quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Apresentação de "Descobrir Buda", pelo Professor José Eduardo Reis



Apresentação de Descobrir Buda. Estudos e Ensaios sobre a via do Despertar (10 de Novembro, Colóquio "Oriente-Ocidente: Diálogos e Cruzamentos", Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa)

Do livro de Paulo Borges que me é dada a honra de fazer a apresentação, gostaria de começar por dizer que no seu título – “Descobrir Buda. Estudos e Ensaios sobre a via do Despertar” – se inscreve uma subtil polarização e uma equivalência simétrica de sentidos, de que talvez não convenha hermeneuticamente abusar, mas que não deixa de fornecer uma via de acesso à leitura do conjunto de textos de que se faz anúncio. A equivalência simétrica de sentidos estabelecida entre o primeiro sintagma “Descobrir Buda” e o último “via do Despertar” é interpolada pela informação de que essa condição de revelação ontológica surge discursivamente reflectida sob a forma de uma subtil polaridade exegética “Estudos e Ensaios”, termos que, por sua vez, na sua simétrica oscilação, correspondem a diferentes ângulos – filosóficos, religiosos, espirituais, mais ou menos discretos, mais ou menos articulados ou mais ou menos convergentes entre si com variações de intensidade de cada um deles – ou seja, correspondem a diferentes vias de aproximação à possibilidade da auto descoberta de ser ou devir Buda, e que o autor se propõe intelectualmente cartografar. Mas se essa simetria de sentidos equivalentes entre o nome “Buda” e o verbo “Despertar” afasta qualquer dúvida quanto à geografia, digamos assim, cultural, intelectual, doutrinal em que se situam estes estudos e ensaios filosóficos, religiosos e espirituais, já o facto de a enunciação de Buda não ser precedida de um artigo definido indica que não estamos perante um livro de iniciação ao pensamento e acção de um venerável fundador de uma religião, nem face a uma descrição sistemática e analítica sobre o seu legado doutrinal e filosófico-religioso – o Buda histórico – mas diante de uma exposição que tem como propósito a auto-inquirição especular e ressonante – o descobrir-se Buda – quanto aos pressupostos, aos desenvolvimentos e os efeitos axiológicos do que assumidamente o autor considera ser uma virtualidade ou possibilidade ontognoselógica. Virtualidade ou possibilidade essa certamente remissível a quem pela primeira vez no tempo e no espaço a indicou por se descobrir e se dar a descobrir como o Buda, o Desperto, mas que neste livro não surge explicitada como um estado afim do da ideia comum de uma suprema realização ou proeza comandada pela consciência subjectiva e pessoal do sujeito biográfico que a manifestou, antes, e sobretudo, como uma condição existencial a um tempo rarefeita e concreta, ou como “um estado de consciência plenamente livre de todos os véus e condicionamentos”. Ora, é sobre as múltiplas formas de se aceder a um tal estado, que, no limite, é insusceptível de ser descrito, explicado e comunicado por via da razão discursiva – e não por acaso logo o segundo texto tem por título “o Silêncio de Buda” –, que Paulo Borges disserta e discorre com o conhecimento adquirido, enriquecido e legitimado pela sua experiência de praticante e discípulo, desde 1983, do corpo vasto de ensinamentos filosóficos, religiosos e espirituais das tradições do Grande Veículo (Mahayana) e do Veículo do Diamante (Vajrayana) do budismo tibetano. E disserta e discorre não só com erudita proficiência, minuciosamente explicitada nas 635 notas de pé de página disseminadas pelos 10 ensaios que constituem o livro, mas também com notável rigor e clareza de linguagem, muitas vezes enriquecida por reinvestimentos semânticos da língua portuguesa, seja por recurso à decomposição silábica de termos com um lastro conceptual originalmente inadequado à abertura da significação pretendida, seja pela tentativa da criação de novos termos vernáculos derivados da terminologia filosófica budista. Disserta e discorre, portanto, a partir da sua experiência de praticante espiritual budista e com a inteligência do estudioso e do ensaísta que, trabalhando criativamente com o quadro de referências que lhe servem de fundamento e orientação, sabe evitar excursos dogmatizantes ou abordagens em tom proselitista dissuasoras da recepção dialogante e crítica das teses que enuncia e problematiza sobre a via do despertar ou do descobrir-se Buda. Disserta e discorre enfim, praticando e tendo em atenção como escreve no prefácio, a “própria exortação do Buda a que as suas palavras não sejam aceites irreflectida e acriticamente”.
Como apreciação geral poderíamos dizer, assim, que estamos perante uma obra que, apesar de coligir um conjunto tematicamente diversificado de textos, na sua maioria escritos para atender a diferentes solicitações académicas e pedagógicas, apresenta uma coerente articulação de propósitos e de sentidos. Articulação de propósitos que se projectam como sendo simultaneamente divulgadores e problematizadores de aspectos fundamentais da filosofia e da prática meditativa budista, derivados quer dos postulados base e “provisórios” associados à verdade relativa das “quatro nobres verdades”, quer das “abissais” e desconcertantes formulações sobre a verdade absoluta reveladas pela sabedoria prática do Buda, transmitidos em obras fundamentais do multiforme e multilingue universo espiritual, intelectual e doutrinário budista e conforme aos seus três ciclos ou veículos de ensinamentos do Hinayana, do Mahayana, do Vajrayana. Aspectos fundamentais esses competentemente processados por uma notável capacidade de assimilação e de explanação sintética do autor, certamente aprofundada e autenticada pela sua própria experiência meditativa e pela sua disponibilidade em aprender de fonte directa com qualificados e reconhecidos professores da tradição budista tibetana, a quem, aliás, presta reverencial tributo no prefácio do livro
Mas articulação também de sentidos, dos mais acessivelmente compreensíveis, como os que são elementar, concisa e claramente comunicados no texto de abertura “Budismo”, aos mais complexos nas suas formulações temáticas e nas aplicações e desenvolvimentos heurísticos, digamos assim, dos operadores conceptuais inferidos da “Via do Buda”, ou do “dharma do Buda” – expressões que, pela abertura supra religiosa e supra eclesiástica que evocam, Paulo Borges considera serem mais adequadas e correctas do que o termo “Budismo” para definir o legado do Buda histórico. Tais formulações, aplicações e desenvolvimentos são vertidos em textos de teor contra-intuitivo, negadores de pontos de vista comuns e perturbadores de consagradas proposições filosóficas, como, por exemplo, o que aborda o conceito budista de karma aplicado à ordem natural e à experiência mental e ética do mundo, ou o que incide sobre a visão búdica da identidade pessoal. Articulação de sentidos que nos parece assim ordenada segundo o princípio do mais simples para o mais complexo, em diferentes planos, e de algum modo seguindo a lógica dos três ciclos ou veículos de ensinamentos do Hinayana, do Mahayana e do Vajrayana, e aparentemente assumida por Paulo Borges como testemunhando níveis de aprofundamento e de progresso espiritual na experiência do desvelamento da condição de Buda. Se bem que essa mesma lógica seja por vezes aplicada ao desenvolvimento do argumento central de cada um dos estudos e ensaios, ela não visa, porém, demonstrar uma hipotética superioridade doutrinal ou eficácia espiritual de um sistema sobre outro, mas tão somente ilustrar a aplicação daquilo que na tradição búdica se designa por “meios hábeis” ou meios de instrução que, visando o despertar das consciências para a verdadeira realidade de si e das coisas, tomam em linha de conta as circunstâncias, os contextos e os níveis de compreensão e de empenhamento dos destinatários a que se dirigem esses meios desbaratadores da “ignorância” e da “ilusão”.
Tendo, portanto, sempre como nexo fundamental de ligação entre os estudos e ensaios o tema da “via do despertar”, este livro aborda essa possibilidade em vários planos, correspondentes a diferentes matérias da filosofia relativos ao ser e agir (os já referidos ensaios sobre a identidade pessoal e sobre as implicações éticas da experiência do mundo) ao conhecer e ao devir (os ensaios com os títulos, respectivamente, “Budismo, ciência e realidade” “o Silêncio de Buda” são disso exemplo), mas também a matérias do domínio do pensamento e da prática religiosa afins do da escatologia e da soteriologia (A morte no Budismo. Da contemplação da impermanência à vida pós-morte e à descoberta da imortalidade), ou do sentido da experiência espiritual, tal como esta se pode comparativamente inferir da noção de vacuidade, explicitada pelo filósofo e místico budista Nagarjuna (século II), e da visão apofática de Deus, de Pseudo-Dionísio Areopagita.
Três traços, porém, me parecem ser os dominantes e comuns a todos os ensaios orientados para a caleidoscópica possibilidade do Despertar: (i) o da compreensão budista, (e cito) “mais de dois mil anos antes de Kant, das ciências cognitivas e da física quântica”, da inseparabilidade entre a realidade e a consciência, entre o mundo e a sua determinação pela actividade mental dos seres que o constituem (o ensaio Budismo, Ciência e Religião, funciona como uma propedêutica a este tópico recorrente); (ii) o da explicitação da noção de vacuidade como se reportando ao ensinamento do Buda sobre a verdadeira natureza, fluida, impermanente e interdependente dos fenómenos materiais e mentais; (iii) o relativo à maneira de se proceder visando a aplicação das terapias adequadas à extinção do sofrimento causado pela incompreensão prática daquelas duas subtis evidências, a da interdependência entre mundo e consciência, e a da vacuidade dos fenómenos. E neste ponto há a salientar que a exigente prática dos ensinamentos budistas visando o “despertar”, inclui também, tal como se pode inferir da leitura de alguns destes estudos e ensaios, a sua própria auto-desconstrução, a sua própria evacuação. É esse aliás o procedimento inscrito na própria estrutura do livro, cujo ensaio axial, inserido a meio da sua ordenação, leva por título ‘“Se vires o Buda, mata-o!’ Ensaio sobre a essência do budismo”, e cujo final se conclui com dois textos sobre o Dzogchen. Sobre esse corpo subtilíssimo e polémico de ensinamentos que, numa perspectiva gradual e no âmbito do budismo tibetano, situando-se para além do radical desconstrutivismo lógico do sábio budista Nagarjuna (século II) e da escola do Madhyamika do Mahayana, se propõe fornecer como instrução última o reconhecimento de que a agitação dualista mental, “tal uma brisa movendo-se através do céu”, é experienciável como manifestação indissociável “da perfeição natural e absoluta de todas as coisas”. Particularmente nestes ensaios se assoma, por mais de uma vez, a tese fundamental de que o “descobrir-se Buda” ou o “despertar” é um estado de consciência que na sua radical inefabilidade só pode ser intelectualmente traduzido e descrito como libertador e liberto dos constrangimentos emocionais e obscurecimentos mentais, como superador das quatro possibilidades de predicação lógica A, não A, A e não-A, nem A nem não-A, ou seja do tetralema necessariamente evocado na própria construção argumentativa da possibilidade desse estado de consciência. Estado que se desvela como uma espécie de retorno ou de reencontro com o fundo sem fundo espiritual da condição da experiência de nós e dos outros, sem pontos de apoio ou de discernível categorização. Fundo sem fundo diante do qual a erudição paciente e pedagógica e a capacidade intelectual e filosófica de Paulo Borges, animada por uma determinação vocacional de generosa partilha do seu saber, se auto-suspende nos limites da funcionalidade e da verdade relativa e dualista em que comummente se situa porque hiperconsciente dos efeitos insidiosos do ensinamento iconoclasta de Nagarjuna – que, mais que uma vez, surge citado no corpo do livro: “Aqueles que mantêm discursos sobre o Buda, o qual transcende todo o discurso, toda a modificação, todos, extraviados pelos seus próprios discursos, não vêem o Tathāgata”
Neste sentido, e como última consideração, gostaria apenas de acrescentar, que talvez o termo mais adequado para sintetizar a modalidade de trabalho que presidiu à composição destes estudos e ensaios de Paulo Borges foi o da tradução: tradução da búdica e experiencial verdade absoluta para a intelectual e humana verdade relativa; tradução de expressões várias da sabedoria budista de origem oriental para o contexto do pensamento, da religiosidade e da espiritualidade ocidental, tradução para a língua, cultura e discurso académico portugueses dessa mesma sabedoria.
Trabalho de tradução esse que, quando bem executado como é o caso, é sempre uma forma de “dizer quase a mesma coisa” na expressão de Umberto Eco, sendo que o dizer aqui é quase o mesmo que não dizer, ou os dois simultaneamente, ou nem um nem outro, ou seja um dizer que se articula como uma espécie de música executada por uma orquestra oculta, e que Paulo Borges traduz como tendo a sua origem neste “espaço livre e absoluto” aquele que fazemos “de conta que não o vemos, que não o somos” e que nos leva geralmente a pensar, a sentir e a agir “que a Liberdade e a Luz não são o nosso Bem mais íntimo e inalienável…”


José Eduardo Reis

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