quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Sobre a União Lusófona



O mundo lusófono não tem, na sua estrutura geopolítica, nada que o distinga das outras quimeras que a História permitiu no seu litoral pleno de restos de naufrágios de tentações de dominação. Não é um espaço de paz, de desenvolvimento humano, de respeito pela dignidade do ser humano. No interior do seu perímetro a miséria, é a miséria, nem as madrugadas cantam, nem uma multidão de iluminados se prepara para salvar o mundo.

A mesma rapacidade económica, o mesmo império do dinheiro e da ganância.

Querer urdir com esta trama de insanidade um tecido político capaz de enfrentar as grandes potências do mundo é, se isso for pensável, querer erguer o mundo ao estatuto de manicómio.

Está mais do que visto que a CPLP não passa duma prateleira para colocar os jarrões que, fartos do paroquialismo da política interna dos Estados, ou tendo chegado à idade em que umas pantufas diplomáticas permitem dourar os anos de reforma, vão alimentando a aparência de vitalidade dum nado-morto, demasiado morto para que fique bem dá-lo como findo.

São as tais boas intenções que douram os jantares de gala e as cimeiras (e já nem disso se fala, ou seja, de cimeiras regulares entre os Chefes de Estado dos países lusófonos – até poderá nascer daqui mais uma daquelas iniciativas de dá cá aquela palha, quem sabe? A Lusofonia com afonia não funciona, há que aproveitar os bicos dos pés para dar nas vistas).

Isto para não falar do celebérrimo acordo ortográfico. Em vez de se aceitarem como naturais as variantes linguísticas, trata-se de tosquiar a Língua. Para além dos editores de dicionários, bafejados por efémera fortuna, quem, no seu perfeito juízo, se contenta com a regulamentação da Língua (coisa, em si absurda), como se pode fomentar a Cultura e incentivar o intercâmbio cultural sem exigir a abolição das barreiras alfandegárias impostas ao livro e aos demais produtos culturais?

Mas no fundo, o que importa é a seiva: os Estados e a malha de interesses em torno da dominação económica e estratégica são, no que diz respeito à vida do Espírito, massa cadavérica. Namorar-lhes as entranhas é fome de abutre, quando o que o mundo precisa, mesmo, é da coragem dos que não se recusam ao encontro e à construção de laços e pontes.

O futuro, nosso e de todos os povos, está nas organizações não governamentais e nas comunidades de base que, enfrentando mesmo as contrariedades mais tenebrosas, não se recusam à solidariedade e, porque não dizê-lo, ao trabalho. O futuro é das formigas, não das cigarras.

A lealdade, a entrega a um espírito comunitário, o desapego perante o poder do dinheiro e o dinheiro do poder, são uma luz na treva.

As navegações de há demasiado tempo para nos podermos considerar, ainda, navegantes, não se fizeram com caravelas de papel. E os egos são como bexigas de porco cheias de ar, ocupam espaço mas não servem para mais do que uma pueril distracção.

Esqueçam-se os homens que se querem grandes e assuma-se a grandeza que habita cada homem. Essa a única união que dá frutos.

E o que poderá ser o trans-nacionalismo lusófono? Está na moda tudo o que é ‘trans’, da pós modernidade, entrámos na trans-modernidade. Não se trata dum apelo da transcendência, ou à transcensão… Trata-se duma adesão ao cinzentismo antropológico, propiciador do terreno onde se semeiam os totalitarismos identitários. A antropolatria indo-europeia, com o seu rebolhão de mitemas alienantes, numa época de derrocada do Espírito a cavalo na Razão alucinada…

Uma das dádivas mais sagradas da História é a Memória, trinta, ou mesmo trezentos anos, não são suficientes para delir as atrocidades cometidas em nome seja do que for, da Pátria, das chinelas, da cor da pele… Cultuar a memória não é alimentar preconceitos. O racismo é sempre racismo, a usurpação é sempre usurpação, mudem-lhes as coordenadas de análise crítica (sem aspas que a coisa nua até fica bem) que o feito continua feito. E os fantasmas da História não se namoram…

E que comunidade pode nascer sob inspiração da intriga, da rapacidade neurótica, da incapacidade de ter maturidade? Uma comunidade de povos que vive, de forma cada vez mais evidente, da exploração do homem pelo homem, da abdicação dos mais elementares direitos humanos perante o poder do dinheiro e da fortuna diplomática… A comunidade do terror, da miséria, da mais desamparada agonia face aos poderes fácticos deste mundo globalizado…

O problema da globalização está, precisamente, no delir da fisionomia espiritual das culturas, a sua sujeição ao império mediático-comercial. Há intercâmbios muito para além do comércio venal. Mas aí há que dar ao outro direito de cidade, é a questão da aceitação: podemos polvilhar África com farinha branca de neve que a coisa não se resolve: o etnocentrismo, em acção alucinada sob o poder do complexo da indústria do entretenimento, tem reflexos em todo o espectro das atitudes perante o outro. Há Cultura em todos os povos. Cultura com ‘C’ grande. Há tradições sapiensiais a que não se atende por miopia logocêntrica – e não é preciso repetir o gesto meio alucinado dum Artaud ou dum Gaugin, no México ou nas Antilhas há fontes por explorar, mas também um pouco por toda a parte onde não houver artificialismos de castrati. A finura das vozes não substitui a acutilância de espírito, nem a limpidez das intenções.

E é no seio dos países lusófonos que mais se fazem sentir os nefastos efeitos da globalização económica (e cultural): a destruição dos Estados africanos, minados pelo narcotráfico e pela exploração diamantífera, petrolífera, agrícola, em nome duma nova expropriação de recursos que deveriam servir para melhorar as condições de vida das populações e dar-lhes um futuro, por mais básicas que fossem as condições em que este se viesse a fundar.

Trans-nacionalismo lusófono? Em nome de quê? Primeiro os homens, todos os homens, seja qual for o seu género, origem étnica, condição política e económica, todos de pé, todos reconhecidos na sua dignidade, depois as quimeras. Negar aos povos africanos o direito à auto-consciência emancipadora é passar-lhes um atestado de incapacidade política, coisa já muito batida e muito repisada.

Mudança de paradigma? É coisa que não se faz correndo atrás das canas dos foguetes do poder. O afã de colagem aos poderes instituídos, a recusa ao questionamento, a imposição aos factos dum esquema rígido, assente numa metafísica do terrorismo patriótico - a velha trama do ‘povo eleito’ que já matou mais que qualquer doença de origem aleatória.

E há uma coisa de pasmar: tanta preocupação com a Galiza… O que dizer de Cabinda? Faz parte da lusofonia ou da lusofolia? Haverá união lusófona para os cabindas? Mesmo depois de mortos, de subjugados, de humilhados culturalmente até à mais completa abjecção?

Sabendo que tal União nunca sairá da prateleira do mini-mercado aquilino (ou seja lá o que for), mais depressa o Brasil abocanha meio mundo, esta sua erecção em montra de desequilíbrio mental serve só desígnios domésticos e pouco ligados à solidariedade entre povos.

Venha o Encontro, venha a entrega à comunhão cultural, com tudo o que isso implica. O resto é pano para fazer fatos domingueiros. E que bem que se canta na Sé!

2 comentários:

Paulo Borges disse...

Um país que não sabe de si refugia-se no lusocentrismo lusomaníaco... Há que sondar, todavia, outras potencialidades da Lusofonia: seria interessante o Damien expor melhor o que entende por Lusofania.

Paulo Borges disse...

A imagem é eloquentíssima: este futuro é um fóssil!