domingo, 8 de julho de 2012

”Chamo «cultura», no sentido absoluto, à faculdade de nos desprendermos do nosso ser biológico, do eu individual, acanhado, restrito"

”Chamo «cultura», no sentido absoluto, à faculdade de nos desprendermos do nosso ser biológico, do eu individual, acanhado, restrito, de todos os limites que tendem sempre a impor-nos as condições particulares de espaço e de tempo, do «aqui» e do «agora», - e dos acidentes de classe, de partido, de nação, de raça; ao dom de dessubjectivarmos a nossa vida psíquica, o nosso pensar espontâneo; ao de tendermos para um nível de racionalidade perfeita, - para o nível do divino, se acharem assim preferível, - na maneira de julgar e de actuar no mundo. É em suma o equivalente, no pensar racional, do que chamam os místicos a «união com deus»; é o processo de divinização do ser anímico; é a completa efectuação daquele dizer do Evangelho: «todo o que procura salvar a sua vida» (isto é: o que se ativer ao âmbito da vida individual limitada, essa mesma que está presa ao nosso condicionamento biológico) «perdê-la-á; e todo o que a perder, salvá-la-á» (isto é: poderá constituir, por tal desprendimento, a sua personalidade racional, - a que é absoluta, desenleada, sobrepairante, una, sendo, por isso mesmo, livre). Ser culto é, ao cabo de contas, o pensarmos sub species aeternitatis, de que falou na Ética o Espinosa. Estou eu em crer que seremos cultos na medida exacta em que formos largos, compreensivos, liberais, amantes; […]” - António Sérgio, Cartas do Terceiro Homem, in Democracia, Lisboa, Sá da Costa, 1974, p.354.

1 comentário:

Anónimo disse...

Chamo cultura ao que sou. E o que sou não tem sentido restrito porque é uma herança. O que sou não tem “eu” identificado - linha etérea de união entre as diversas partes da existência, bizarria que soçobra da apreensão e da colagem do outro. O que fica perante… esse desarranjo acidental de suprema funcionalidade… não passa de uma consequência de trocas entre bizarrias – locutor, interlocutor, intervalos e caixas de ressonância, umas melhores do que outras…
Linkando o universo, poderemos ver sempre mais e melhor o que somos… Ver maior…
O “aqui” e o “agora” são dimensões intemporais, não espaciais, centros de decisão do futuro sem futuro que não seja o presente, o que torna o “agora” impossível e o “aqui” indeterminado. O “aqui” e o “agora” não são equações de racionalidade, isto é, existem fora da racionalidade continuando-se indefinidamente sem porquê, constituindo-se passado e futuro. Cheios de tempo morto, em sobreposição imediata com todos os acontecimentos, não passam de fragmentos indecifráveis mesmo quando o desenho que trazem parece percetível. É preciso distância e afastamento físico na recomposição do real. A racionalidade é a constatação de um padrão de relação entre formas e espaços de vazio. Salva o mundo só depois de criado explicando-o numa aparência de lógica que lhe é interior e sente-se em “união com Deus”, por sintonia simbólica com a diversidade, Deus não-uno, exorcizado da consciência coletiva pela palavra que o faz surgir como figura humana, sem imagem, nem semelhança.

F.W. in Cartas Demográficas ao Terceiro Homem, edições có(s)micas, pág.o