sábado, 7 de novembro de 2009

"... quando mais perdida a via, na sua mesma perda se ganhava" - Luis de Camões




Depois de ter perdido o sentimento,
de humano um só desejo me ficava
em que toda a razão se convertia;
mas não sei quem no peito me bradava
que por tão alto e doce pensamento,
com razão, a razão se me perdia.
Assim que quando mais perdida a via,
na sua mesma perda se ganhava;
em doce paz estava
com seu contrário próprio num sujeito.
Oh! caso estranho e novo!
Por alta, certamente, e grande, aprovo
a causa donde vem tamanho efeito
que faz num coração
que um desejo sem ser seja razão.


Luís de Camões, Canção VII (na ed. 1616),
in “Rimas”, Atlântida Editora, Coimbra, 1973, pág. 410


(A todos aqueles que - largando rufos e máscaras que assinalam apenas os limites desta vida - amam o sabor de o saberem, e nisso saberem amar, isto é, saberem voar o amor...)

5 comentários:

Paulo Borges disse...

É possível voar. Já fomos seres voadores e podemos redescobri-lo. Fisicamente.

rmf disse...

pelo saber amar,

Era uma vez a sua casa.

Era homem perfeitamente natural. Vivia ainda com a sua mãe, a sós, numa imensa paisagem verde sem árvores nem grandes arbustos. Sua casa moldada no coração de uma pequena colina aí se debruçava para a escassa vegetação centenária plantada em tempos pelo seu avô. Abrigado pelo frio das quentes primaveras que solavam seu jardim, aí se entretinha, escolhendo com toda a paciência do mundo os melhores pés das plantas já secas pelo continuar das estações. Era o seu pequeno quintal de rhubarb, Rheum tanguticum, usado desde tempos imemoriais como fitoterapêutico mas também e sobretudo como alimento. Desde a mais tenra infância que nessas primaveras não tão frias saía de sua pequena casa e tímido espreitava a luz, esperando sempre em vista pelo vislumbre de um, e único, raio de sol. Vivera desde sempre lado-alado com a natureza. Ao redor do inóspito - porque casa alguma havia à sua volta - seguia algumas vezes até ao pequeno monte em busca dos únicos brinquedos com que enchia as suas estantes. Lascas de pedra cinza ou marcas de outros organismos de tempos já idos compunham saltitantes castelos de cartas, erigidas ao lado de sua cama como paisagens imaginárias. Com pequenos troncos dos caules secos sustentava a estrutura e por dentro dela, colocava uma vela, para dar luz a estas paragens onde só a aurora e o vento são companheiros de suas mais íntimas solidões. Por vezes acontecia derrubar por acidente estes pequenos castelos, por outras desmontava-os, lentamente, e com suas mãos as colocava, pedra ante pedra em fila sobre as pequenas plantas, os livros de xisto que agora lhe traziam uma música que era a sua. Heima!

Abraço!

Isabel Santiago disse...

Pois é tudo belo e de uma verdade que me enleva, e de tão leve, voo. Porque a casa do Rui, perdão, contada pelo Rui fica nas nuvens e tem cheiro a éter. Aquele que só certos narizes cheiram quando apertados pela beleza íntima da vida sobem na Torre do Instante, e nele se transparecem. Ao ler-vos e escutar-vos sinto a delicada e evidente presença dos anjos e logo de seguida a vontade irreprimível de chamar por Rilke.

Anónimo disse...

É possível voar sobre os nossos próprios medos, elos e prisões. É possível voar sobre a adormecida cidade, a descentrada casa... a inflexível certeza... é possível voar, pois. Como diz o Paulo... já voámos e ainda nos lembramos.

Mesmo agora, sinto que voo acordada, entre os meus irmãos.
Chamados que foram os anjos de Rilke, respondo: - Estou aqui, mas não sei... se o impulso me chega, para levantar mais!

Um beijo a todos... e o meu perdão.

Donis de Frol Guilhade disse...

“Oh! caso estranho e novo!
Por alta, certamente, e grande, aprovo
a causa donde vem tamanho efeito
que faz num coração
que um desejo sem ser seja razão.”


No princípio é o tapete líquido informe que o divino infante rarefaz em andança de olhares, áugures matinais.

Benfazeja Ronda do vir, Paulo - plantio de um divino “talent de bien faire” que a não querer aprender hemos de aprender - mascarada rota do movediço porvir da roda do fremir dos mundos, o tambor, brisa em brasa, incita o braço ao que ao cume chama da cumeada planura do arrojo.

A bota do menino, cadência do respirar caminho, é beta do aleph que o impele. É ele já o cume, ele sempre o caminho, ele os todos chamados que em si escuta, e o segredam instante.

Ele, alba em rosto de fogo e luz, alvura do frescor na raiz labiríntica que é planície no chão da pele, só ele sabe o toque que a tudo afeiçoa com os dedos que, só eles, Maria, só eles sabem pentear o abismarem-se em tão gaia e sagaz loucura.

A luz persegue o espelhar-se olhar quem escute o luzidir dos passos do ir, na ponte da decisão de escalar-se.

Planta dos mundos, o pé da alma percorre-se, Rui, no paisagir saudoso em toda a perfeita inversão dos passos a passo: na certeza do por certo que a cada indecidir palmilha nebulosas de dúvidas por que se despe cada um, a cada passo, como passe à antecâmara do além si.

Nas nervuras da rocha, a pétrea ternura da mãe, terra que embala os filhos do céu, é como um suave despedir “até já!”, é um “já és!” no sussurro do “hás de ser!”

Há de ser, há do ser abismo em cada olhar vazado de cegueira de tanto espanto e fulgor, e não há boca bastante nem o tapá-la: há infindos os universos e os mundos que de si em sorriso espantam, se a si espantem como se gémeos mútuos ao espelho dum nada.

Escorre-se-nos, Isabel, do lábio do olhar estrangeiro, o phantasma, o espectro e a phantasia inespeculada da irrealidade espelhada no mesmo véu do real: mero ancorar da crença de ser sonho, ou não, o sonho que deveras somos. (Abraço-te, Fernando, em pessoas, todas)

Escutai como o Terrível visitante, no ”sono de ninguém sob tantas pálpebras”, se escorre em rosas de orvalho na “contradição pura, volúpia de ser”[mos] esse rufo primordial que nos pulsa em saliva aquela raríssima boca (sagrada em tão cortantes medos e silêncios) que escutou, na espada circular da torre do castelo dos limites, as mais vastas elegíades de ecos do inaudível e, de Orfeu, sonetos do que não cabe dito, como os escreveria o Divino.

Escutai hoje ainda, a voz em ovo, em evo, como espiral que nos dança numa infinita caixa de tons as entoações de que somos, em todas as estações, o ressoar de diapasões dissonantes.

Moribundos desde as pálpebras da aurora até à flor crepuscular do peito, mal escutamos então o segredo do vivo na floração dos perfumes, e já as feições semeadoras da alegria se nos congraçam do mais pleno Instante, na raiz do mais alto abismo que nos ensina o voo que somos quais seremos: sempiternos ícaros.

Em beijo vos abraço, pombas de toda a alacria do almo no nevoeiro cego da alma.

Abraço-vos, criança, desalmadamente, como um grão de areia esvoaçado dum jardim qualquer ...