueses'? Os ratos de biblioteca ou os homens ditos 'do povo'? Todos eles obram e são servidos pelas mesmas Etares (quando existem).
É um tema pouco interessante, mas nesta alvorada de milénio ainda estamos muito longe de ter conseguido a derrota do totalitarismo e da cultura de morte que marcou o século XX. Não se pode esquecer as misérias, as visões deturpadas do humano e da Natureza, a indiferença em relação ao que nos traz a esta vida e a este mundo. A cidadania autêntica não se exerce dentro de qualquer megalomania identitária. O planeta é demasiado redondo para nos constrangermos a fronteiras e a segregacionismos. A questão determinante não é como dominar o mundo, mas como alargar a visão do mundo. Uma visão alargada não permite barreiras, nem se fica pelo imediatismo ( e cada vez mais do mediatismo) do que se dá a ver. A visão de Samuel Huntington não tem que ser uma fatalidade histórica, é possível explorar em cada tradição religiosa ou cultural vias de abertura esikásmica: todos os discursos afluem do Silêncio, o Oceano da Paz, e todos podem refluir para aí, se forem portadores de luz. É quando depomos as máscaras egóticas e etnocêntricas que advimos ao rosto que comunica para além de si, que é ek-stase, contemplação, visão templante: o Templo é a suprema forma de vivência do enigma.
E nenhum homem tem que deixar de ser o que é para ser cidadão do mundo.
Foi, portanto, com apreço que tomei conhecimento do conteúdo da homilia de hoje, dia mundial da Paz, de D. José Policarpo, uma figura com a qual não simpatizo de forma muito especial. Mas desconfio que muito de não revolucionável está compreendido pelo seu conceito de Civilização. O que é importante não são os preconceitos que são partilhados pelas culturas que pertencem ao mesmo fundo civilizacional, mas se estamos mesmo interessados em renovar o conceito de civilização, retomando o seu significando original, o que importa é a forma como vivemos com, como nos damos à partilha e à comunhão? Seremos capazes de abandonar a sociabilidade merdosa e assumir uma sociabilidade compassiva? Para além dos homossexuais em geral, dos não crentes em particular, dos pagãos por especialíssimo interesse de 'marca' ou de 'corporação', quem mais estará fora desse conceito de civilização?
É necessário que se compreenda que as vias de salvação só serão autênticas se também o forem de perdição. Só assim se pode esvaziar a cultura de morte que hoje está mais visível em certas formas de vivência dita religiosa, mas que é, infelizmente, um dado civilizacional. E não me estou aqui a referir a temas como o aborto. Há movimentos ditos pró-vida que são, no seu fundo, os mais perfeitos produtos dessa cultura de morte. Aliás, onde a estupidez impera, a vida desespera.
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