sexta-feira, 30 de outubro de 2009

"O Mercador de Quimeras”



 Foto: "Derradeira condição", de José d'Almeida e Maria Flores
O Velho residia num antro penhascoso, entre paredes caóticas de gruta e pilares com aparência de tubos sonoros, que parecia repercutirem como num órgão ciclópico os rumores confusos das entranhas da Terra. Havia lá dentro uma tonalidade etérea de firmamento e pedras preciosas engastadas na rocha, que cintilavam ao redor da cabeça do Velho em sistemas de constelações. 
Tinha esta a face sulcada pela charrua dos milénios, animada por uns olhos singrados de órbitas de astros que reflectiam mundos longínquos e crepitavam no tracejar implacável e constante de eternas cosmogonias. Estranho ao tempo, jazia impassível e solitário no seu antro, assente sobre um trípode, agitando os dedos com o movimento permanente de quem torce os fios de uma roca invisível, a gerar e a diluir existências, tendo os pés apoiados sobre as armilas de uma esfera. Ao alto, um morcego enorme abria o sobrecéu das asas, suspenso das estalactites do tecto. 
À beira do antro, passava o caminho das peregrinações que o Homem vinha percorrendo desde o limiar da História, longa e penosa via-sacra intervalada de montanhas abruptas e de fundas torrentes, de áridos desertos e de cidades tentaculares. Era ali a estação distribuidora das sinas fiadas pelo Velho na sua roca invisível, princípio e termo de encruzilhadas onde se marcava a cada qual na fronte o selo de luz ou sombra que havia de acompanhá-lo na sua rota. 
Todos paravam ao chegar ali, atraídos inexoravelmente pelo interior da gruta em cujo chão se viam estranhas figuras de múltiplas matérias, barro ou marfim, bronze ou oiro, dispostas em socalcos à semelhança de uma tenda de mercador. Semelhantes no aspecto e várias no semblante, olhavam, com seus olhos vítreos, obstinadamente, fitando cada uma delas um ponto no espaço, cada uma orientada pela força intrínseca do seu magnetismo polar. 
Eram as Quimeras, semelhantes, sim, no aspecto, mas diversas no olhar que em umas era fluido e azulado como a ondulação silenciosa dos espaços planetários, em outras tinha a profundidade glauca e densa da imobilidade submarina, em outras era penetrante e metálico como lâminas arremessadas, em outras envolvente e veludoso como uma carícia de luar, em outras ainda recolhido e triste como uma meditação dolorosa pendida sobre uma urna cinerária. E o que havia de singular é que o olhar do Velho, na sua alheada e altiva magnificência, era o espelho facetado que reflectia todos os outros olhares resumindo-lhes as aspirações e brilho como se eles fossem as emanações gémeas da sempiterna claridade em regresso à sua fonte originária. 
João Barreira, do conto “O Mercador de Quimeras”, in “A Rota do Bergantim e Outras Alegorias”, Edições Ática, Lisboa, 1947, págs 99-101.


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