sexta-feira, 10 de setembro de 2010

"O homem não nasceu para trabalhar, nasceu para criar" - Agostinho da Silva

Eduardo Lourenço, em "O Labirinto da Saudade", escreveu o seguinte:

"Colectiva e individualmente, os Portugueses habituaram-se a um estatuto de privilégio sem relação alguma com a capacidade de trabalho e inovação que o possa justificar, não porque não disponham de qualidades de inteligência ou habilidade técnica análoga à de outra gente por esse mundo, mas porque durante séculos estiveram inseridos numa estrutura em que não só o privilégio não tinha relação alguma com o mundo do trabalho mas era a consagração do afastamento dele."

Também José Gil, em "Portugal, Hoje O Medo de Existir", registou:

"Se o (actual) povo português fosse um povo de intensidades e não de sentimentos e de medo (como Fernando Pessoa caracterizava o povo espanhol contrapondo-o ao português), há muito que teríamos saído do estado de iliteracia e de fragilidade económica em que vivemos. Em vez disso, sofremos de muitos defeitos próprios das sociedades do terceiro mundo: absentismo no trabalho, inércia, dificuldades na formação e na aprendizagem, lentidão, falta de competitividade. Como se tivéssemos sido atingidos por uma doença que nos deixa diminuídos, meio exangues, com um défice de força vital."

Se o primeiro associa a inactividade característica do Português a um estatuto de privilégio desejado, o segundo equipara-a a doença letárgica. Por que é nós, portugueses, não gostamos de trabalhar? Por que é que relacionamos o trabalho com sofrimento, tortura, fadiga, como se este fosse um dever e não um querer? E mesmo quando é um querer, por que é que não o encaramos como um fim em si, mas sim como um meio doloroso, de sacrifício, uma via para atingir um determinado tipo de fim, quer material ou espiritual?

É provável que a palavra trabalho seja proveniente do termo latino tripalium, instrumento romano de tortura. Já os gregos denominavam o acto de criar, agir, confecionar, fabricar, de poiesis que, como sabemos, hoje significa a arte de criar poesia. É interessante constatar que se para os gregos, o acto de fazer está conotado com a poesia, para os romanos o mesmo relaciona-se com tortura. Talvez haja alguma relação entre tripalium e actividade, assim com há entre poiesis e agir. Osho, em "Tantra A Compreensão Suprema" diz o seguinte:

"Lembre-se de duas palavras: uma é «acção», outra é «actividade». Acção não é actividade; actividade não é acção. As suas naturezas são diametralmente opostas. A acção é quando a situação assim o exige; você age, você responde. A actividade é quando a situação não importa, não é uma resposta; você está tão agitado por dentro que a situação não é mais que uma desculpa para estar activo.
A acção vem de uma mente silenciosa - é a coisa mais bela do mundo. A actividade vem de uma mente agitada - é a mais feia. A acção é quando há uma relevância; a actividade é irrelevante. A acção é momento a momento, espontânea; a actividade está carregada com o passado. Não é uma resposta ao momento presente, pelo contrário, está a escoar a agitação que você trouxe do passado para o presente. A acção é criativa. A actividade é muito, muito destrutiva - ela destrói-o a si, ela destrói os outros."

Se para Eduardo Lourenço e  José Gil, o Português não gosta ou não é apto para o trabalho, não será por este ser tripalium, a actividade descrita por Osho como agitada, irrelevante, imbuída de passado, destrutiva, reflexo de uma mente que pode ser conotada com as mesmas características? Se a acção é criativa, espontânea, bela, fruto de uma mente silenciosa que responde momento a momento, não será esta poiesis e não deveria o homem no dia-a-dia fazer da vida uma criação (não um trabalho), como nos diz Agostinho da Silva? Talvez a "consagração do afastamento do trabalho" seja uma tentativa de retorno ao pomar divino, Éden, Terra Pura, sem  véus obscurecedores e dualistas que torturam. Talvez a "doença" portuguesa seja contemplação lusa desse último raio de Sol, que os romanos tanto temiam e que todos os dias se afunda no oceano fazendo o ocaso surgir sentimentos, medo - medo de existir - pois o que é a frágil existência perante o esplendor da morte? Como agir? Como criar? Como penetrar na mente e desvendar os seus mistérios silenciosos, vislumbrantes da saudade arrebatadora de raios impregnados de saúde, de vida(!), regeneradores do estado mórbido que fatalmente se desenha na nossa face?  Como ser poesia e não poeta?

Julgo que é agora oportuno escutar Tilopa:
"Cesse toda a actividade, abandone todo o desejo, deixe os pensamentos erguerem-se e baixarem como as ondas do oceano. (...) Aquele que abandona o desejo e não se agarra a isto e àquilo, apreende o sentido real dado nas escrituras."

Qual o real sentido das escrituras? Não é isso que incessantemente buscamos e ignorantemente apelidamos de trabalho? Não será havermo-nos poema o real da Vida?

2 comentários:

Estudo Geral disse...

Tantas perguntas boas e uma resposta ainda melhor: "O homem não nasceu para trabalhar, nasceu para criar." Que bom o atrevidíssimo Agostinho.

Estudo Geral disse...

Esqueci-me de me identificar.

Luis Santos