sábado, 17 de abril de 2010

Serge Latouche e a filosofia do decrescimento

Poucas pessoas gostam de ouvir falar em decrescimento ou diminuição do consumo, pois associam-nos a uma diminuição dos prazeres. Não obstante um número cada vez maior de pessoas infelizes e insatisfeitas na nossa sociedade, ainda acreditamos, porque é isso que nos é dito diariamente, que se não consumirmos o bastante, muito e mais ainda, nada somos. O Outro já ouviu comentários como: "Estou-me perfeitamente a borrifar para o que vai acontecer ao planeta ou às gerações futuras, pois não estarei cá para ver." Também existe disto, sim, e não é tão raro como alguns de nós, mais ingénuos, possamos pensar. No entanto, aqueles entre nós, e somos muitos, que se preocupam sim, talvez possam reflectir um pouco sobre o que tem a dizer sobre isto Serge Latouche, um economista e filósofo francês, com a sua filosofia do decrescimento. Segundo Latouche, é preciso descolonizar nosso imaginário. Em especial, desistir do imaginário económico (...) Redescobrir que a verdadeira riqueza consiste no pleno desenvolvimento das relações sociais de convívio em um mundo são, e que esse objetivo pode ser alcançado com serenidade, na frugalidade, na sobriedade, até mesmo em uma certa austeridade no consumo material, ou seja, aquilo que alguns preconizaram sob o slogan gandhiano ou tolstoísta de "simplicidade voluntária".

Por: Esther Mira

Nos últimos anos, o francês Serge Latouche converteu-se no porta-voz e na referência mais conhecida da filosofia do decrescimento, uma crítica construtiva ao paradigma dominante de crescimento ilimitado. Escritor, articulista e activista da simplicidade, Serge Latouche visitou recentemente Espanha e dedicou alguns minutos da sua apertada agenda à revista Integral.
O movimento do decrescimento que representa nasceu em finais dos anos 70 a partir de pensadores críticos do desenvolvimento e da sociedade de consumo como Iván Illich, André Gorz, Cornelius Castoriadis ou François Partant, mas é hoje que sobressai mais do que nunca como um projecto social, económico e político perante a sociedade do perpétuo crescimento. E é assim porque são muitas as razões que no momento actual questionam a lógica do crescimento económico. Por um lado, sofremos uma crise de índole diferente (económica, financeira, ecológica, social, cultural...) e por outro, o aumento do nosso rendimento per capita nas últimas décadas aconteceu em paralelo com uma aparente diminuição do nosso grau de satisfação com a vida. Para dar um exemplo, só em 2005 os franceses adquiriram 41 milhões de caixas de antidepresivos, enquanto 49% dos norte-americanos assegurava que a felicidade está em retrocesso, ao passo que 26% considerava o contrário.
Existem razões suficientes, portanto, para rever de maneira profunda o actual modelo de progresso e ver se se converte em justiça e em felicidade para todos. Isto é essencialmente o que propõe Latouche através do movimento do decrescimento. "É um slogan provocador - sublinha o economista - que junta os ateus da religião do crescimento e os agnósticos do progresso com o objectivo de quebrar a linguagem estereotipada dos viciados em produtivismo."
O ponto de partida é o seguinte: as sociedades ocidentais viciaram-se no crescimento e na capacidade regeneradora da Terra, que já não pode responder às nossas exigências. O melhor indicador para calibrar esta desporporção é a dívida ecológica que mede a superfície do planeta necessária para manter as actividades económicas. Dada a actual população da Terra, para haver sustentabilidade considera-se que cada um de nós deveria limitar-se a consumir 1,8 hectares desse espaço bio-produtivo. Porém, para sustentar o nosso actual nível de vida (como europeus) necessitaríamos de 5 hectares por pessoa ao ano. Se todos os habitantes do planeta vivessem como nós, faltariam 3 planetas, ou 6, se tomássemos como referência o modelo de vida dos Estados Unidos. A maior parte dos países africanos, pelo contrário, consome menos de 0,2 hectares de espaço bio-produtivo, uma décima parte do planeta. Esta é a advertência que lança Serge Latouche: "Se daqui a 2050 não modificarmos esta trajectória, a dívida ecológica corresponderá a 34 anos de produtividade, ou a 34 planetas".

Gastar com bom senso
Para reduzir a pegada dos nossos excessos, os defensores da visão de decrescimento preconizam produzir e consumir de maneira diferente. Perante o medo dos seus detractores, que põem as mãos na cabeça acreditando que decrescer significa voltar para traz até à Idade da Pedra ou à Idade Média, Latouche responde: para a Europa, voltar à pegada ecológica dos anos 70 não significa regressar às cavernas. Nos anos 70 comíamos igual ou até melhor que hoje. Agora consumimos 3 vezes mais petróleo e energia para produzir as mesmas coisas. A diferença é que o iogurte de hoje, por exemplo, não tem nada a ver com o iogurte que consumíamos há 30 anos. Os de antes faziam-se com a vaca do vizinho e os de agora fazem-se há distância de 9 mil quilómetros, sem contar que pagamos por outros serviços incorporados, como a embalagem, os pacotes, etc. A chave está em produzir e consumir a nível local além, é claro, de limitar a tendência actual para o hiper-consumismo."
Contudo, cortar no nosso consumo não é a receita que governos e empresários insistem em prescrever-nos. "Os nossos governos - assinala Latouche - estão próximos da esquizofrenia porque sabem perfeitamente que o sistema caminha para o colapso. O sintoma mais evidente é a mudança climática, mas também a extinção acelerada de espécies, a propagação de doenças relacionadas com a contaminação e o declínio que a longo prazo implicará o fim do petróleo. O problema é que os políticos não são eleitos para mudar o sistema. O poder não lhes pertence a eles mas sim às grandes empresas internacionais que actuam como os traficantes de droga, alimentando o nosso vício pelo consumo para perpetuar assim a lógica do sistema. Não são capazes de imaginar outro modo de vida. O crescimento negativo que vivemos é dramático, mas há que o relativizar. Recebemos muita propaganda mediática com o objectivo de recomeçar e repetir os mesmos erros. Berlusconi, por exemplo chegou a dizer que devemos renunciar a Quioto para relançar a indústria automóvel. É claro que é preciso parar o desemprego, mas o primeiro passo na lógica do decrescimento seria reduzir o tempo de trabalho".
Com efeito, partilhar o trabalho e aumentar os prazeres é uma das chaves na receita do decrescimento. Os seus pensadores advertem que não se trata de desmantelar o sistema de repente, mas de iniciar um processo de transição para reduzir certos sectores industriais - automóvel, militar, aviação e construção -, rever a durabilidade dos produtos, fragmentar o espaço monetário, recuperar a produção local, diminuir em dois terços o nosso consumo de recursos naturais e gerar mais emprego verde, entre outras mudanças possíveis. Trabalhar menos e de outra maneira pode significar, na óptica decrescente, reapropriar-nos do tempo, reavivar o gosto pelo ócio, recuperar a abundância perdida de sociedades anteriores e permitir o florescimento dos cidadãos na vida política, privada e artística, assim como no jogo ou na contemplação. " O que é absurdo é pedir a um trabalhador que faz 60 horas semanais que leia as 600 folhas do futuro Tratado Europeu. Isso é uma caricatura da democracia, ironiza Latouche.

Menos é mais
Outra paródia é o conceito de crescimento ou desenvolvimento sustentável que tem estado no centro do discurso ambientalista dos últimos 20 anos. "É significativa a ausência de verdadeira crítica à sociedade de crescimento na maioria dos discursos ambientalistas que se ficam pela rama com explicações sinuosas sobre o desenvolvimento sustentável. Este desenvolvimento encontrou o seu instrumento favorito nos seus mecanismos de desenvolvimento limpo, tecnologias que poupam energia ou carbono sob a forma de eco-eficiência, mas continuamos no campo da diplomacia verbal porque o desenvolvimento sustentável, no fundo, não põe em causa a lógica suicida do desenvolvimento. O eco-crescimento - assegura Latouche - é objectivo do novo capitalismo Verde, do marqueting e do mediático. "
O decrescimento, pelo contrário, posiciona-se como uma mudança profunda de paradigma e como uma modificação das instituições que o desenham a favor de uma solução razoável: a democracia ecológica. Para ela já trabalham numerosos grupos locais que se auto-gerem para decrescer em toda a Europa e também novas iniciativas que se projectam na mesma linha.
"Se eu decido reduzir o meu consumo de petróleo mas o meu vizinho não o faz, o resultado é que eu farei com que ele tenha mais petróleo para ele consumir e portanto não haverá uma mudança substancial importante a nível global. Por isso, sugere Latouche, são melhores as iniciativas colectivas, como os grupos de família que se organizam para que a escolha ecológica do colectivo diminua. Este tipo de experiências é muito mais interessante."
Uma das propostas mais inovadoras é a que está englobada sob o movimento de Cidades em Transição, que começou em Inglaterra e Irlanda e que utiliza o conceito de "resistência" para valorizar a capacidade de um grupo ou de um sistema para resistir às mudanças à sua volta, tais como o fim do petróleo ou o aumento da temperatura. Na opinião do economista, " trata-se de reabrir o espaço para a inventividade e a criatividade dependendo dos valores e dos objectivos de cada sociedade. O decrescimento é um sonho de hoje, mas há que trabalhar para o converter na realidade de amanhã".

Os pilares do conhecimento
É preciso fazer frente à desmesura do sistema que se poderia traduzir na raiz "hiper-" de "hiper-actividade", "hiper-desenvolvimento", "hiper-produção", "hiper-abundância... Para o conseguir, o movimento do decrescimento propõe aplicar os oito "R":
Reavaliar. Substituir os valores dominantes por outros mais benéficos. Por exemplo, altruísmo em vez de egoísmo, cooperação em vez de competência, gosto em vez de obsessão pelo trabalho, humanismo em vez de consumismo ilimitado, local em vez de global, etc...
Reconceptualizar. Significa olhar o mundo de outra maneira e portanto outra forma de interpretar a realidade, que passaria por redefinir conceitos como os de riqueza - pobreza, ou escassez-abundância.
Reestruturar. Adaptar o aparelho de produção e as relações sociais em função da nova escala de valores.
Relocalizar. Produzir localmente os bens essenciais para satisfazer todas as nossas necessidades.
Redistribuir. Implicaria basicamente uma distribuição diferente da riqueza.
Reduzir. Fazer o possível por diminuir o impacto que têm na bio-esfera as nossas formas de produzir e consumir, além de limitar os horários de trabalho e o turismo de massas.
Reutilizar e reciclar. A melhor forma de parar o desperdício é alargar o tempo de vida dos produtos.

Recuperar a inteligência do caracol
Iván Illich, pensador austríaco e um dos teóricos do decrescimento, escreveu que o caracol constrói a sua concha somando, uma a uma, espirais cada vez maiores. Aí, detém-se bruscamente e começa a fazer voltas decrescentes. Uma só espiral a mais faria com que a concha fosse 16 vezes maior, sobrecarregando o animal. A partir daí, qualquer aumento da sua produtividade serviria somente para aliviar as dificuldades criadas por uma concha que crescera de mais. Nesse limite, os problemas de sobre-crescimento multiplicam-se em progressão geométrica, enquanto a capacidade biológica do caracol só pode , no melhor dos casos, seguir uma progressão aritmética. O decrescimento utiliza esta imagem como símbolo do seu ideário.

Esther Mira


Publicado em Outro:
jornaloutro.blogspot.com

1 comentário:

Kunzang Dorje disse...

"Felizes os pobres de espírito porque deles é o Reino de Deus"

... Eckhart ou Agostinho da Silva? Cristo??