terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Mitologia

“O mito da Morte de Deus é trágico. Que o homem tivesse emergido, que continue emergindo do mundo, no seu plano funcional de natureza naturante, não significa que o Homem possa dispensá-la por impertinente e importuna, pois enquanto homem, radicado na animalidade, nela e dela vive. O homem que veio a ser Homem, nem por crer que poderia ocupar o posto vago da Divindade, se desprendeu da Natureza; não deixa de ser um ente, cuja vida depende da vida mortal de outros entes naturais. Antes de vir a ser Homem construtor do mundo, foi e é homem que vive a vida e da vida do mundo, que há no mundo que ele não construiu. E aí está o trágico, bem no fundo da existência do Homem: ele não pode construir o Mundo senão à custa da destruição da Natureza; mas se a destrói, a si mesmo se destrói. Aí está o trágico, no limite de uma operosidade que não quer saber de limites. Há sempre um traço de ridículo nos profetas da desgraça. Mas o riso nos morre na face, quando de face olhamos a eventualidade de despertarem os deuses que «dormem nas formas naturais das coisas», que, destroçadas elas, os deuses, que já não têm onde dormir, e vinguem a ponto de se apossarem do Homem, de modo que ele se perca no limite ou do limite se perca; de maneira que se lhe oculte o limite, e que, ultrapassando-o, se mate. Não se veria grande mal no suicídio do Homem, se ainda sobrasse Natureza acolhedora e mantenedora de homens que só querem ser homens, que tanto se afastarem do Mundo do Homem, que já não queiram senão viver no mundo que deles tanto é, quanto eles são do mundo, do mundo que só é mensagem da Divindade, acenada pelos deuses que a acenaram. Ou só lhes restará um breve lapso de vida a viver à margem da tragédia? Que o vivam, então! Mas, por Deus, não se lamentem!”

Sem comentários: