Na sala da nossa casa na Leôncio de Magalhães, em São Paulo, as mãos dos meus irmãos abriam-se para receber o pó que nos fazia voar.
- Vamos viajar os três! Basta-nos sentir os pés nas nuvens e cheirar o ar do céu...
De braços abertos percorríamos a sala e o chão deixava de existir.
- E se, o Tejo fosse a água que separa Niteroi da Guanabara...
E se, era semear em terra fértil.
“– «Eu sou aquele oculto e grande Cabo
A quem chamais vós outros Tormentório,
Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo,
Plínio e quantos passaram fui notório.
Aqui toda a Africana costa acabo
Neste meu nunca visto Promontório,
Que para o Pólo Antártico se estende,
A quem vossa ousadia tanto ofende. (...)” *
A vida desperta em cada instante, no Cabo das Tormentas a Boa Esperança.
E se, a vida fosse este ar puro, que por vezes inspiro em cada beijo, e nutre o meu desejo de atravessar o cabo para poder respirar?
Em cada uma das nossas mãos, liberdade. Descansávamos nas estrelas e de lá o mundo nos parecia pequeno.
Na dor que nos separava, um lamento pequeno a pedia-nos coragem.
E se a vida fosse
a Boa Esperança
Tormenta que apazigua
Vida
Vamos viajar - os três, de ocidente a oriente. Querida irmã tu serás a princesa e nós os guerreiros que defendem o teu reino. Recolhe as asas na tempestade, abre-as ao sabor do vento.
E se,
Esta é a parte que falta
acende a vida
alimenta a serenidade
vontade que tenho
e não tenho
meus dedos que tocam e fogem
o corpo que se contrai,
pede e recusa
enredo sublime
que reinventa a vida
A quem a minha ousadia tanto ofende
Na Leôncio de Magalhães, éramos três a crescer. Na casa vizinha um cão morria de tristeza pela morte do dono. O comboio no final da rua ditava as meias-horas. A Nair esticava a carapinha nos sábados. Nossa mãe tocava piano. Nosso pai, escrevia.
Na segunda metade de vida, contornámos o cabo.
E se, outra vida houver estaremos nela inteiros.
Com asas, sem medo de voar.
* Canto V - estancia 50 - Lusíadas - Camões