quinta-feira, 8 de julho de 2010

Pátria, Sonho de Luz



Abertura


O nosso intuito ao elaborar esta breve reflexão sobre o poema a Pátria de Guerra Junqueiro é pensarmos a partir de duas categorias fundamentais na tradição ocidental em que toda a poesia se inscreve, a saber, determinar se se trata de um poema trágico ou de um poema dramático. Aquilo que nos propomos defender é que o poema de Junqueiro não é um poema trágico, mas também não é puramente dramático à maneira dos textos de Calderón de la Barca, apesar das semelhanças que encontramos entre o texto do poeta português do século XIX, agora em análise, e o poema do dramaturgo do século de ouro espanhol, nomeadamente no texto A Vida é Sonho. Na Pátria há uma superação do drama em oração, numa confissão com que o Doido, a própria pátria enlouquecida e esquecida da sua verdadeira natureza e vocação, se redime em palavras-lágrimas de toda a culpa, tornando este poema num livro de confissões que, como diz Derrida das de Santo Agostinho, é um livro de lágrimas.
No nosso trajecto começaremos, em primeiro lugar, por mostrar sucintamente que a Pátria não é um poema trágico. Não o faremos a partir dos traços destacados por Nietzsche cujo contributo para a definição da especificidade dos poemas gregos de Sófocles e Eurípides foi inolvidável – mas nos parece academicamente esgotado e repetido – mas antes levando em linha de conta os contornos apontados por Steiner na sua obra A Morte da Tragédia. De seguida, tentaremos mostrar que, apesar das coincidências e convergências existentes entre A Pátria e A Vida é Sonho, poema dramático e paradigmático da época e do espírito barrocos e da semelhança entre as categorias centrais do barroco e do poema do poeta português do século XIX – sobretudo com base na especificidade da obra dramática e barroca apontada por Walter Benjamin e Giorgio Agamben – há, no deste último, uma superação do espírito dramático destituído de uma visão messiânica do tempo e da história. Com efeito, se naquele há a concepção de que a vida é sonho, ilusão, no poema do poeta finissecular prevalece a visão de que a pátria é um sonho de luz, de modo semelhante à transfiguração de Cristo na Cruz, de modo similar à esperança, que é a última das virtudes da caixa de Pandora, a que colhe, como Kafka bem reparou, os desesperados, mas não a que cobre ou esconde o que não se pode encarar de frente. Luz que a pátria crucificada reacende e que se desvelou nessa transfiguração da dor da louca pátria na redenção luminescente que tão bem expressa e complementarmente se encontra no poema Oração à Luz:


Cruz que, vindo de Deus, trespasse o Inferno,
Cruz abarcando toda a imensidade,
Cruz onde um Cristo, o Amor Eterno,
Chore sem fim a dor da Eternidade!...
(…)
Monstro de dor nos ermos do Infinito,
Ó Sol crucificado, ó Sol bendito!
Tua carne de fluidos e metais
É a carne-embrião do mundo todo,
Das águas e das rochas e do lodo,
Que foram nossas mães e nossos pais!
Por isso lanças para nós teu grito
Por isso voam para nós teus ais!
São teus ais sem fim de moribundo
A luz, esp’rança, que electriza o mundo.
O oiro divino das manhãs formosas
(…)
Bendito o Cristo-Sol na cruz ardente
O monstro-mártir, que infinitamente
Por nós expira, soluçando luz!


No poema agora citado, Cristo é a luz, a esperança embrionária de um novo mundo que supera o dos antepassados, água, rocha e lodo, Cristo é identificado com o Sol, um Sol que soluça luz. Sol que chora e, na dor e nas lágrimas, encontra a passagem para um esplendor que a tudo incendeia de seiva redentora. Ora, precisamente, na Pátria, o louco país chora em palavras os seus antepassados, que na lama esqueceram a alma , morre e renasce, como Cristo, na cruz-luz. Por isso, é legítimo subentendermos que a Pátria é a oração, poema-oração, que tenta impelir a passagem da pátria desolação, à pátria assombrada pela luz, Pátria-Sol, e por uma visão, escondida nos símbolos, da cruz e da espada. A criança é, no final do poema, a que armada e iluminada construirá a nova pátria justa, a dos heróis encarnados em homens e que retirariam da sombra e da fantasmagoria os heróis fechados no esquecimento e nos livros desfeitos pela não memória dos feitos iluminados da nação, n’ Os Lusíadas.


Aproximação Crítica
A Pátria não é um poema trágico


Para Steiner no poema trágico o herói encontra abertas as portas do Inferno e a condenação é insuperável. O herói nunca consegue escapar à dor irredimível porque a sua consciência da culpa é tardia e não há desculpa aceitável perante os juízes supremos. O poema trágico insiste, pela exploração da acção do herói, na manifestação de uma falha, de um paradoxo que consiste na dissonância existente entre os fins dos homens e os fins inexplicáveis, implacáveis e inobserváveis, pelos olhos da carne e do espírito dos humanos, da própria Vida. Nisso Steiner não anda longe de Nietzsche quando este sobrevaloriza com Kant, No Nascimento da Tragédia, por ter pensado que a realidade última de tudo está para além do fenómeno. Neste sentido, Steiner, na linha do pensador germânico, tenta mostrar que são mais os movimentos numénicos da vida do que os fenoménicos e que, no âmago desconhecido da Vida, moram forças para sempre irreconhecíveis, inapreensíveis e imprevisíveis pelo sujeito do conhecimento e da acção. No entanto, é contra aqueles que a vontade do herói trágico, de modo impróprio, embate, provocando a desagregação da vida individual em culpa e sofrimento. Porque a tragédia é anti-cristã ou o cristianismo é anti-trágico, Steiner relembra, a cada passo desta obra em que nos baseamos, A Morte da Tragédia, que a essência última do trágico é a permanência sem redenção da ferida na alma daquele que cometeu a falta, enfatizando o carácter acessório da peroração do herói, ou dos que com ele cooperam para a eliminação, ou atenuação dessa dilaceração sem fim. Não há indagação possível sobre as razões dessa magnífica litania que é o canto enlutado , como chama Nicole Loraux à tragédia, não há possibilidade sequer, por mínima que seja, de aproximação entre o herói trágico e Job. Job não é trágico como é Prometeu, como é Édipo. Porque Job é cristão.
Apenas estes borrões gerais mas certeiros, de um pensador atento ao pormenor diferenciador, nos permitem verificar que o poema de Junqueiro não é trágico. O herói que, do nosso ponto de vista, é o Doido, o louco-país, é, sem dúvida alguma, remetido para uma condenação e para um Inferno em vida. Como Cristo é um herói crucificado pela turba - no final do poema, ébria de ignorância, ébria de inconsciência, constituída por homens desregrados que “entoam, epilépticos de álcool, uma canção infrene e vagabunda. (…) Apenas o descobrem, estacam de súbito, ladrando raivosos e covardes, como a dizer: Ei-lo! Aí o tendes. – O velho herói, pálido de morte, fita-os soberanamente desdenhoso. [E o herói] estende os braços para a Dor.” – mas essa condenação, essa expiação é catártica e purificadora, atempada e libertadora. O herói, colectivo porque é a nação, reconhece que falhou, porque a visão de Nun’Álvares é esclarecedora das razões da ruína, da míngua da nação: a espada não devia ter servido para derramar sangue, a espada deveria ter servido para espalhar as sementes do pão, ou para ceifar o trigo. Por outro lado, o arrependimento não é tardio, sabemo-lo em virtude do poeta terminar de modo simbólico, deixando a criança contemplar a crucificação e deixando-a transformar a espada do herói espectralizado no que houvera de vir. Um país que deixa a uma criança símbolos deixa-a com a única herança capaz de multiplicar o que é espiritual, a justiça, o amor e a verdade , porque os símbolos são o tesouro espiritual da humanidade e por isso sobre eles se fundam as religiões que só e por seu intermédio se perpetuam.

Nota: Trata-se do início de um breve e humilde ensaio. Faltam aqui páginas...Não consigo colocar as notas de rodapé nem no corpo do texto. Ensaia-se como fica, ainda assim a sua legibilidade. Que o texto celebre a luz que inunda a vida, nestes dias.

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